quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Um dia atrás do outro.




Um dia atrás do outro.

Quatro gramáticas, dois dicionários, prontuários, Os Lusíadas e os Contos de Eça de Queiroz. Uma mesa arrumada e os  papéis para reciclar. Uma dose de filetes com arroz de cenoura, uma máquina de loiça, a gaveta  das  meias sem par, um miúdo com um recado na caderneta, a divisão e classificação de orações, um poema épico com dez cantos e a estrutura do texto argumentativo. A panela de pressão lavada, a mochila e os cadernos de folhas, já, soltas, um grito abafado, e depois os outros gritos. A teimosia cheira a pele com acne. O passe já não tem saldo. O frio que veio da cozinha, o micro-ondas a espirrar gordura. A caneta azul que desapareceu no forro da mala. O carteiro que se enganou na porta e tocou duas vezes, um livro de poesia caiu da prateleira. Os rissóis de leitão em concorrência desleal com o arroz de cenoura, o cesto cheio de roupa suja e o aspirador que não aspira. Os inquéritos de mercado, a aguarela da Gracinda Candeias.  A caixa do CD do Stan Gertz e da Astrud Gilberto desapareceu. O aquecedor parece que não aquece, o telemóvel ficou sem bateria. Uma reunião agendada com a diretora de turma e os ossos de uma amiga a desfazerem-se com o frio. A novela que todos vimos, porque uma das atrizes é cá de casa. A Optimus foi distinguida com o prémio de Escolha do Consumidor. O miúdo mais velho teve um déjà-vu. Os sofistas saem no teste de sexta-feira. O cão do primeiro andar uivou o dia todo, afinal, a Diana Chaves já fez trinta anos e a Multiopticas oferece vauchers.  Há pessoas  corajosas e o curso de poesia faz bem à saúde. A Faculdade de Letras tem as salas mais limpas, mas a livraria da Teresa desapareceu. O frio vai continuar, o pai discute estratégias militares com os filhos. Mandela é um bom rebelde e já li até à página 75. Encontrei os phones pendurados nas costas da cadeira. O FB insiste em exibir a felicidade de vestido preto e olhos pintados.  A areia é branca e o mar azul. No supermercado, as raparigas falavam de sites de encontros para homens e mulheres com mais idade. As análises estão bem, apesar de um valor do Leucograma estar esquisito, ainda sei o nome das dores. A inteligência emocional está a ser estudada por psicólogos do mundo inteiro. Vestiram os pijamas de flanela e foram para a cama ler. O Parlamento Europeu distinguiu Malala Yousafzai com o prémio Sakharov, o ciclone chama-se Cleópatra e o Papa pediu aos fiéis que rezassem. O herói é o Cristiano Ronaldo. A receita do chiffon de chocolate estava no livro de receitas vegetarianas e o frio encolhe-nos os dedos do teclado. Juntar as escovas de dentes é mais importante do que juntar as alianças - as personagens da telenovela têm muita razão e ponto final.

Boa noite e até amanhã.

 

 

sábado, 16 de novembro de 2013

Compor o coração.



 Compor o coração.
Suspirou. Chegou mais para si a roupa e deixou-se ficar. Tinha frio. Não gostava da espera. Não percebia o diálogo, a conversa sem resposta, durante horas, durante o jantar. Quando o jantar. Não percebia. Ou talvez sim, talvez soubesse. Tinha muito frio e as noites eram muito longas. A solidão crescia na roupa, no cheiro da casa, no pó dos livros. Recolhia os bocados e o super-homem espalhados pela casa, esticava a toalha da mesa com a palma das mãos, compunha o prato. Continuava com frio. Todas as noites, a espera. Desfiava o rosário dos remorsos, dentro de si. Instalara-se, a seu lado, uma sombra. Não conhecia o corpo. Pelo silêncio, ainda, ouvia a chave na porta, a pasta atirada para o chão. Sentia o cheiro. Chegavam os passos. Correu tudo bem?, arriscava. Dorme, são assuntos do escritório, trabalho, não te interessam, amanhã também chegarei tarde, dorme. Ouvia os passos afastarem-se. A almofada colada ao coração triste. Aconchegava-se. Ouvia no quarto ao lado o suave respirar. Serenava um momento, continuava com frio. Às vezes, ouvia as gotas da chuva, transparentes, debaixo da janela. Embalavam-na. A chave rodava na fechadura. Fechava os olhos. Uma e outra vez. Uma e outra noite a chuva a cair debaixo da sua janela. Uma e outra noite a olhar através da televisão. O olhar atravessava de um lado ao outro, qualquer coisa que, por momentos, fosse diante dos seus olhos. E, maior, o silêncio. A espera. Acordaria com a mesma certeza dentro de si. E o frio. Ajeitava a figura e fazia-se à estrada. Outro dia a seguir os mesmos caminhos. A mesma noite que demorava a trazer o dia, arrastando a espera. Igual, que se repetia. Queria pensar, um dia, o que sempre fora, talvez.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

"Não contem a vidinha", dizia o O'Neill

(Um homem e uma mulher, Claude Lélouche, 1966)


(“Não contem a vidinha”, dizia o O’Neill. “Não contem a vidinha”.)

 Não contarei a vidinha.

Saiu de casa com um casaco sobre os ombros. O dia não estava frio e, mesmo, se a temperatura baixasse, ela teria sempre o carro para se abrigar. Compôs a gola da camisa, mirou o brilho das botas, respirou fundo e seguiu. Nada a deteria, nem mesmo o cheiro a roupa lavada das suas mãos. Atropelavam-se as ideias,  os sonhos estremeciam dentro de si, à medida que o tempo passava.  Acelerou o passo, esticou os gestos, lembrou-se do dinheiro que guardara na carteira, dos cigarros e do isqueiro, das chaves, do risco a  eye-liner, que nesse dia ficara direito. Subiu a rua. Compôs a saia, as meias tinham sido bem esticadas, o lenço, usava sempre lenços, como adorava lenços, estava a condizer com a cor do casaco, apenas, sobre os ombros. Se se visse, naquele momento, ao espelho, encontraria algum defeito, alguma mancha, um botão descosido. Não, não olharia para o espelho. Ela sabia que poderia estar melhor, mas também sabia que ele não perceberia os defeitos, afinal, há vinte anos que não se encontravam. Continuou a andar, evitava as manchas de gasolina, os buracos da calçada, os caminhos mais estreitos - “Estarei à tua espera, vem depressa!” – dissera-lhe para vir depressa. Há tanto tempo que ninguém lhe exigia pressas. Há tanto tempo que ninguém lhe exigia ser qualquer coisa. Bem, exigir? Exigiam! “Ajuda-me a fazer o trabalho de casa”; “ Vai ao correio pagar esta conta.”; “Preciso do fato azul, para hoje à noite, tenho uma reunião muito importante.”; “ O que é o almoço?” Aquelas exigências eram a sua própria vida. Agora, exigiam-lhe uma pressa diferente,  carregada de cheiro, de promessas e de segredos. Ia. Estava a ir sem medo . Apressou-se. Porquê todo aquele estremecimento?  Pensou  que precisava de arrumar as gavetas da secretária. Era como fazer cópias, na escola primária. Não servia para nada, mas mantinham-na ocupada. As  mãos  cheias  e o pensamento entretido. Longe. Em qualquer sítio. Às vezes, ainda lhe apetecia fazer cópias, por isso, mantinha as gavetas em ordem . Olhou em frente, procurou o número da porta: 52, 54, 56, ele dissera-lhe. “Uma porta azul, número 74”. Ou seria 78? E, se tivesse apontado mal o número? Olhou  para a agenda. Não apontara o número da porta, mas lembrava-se da cor azul da porta. Do nome da rua. Do nome do bairro.” Há lugar para estacionar, não te demores! ” Uma chuva miudinha começou a confundir-se com a sua respiração. Ora chuva. Ora respiração. “Não te demores”, as palavras do homem ajudavam-na a procurar a porta azul.  Olhou para si, o brilho das botas. Sentiu o cheiro que espalhara no corpo. Lembrou-se da moeda que deixara numa mão suja. Porta azul. Porta azul, número 78. Seria aquela? Era azul, a porta. “ Tens de subir umas escadas! Entra devagar. Não te farão perguntas. Sobe até ao 1º andar, estarei à tua espera. A porta estará aberta.” De repente, apeteceu-lhe fugir, descer, a correr, as escadas, voltar para as suas arrumações. Pedir a moeda de volta. Esquecer o brilho das botas. Deixar cair o lenço. Mentir uma razão qualquer. “ Perdi-me no caminho.” “ Fiquei com frio.” “ Perdi as chaves de casa”. Qualquer coisa. Qualquer coisa que a levasse de volta. Que a impedisse de continuar. Tarde demais. A olhar para ela um sorriso, de  mãos abertas, o homem puxou-a para si: “ Entra. Abraça-me. Não, deixa-me olhar para ti. Sempre te imaginei assim. Segura e com as mãos muito frias”. Entraram, abraçados, na penumbra do quarto. Pairava no ar o cheiro e a sombra de encontros anteriores. A chuva, agora, acertava  nos carros que passavam. Nos vidros das janelas. Na cidade que os ignorava. Cinzenta e molhada. Quase fria.  Conversavam. A mulher e o homem. As palavras saltavam de uma frase para outra. Recitaram cumplicidades e ajeitaram os passados. Desculparam-se de nada. Estavam sentados ao lado um do outro. Deram as mãos. Ele compôs-lhe o rosto. Ela pediu-lhe  água. Deixaram que a noite entrasse. Num quarto ao lado, uma mulher gemia. Numa cama  igual.  Ignoraram a mulher e sorriram.

domingo, 10 de novembro de 2013

O Escritório (continuação)



Andrew Wyeth, Open and Closed


O Escritório (continuação)

 Era eu a menina da casa. Nas tardes mais longas, escondia-me no escritório que ficara resguardado do sol, durante a manhã, e sentava-me na cadeira da secretária. As pernas penduradas, a rodar um círculo perfeito, desenhado pelo balanço da minha força naquele engenho de madeira e mola de ferro rangente e gasto. Ao lado da secretária, a janela e uns cortinados transparentes que deixavam entrar a luz do sol, ou da sombra ocupavam metade da parede cor-de-rosa, adivinhava-se o laço encarnado na esquadria, por trás da estante dos livros. Um móvel de madeira brilhante e sedosa, com riscas de vários castanhos, igual à secretária e às cadeiras de braços, duas portas, prateleiras ao meio e três gavetas na parte de baixo. Uns pés pesados e dourados rematavam as linhas direitas e suportavam o peso. Nunca lhe faltou o brilho, nem a limpeza. Não são contas do teu rosário e eu, antes de saber ler, olhava-o de longe, encolhida de medo e timidez, via  os livros de lombadas largas azuis, verdes e castanhas, amparados por umas cabeças assustadoras esculpidas em pau-preto, os bonecos de porcelana, os rostos de crianças dentro de molduras prateadas e as caixas de várias cores, que não me pertenciam. Mas no silêncio que me acompanhava e, sob o olhar atento do menino Jesus, eu atrevia-me, aproximava-me da estante e mexia nas prateleiras que conseguia alcançar, pegava nos livros, sentia o papel rugoso que os forrava, cheirava-os, abria as gavetas sem chave, espalhava as caixas no chão encerado a alfazema. As mãos eram pequeninas, os livros escorregavam, caiam e abriam-se, as caixas perdiam a compostura. Um dia, com um gesto mais rápido e medroso, desfiz uma pastorinha, um patinho branco de bico dourado e o vidro que protegia do pó a cara de uma criança sorridente. Um avô complacente salvou-me de uns açoites e o escritório, depois de varridos os cacos, continuou a pertencer-me, desde que a porta permanecesse aberta. Nos dias seguintes, não saí da cadeira que girava e chiava, observava as paisagens penduradas na parede, do outro lado da secretária, o cinzeiro que combinava com o isqueiro, muito alinhados, em cima da mesa de latão, os dois sofás estofados a brocado grosso de cor indefinida, cor de sujo, e partia para as minhas histórias, sempre a imaginar conversas e pessoas. Os brinquedos da secretária também me acompanhavam. No entanto, a estante, imperturbável, com os seus tesouros, era o meu território proibido. A curiosidade era um tormento, entre uma história inventada e uma piscadela de olho para as prateleiras cheias de livros, eu pensava na maçã envenenada da Branca de Neve e na abóbora da Gata Borralheira. A estante crescia, ocupava o espaço todo, os Reis Magos já não se  mexiam e a tapeçaria deixou de me amedrontar, o mundo  estava, agora, naqueles livros inteiros e quietos, que eu mal podia tocar. Não passaram muitas tardes até eu saltar da cadeira que rodava, para A Guerra e Paz e O Crime do Padre Amaro. Quando aprendi a ler, enrolava-me num daqueles sofás pardos, de orelhas salientes e decifrava os mistérios há tanto tempo, ali, arrumados. Esquecia-me das outras histórias e brinquedos, o tempo passava e sem perceber o escritório ia escurecendo. Ficava suspensa  parágrafos, capítulos inteiros.  Às vezes, da rua por raros e descompassados momentos, ouvia o barulho mais rouco de um carro, a campainha de uma bicicleta, o pregão do amolador, vozes, uma gargalhada, um grito, o ladrar de um cão vadio, o rolar de uma carroça. A casa ficava numa rua sossegada. O escritório era meu, o papel pardo que escondia alguns títulos era o meu único desafio. A maçã e a abóbora. 

(continua) 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Apetecia-me um cigarro.

Pablo Picasso, Em repouso.
 
 
 
 
 

Apetecia-me um cigarro.

Quando se sentou à mesa do café sentiu-se mais calma. O bater lento e repetido da chuva, na janela, devolvera-lha o bater mais certo do coração. Secava as mãos na saia, pediu um café, meio copo de água, lembrou-se que um cigarro saber-lhe-ia bem. Lembrou-se da sombra do fumo do cigarro nas suas mãos. Olhou através da chuva. Olhou através das pessoas.  Entrara para beber um café e dar uma folga aquela aflição. O café estava vazio. Os bolos no balcão enchiam-se de moscas. “Aqui está o seu café, o copo de água, minha senhora. Sessenta cêntimos, se fizer a fineza.” Faria a fineza, moedas certas. Não precisaria de troco. "Muito obrigada e volte sempre”, ela ainda não bebera o café e o empregado já estava a mandá-la embora. Iria. Quando lhe apetecesse. Poderia até nem beber o café, com um pouco de água, como era seu hábito. Poderia. Poderia até nem ter entrado naquele café. Teria escolhido outro. Chovia. Estava quase sem fôlego, precisava de se sentar. Uns minutos, apenas uns minutos. Há horas que deambulava pela cidade, antes de começar a chover, decidira andar. Descer e subir ruas. Olhar a cara das pessoas. Ver-se no rosto dos outros. Olhar-lhes as roupas. Os olhos. Atrasar-se para a solidão. Bebeu o café, soube-lhe mal. Estava frio. Não pediria outro. Ficou sentada mais um bocado, olhou para a rua. O passeio molhado. Gente apressada. Chapéus de plástico cobriam a cabeça das pessoas. Jornais e pastas a proteger algumas carecas. “Vou ficar toda encharcada, não tenho guarda-chuva, perdi o chapéu. A chuva na cara não me fará mal nenhum,” falava sozinha, baixinho. Só ela ouvia. Pouca coisa lhe poderia fazer mal. Faria de conta que estava à espera que parasse de chover para sair do café. Entraram mais pessoas. Um casal de velhos, duas adolescentes, uma senhora mais composta. Se soubessem como o café é mau. "Ainda bem que pediram chá de limão, coca-colas uma água sem gás”. Olhou o relógio. Seis horas em ponto. Quando fossem seis horas e cinco minutos, levantar-se-ia, comporia o lenço colorido dentro da gola, agarraria a mala com as duas mãos e sairia. Estava mais serena. Mais infeliz. Mais triste. Mais só. Ela soube no momento em que ele lhe ligou para se encontrarem, para lhe explicar, mais uma vez, as suas razões, que ele não apareceria. “Quero explicar-te o que sinto por ti. Quero dizer-te o quanto foste e és importante na minha vida. Beberemos um café, um chá. O que tu quiseres”. Foi nesse instante: “O que tu quiseres”, dissera ele. O que ela quisesse. "O que tu quiseres”, dissera-lhe ao ouvido. Um sopro e ela percebeu que não esperaria por ele. Um minuto e decidiu, apesar da mágoa, que não queria. “O que tu quiseres, um café, um chá o que tu quiseres. O que tu quiseres, um café, um chá.” Já não queria nada. Já não o queria. Não queria. Atrasara-se três minutos. Eram seis horas e oito minutos, quando saiu. Parara de chover. Atravessaria a rua para apanhar o autocarro. O peão verde deixou-a correr. Agora, sim, beberia o café, o chá. O que quisesse. Entretanto anoitecera. Encolheu-se no frio. “Arrumei em três horas a infelicidade de quase uma vida”. Tirou o bilhete do bolso, entrou no autocarro. Estava cheio, cheirava a pessoas, a álcool e a humidade. “O costume. Tenho de engraxar as botas quando estiverem bem secas. Quer sentar-se aqui? Eu saio na próxima.”


terça-feira, 5 de novembro de 2013

A minha mesa de trabalho





A minha mesa de trabalho.


Li há pouco uma homenagem e louvor – seria? – às secretárias desarrumadas, percebi que vários génios da nossa história são génios apesar de  terem as suas secretárias desarrumadas, fiquei sem perceber se a sua genialidade está relacionada com a desarrumação da suas mesas de trabalho, ou se  as suas  mesas de trabalho estão desarrumadas, porque são génios, parece o mesmo, mas não é.  Passo a explicar, se Steve Jobs era genial e tinha sempre a mesa de trabalho desarrumada, esta era uma característica da sua genialidade, no entanto, se a mesa de trabalho está desarrumada, pode ser-se normal e desarrumado por força dos genes, da educação, do espaço, ou do tempo e não resulta da criatividade do génio, ou da genialidade do criativo. Na minha insipidez de pessoa normal, portanto sem genialidade, ou qualquer outra bênção, a secretária desarrumada é um privilégio, uma característica, que me assiste. Fico mais descansada. Posso ter a mesa de trabalho desarrumada e não ser um génio, porque até os génios têm as mesas, as secretárias desarrumadas. Dissolve-se, assim, um pouco, da minha banalidade, ganho afinidades com quem mudou o mundo e posso adiar o tempo que entender a tarefa árdua, inútil e efémera que é a limpeza da minha mesa de trabalho, isto é, deitar fora os folhetos de publicidade que estão à espera de ser rasgados; colocar por ordem as faturas que já paguei; livrar-me das caixas de medicamentos, porque já comprei o que precisava; guardar dentro das gavetas as agendas dos anos anteriores; inutilizar os cartões caducados; adivinhar o que está escrito nos duzentos e trinta e oito papelinhos autocolantes amarelos; decifrar os números nas folhas soltas que estão espalhadas, organizadas umas em cima das outras e olham para mim com ar complacente; amachucar e pôr no papelão as caixinhas de pastilha elástica vazias; ler e rasgar as cartas dos bancos, porque já aderi ao extrato digital; separar as Atuais que de tanto esperar esqueci a verdadeira razão por que as queria guardar; fechar os Dicionários e as Gramáticas; ouvir e meter dentro das respetivas caixas os cds que, em silêncio, vão ganhando pó; arquivar os últimos cartões escritos pelos amigos e as mensagens de amizade dos alunos, os envelopes das análises, os negativos das fotografias, do tempo em que se revelavam  rolos de fotografia, as instruções do computador, os talões do multibanco, as fotocópias dos cartões de cidadão da família toda, os certificados de presença e participação nas ações de formação, que já não dão créditos; deitar fora ou guardar todos os recibos que se acumularam na carteira estragada; anotar a referência de um baton rançoso; devolver o manual de utilização da Bimby, objeto que não tenho, nem nunca virei a ter; decorar o refrão daquelas canções; verificar a lista das compras e os vales do Continente; pôr à venda no Olx o comando de uma aparelhagem que já não funciona; destinar os bloquinhos de apontamentos com frases do Paulo Coelho, que nunca foram utilizados e, por fim, encontrar uma caneta ou um lápis afiado, porque, desde que o computador ocupa o maior espaço da minha mesa de trabalho, nunca encontro nem uma coisa, nem outra e tenho de me levantar, milhentas vezes, se preciso de tomar uma nota muito importante, ou escrever um recado. Afiar os lápis e guardar, preciosamente, as canetas de cores é a única coisa que justifica a canseira que é a limpeza de uma mesa de trabalho. Deve ser por isto que o Einstein desenvolveu a teoria da relatividade com um pauzinho de giz branco e o Mark Zuckerberg se lembrou que uma página de FaceBook era muito melhor do que pedir emprestada uma caneta para apontar o telefone das raparigas com quem queria sair.
Entretanto, a minha mesa de trabalho ficará como está – desarrumada e caótica - o único sinal da minha passagem por este mundo.
De momento não me ocorre mais nada.

 

 

domingo, 3 de novembro de 2013

O eclipse.

http://youtu.be/_H9P9hZwjbA   Madredeus,Tejo


O eclipse.


Para trás, por um par de horas, ficará a casa com as coisas todas lá dentro. Seguirá em frente, para o rio carregado e imenso, luminoso de prata escura. Ainda brilha. Atravessa o bairro, os cães asseados e burgueses, rapazes de bicicleta, dois casais de mão dada, uma mulher a falar muito alto empurra um homem, obriga-o a espreitar para dentro de uma casa em obras, ao longo das ruas as folhas dançam, têm o passo miúdo e lento da aragem e a cor do outono. Arrefeceu, está bom, quando acabar de atravessar o bairro terá calor e  a razão mais certa. A três de novembro, depois do eclipse, queima-se o que sobra e recomeça-se. Agora, precisa do rio, talvez consiga uma reconciliação. Afastou-se há alguns anos, prometeu que não lhe contaria segredos e jogaria a esperança, apenas, até à Trafaria, o resto dos sonhos ficariam para si. Continuou a descer. Entrou na avenida, os passeios largos tinham as raízes de algumas árvores à mostra, pedras soltas e desalinhadas pediam cuidado e atenção, aqui e ali, o alcatrão fendido, riscas brancas e semáforos também corriam para o rio. Olhou para as capelas mortuárias fechadas. Não se morre ao domingo. Não se pode estar morto ao domingo. Uma porção de passeio e um bocado de terra compunham as traseiras dos Jerónimos. Ciprestes viris alongavam-se, sumaúmas de copas redondas, agapantos por florir, musgo de cores diferentes, o cheiro a castanhas assadas e o rio em frente. Teria de espreitar a feira do jardim, um livro, uma jarra um relógio barroco, uma grafonola, quinquilharia, pechisbeques, selos, calendários, brinquedos em madeira. Abrandou o passo, tinha calor, havia uma réstia de sol a brilhar nas pratas e nos vidros, um neozelandês gritava um canção  que não conhecia, uma mulher romena estendia a mão, um cão tocava fole e o Tejo, mais perto, exigia que descesse pelo túnel. Desceu. Um caminho escuro, gente, cheiro a fritos, aguarelas. Ao domingo, nesta zona da cidade, cruzam-se pessoas de todas idades, origens e raças. Aquela hora, ali, há um centro do mundo. Aproximou-se do rio, desceu um degrau e sentou-se. “Aqui estás tu, e agora? Queres conversar?” E ficaram entretidos um com o outro. Ondinhas vinham até à margem, desfaziam-se, voltavam outras, desfaziam-se uma vez e outra. A água escura e pesada a ir e a vir. Sempre outra. Com o rio que ia e vinha, arrefeceu, serenou. Reconciliava-se com o rio. Não precisava de mais nada. Levantou-se, virou-lhe as costas e deixou-o  com todas as coisas lá dentro.

sábado, 2 de novembro de 2013

Mariana

 
 
Mariana.
 
Uma das pessoas mais bonitas que conheci faria hoje cem anos, tinha os olhos azuis , as mãos brancas e os dedos muitos compridos, chamava-se Mariana e era minha avó materna. Com ela aprendi a ser vaidosa, o ponto pé de flor, a arrumar gavetas e a ser independente. "Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao marido para ir ao cabeleireiro. Não trabalho, porque não sei fazer nada, não aprendi uma profissão. Sou doméstica, mas não sou um animal." Não gostava da palavra doméstica, preferia  dona de casa . " É o que eu sou. Sou dona desta casa". Era dona e senhora. Levantava-se muito cedo.  Destinava a semana, ao domingo à noite. Rigorosa e disciplinada,  cumpria as tarefas com método e a horas certas. Almoçava-se à uma em ponto. Lanchava-se às cinco. Jantava-se às oito.  Segunda-feira era dia de ir à mercearia, separar a roupa suja, arrumar o que o domingo e o almoço de família tirara do lugar. Os jornais arrumavam-se, não se deitavam fora. “Podem fazer falta.” Tudo se aproveitava até ao fim. Os sapatos eram engraxados e voltavam para as respetivas caixas. A roupa de domingo que não se podia lavar à mão ficava dobrada à espera da limpeza a seco, invenção que ela muito admirava, ou da escova molhada em água e vinagre para tirar o pó e o cheiro a usado. Terça era dia de comprar peixe, a carne comprava-se à quarta. Quinta-feira passava-se a ferro e engomava-se. Sexta era dia  de pão-de-ló, de uma limpeza a fundo e de  barrela - panela ao lume, água e sabão azul e branco. Procurava as nódoas, se não desaparecessem, punha-as a corar ao sol. Entretanto era preciso fazer o que as estações do ano a e as festas mandavam: marmelada no fim do verão, britar azeitonas em outubro,  encher figos  para o dia de finados, salgar a carne  quando a lua de novembro permitisse matar o porco, fritos em dezembro… Assim, as horas passavam, organizadas, sem preguiça nem desperdícios. A avó Mariana estava sempre ocupada. Vigilante. E um coração grande de mãe e depois avó. Chorou quando o filho foi para Angola. Organizou com primor o enxoval que a filha levou para Moçambique. Bordou o vestido de batizado da primeira neta. “ O meu António não gosta de padres, nem de batizados, mas a minha neta está muito longe e esta é a única forma de estar perto dela”. A neta era eu e o episódio do vestido bordado foi-me contado mais tarde por uma prima, quase tia. Viu com os olhos muito abertos o homem chegar à lua. Aceitou de bom grado os detergentes, o ferro elétrico, a panela de pressão, o caldo Knorr, o terylene e os collants. “ Que boa coisa é a curiosidade dos homens, preguiça é que não!”. Gostava de ler, apesar de escrever muito mal. “Só tenho a terceira classe, mas faço coisas que ninguém sabe fazer”, dizia a rir. Gostava muito de rir. Os meus avós riam muito e amavam-se ainda mais. Tratavam-se por menino e menina e nunca os vi zangados. Quando numa noite quente de agosto o fogo devorou o sonho e o trabalho de uma vida, os meus avós choraram, agarrados um ao outro, horas a fio. A avó Mariana e o avô António perderam a alegria. Vi a minha avó, muitas vezes esconder as lágrimas e agarrar as mãos do meu avô, mas nunca a vi cruzar os braços. “Preguiça, nem pensar!” E os dias continuaram disciplinados, com o ritmo que ela lhes impunha. Era uma mulher extraordinária a minha avó Mariana, nasceu a dois de novembro de mil novecentos e treze, num dia muito frio e depois de a mãe ter tido uma noite inteira com dores tortas. “ A minha mãe sofreu muito, quando eu nasci. Coitadinha. Não gosto de festejos no dia de finados, que dia tão triste para se nascer!” Não, não foi um dia triste e tu eras uma mulher muito bonita e muito sábia, Avó Mariana.