segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Os teus fins de semana são sempre iguais.


Os teus fins de semana são sempre iguais.
 


Os teus fins de semana são sempre iguais.

Dançaram a noite toda, foi tudo naquele lusco-fusco a cheirar a cigarros, hálitos de mentol, gin tónico, transpiração derramada e perfumes que fazem questão em exibir numa saia mais curta, num decote mais atrevido, ele apreciou a silhueta de menina, a leveza do gesto, o bom gosto, na saia preta e nos sapatos de plástico a imitar verniz, ela, mais frágil, quase acreditou no beijo de oiro, nas mãos dele que não largavam a sua cintura. É na fragilidade e na tristeza que as pessoas se encontram, dizia alguém, ela preferia acreditar, que as pessoas se encontram na alegria de uma gargalhada fácil. À noite, é tudo encenado, preparado e ensaiado ao espelho, durante horas. Tudo escusado. A semana constrói-se na dureza de um futuro que se desconhece, compro uns pneus novos para o carro, ou mudo as lentes dos óculos do puto, se calhar este Natal não iremos à terra, as crianças têm de compreender que uma consola chega para os dois, a prestação da arca congeladora está atrasada, não visito o filho mais velho, porque isso já não fará grande diferença, agora na rua da frente abriu um pronto a comer, não é muito barato, mas evita-se o parque de estacionamento, as tentações do champô da juventude e o creme que tira os papos a volta dos olhos, este Natal não se incomodará com a Popota, eram coisas da Teresa e ela, agora, desde que vive com a mãe está mais preocupada com os sábados de Karaoke, coitada também com a vida que eu lhe dei! Ela está bem, o apartamento dos pais é em Massamá, já está pago, ela é filha única, tem um emprego estável. Educa bem os miúdos. Enfim, talvez fosse… Passo a semana a lavar camisas e a mandá-las passar a ferro, por isso, o fim de semana, é tudo que eu espero que seja. Casei muito novo, vieram logo os filhos, os horários e um raio de um trabalho em computadores que já não dá futuro a ninguém. Há vinte anos conhecera a Teresa enquanto dançavam o Thriller, eram tempos de muita loucura, o Tiago já tinha nascido e a Teresa pareceu-lhe perceber as frases que ele mal pronunciava. Foi tudo num ápice. Foi assim. Agora, ia para a noite à sexta, ao sábado e ao domingo era no centro comercial que gastava a nota que trocara na noite anterior, cinema e Macdonald com os putos. Já não eram muito putos, mas alguma coisa, algum exemplo teria de lhes deixar, no início eram os bonecos do Happy Meal. Era exemplo suficiente. Mais que suficiente! No último domingo o mais velho comunicou-lhe que teria de alternar os domingos com a namorada, a ele pareceu-lhe bem, se ela não aparecesse seria menos  UCBO a menos, as miúdas também comem que se fartam, e as copas dos soutiens…. lembrou-se da miúda esguia da noite anterior, era gira , copa mais pequena, dançava bem, já a vira várias vezes, mas não... aquilo era muita dor de cabeça, se ela quisesse dariam uma queca, se ela quisesse… ele teria de encolher a barriga, não tinha unhas para aquela guitarra, mas reparou no puto mais novo à  volta dela, talvez tivessem muito que dizer um ao outro, depois viu-os sair juntos, não lhes pareceu que acabassem na cama, dizem que só as mulheres têm intuição, os homens também têm. OH! Se têm! Clareava, quando saíram, ele mantinha a mão à volta da cintura. Ela gostava, gostou do sabor e do cheiro dele. Despediram-se. Com um bom beijo. Ela gostou do beijo e do que ele disse um bom beijo  e de  que ele não tivesse insistido no pequeno-almoço.

Nem no Tejo.

Entre eles havia dezoito anos de diferença, dezoito anos não é nada, o tempo é uma arbitrariedade.Não existe.Tinham passado dezoito anos que nunca existiram, dezoito anos de música, blusões e pulseiras de cabedal, marcas de iogurte, artes marciais era tudo diferente. E obrigatório. E o Foucault? O que é que tem o Foucalt?  És mais feliz por teres lido o Foucalt?

Foi para casa a sentir-se cansada e, no entanto, mais leve. Menos cabeça. Mais feliz? Isso quereria dizer exatamente o quê: mais feliz!

É-se mais feliz quando se leu Foucault?





sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Sabias que tens cara de quem gosta de sushi?!





Tens cara de quem gosta de sushi.

Entretanto, adormeci, fui puxada para dentro de uma nuvem e levava comigo um enorme cansaço e a certeza dos acordes da canção de Jonh Coltrane, Time After Time, que não te dirá nada, se calhar nem conheces – o que não me parece importante, comparado com a vastidão do prado verde que eu conseguia ver, deitada na nuvem que insistia em empurrar-me, ou talvez, apenas, me embalasse, neste sono a passar pelas brasas, que me cobria com outro sol, outro chão, outra vida. Estava bem, ali, naquele bocado de cama, feito de algodão, feito de ar, feito do pó dourado, (é verdade, que é dourado?) de que serão feitos os nossos sonhos? Aqui e ali, acomodava-me num buraco mais do meu tamanho…. deixava-me ir.  Não percebo nada de sonhos e o mais longe que consigo ir é à Pedra Filosofal e à perspetiva de um prémio milionário do Euro Milhões. São muito raras as vezes em que sonho este sonho de algodão e nuvens pintado a quimeras. Os sonhos que saem feitos e prontos dos livros da Anita são-me “estrangeiros” (Albert Camus apreciaria a minha comparação!) e, como não me pagam as contas, nem fazem de mim um ser mais etéreo, mais perfeito e mais completo, deixam-me muito indiferente, às vezes inquieto-me, mas durante  pouco tempo, Talvez, por tudo isto, este deixar-me levar entre um acorde do Coltrane e uma nuvem de algodão - ainda que estar de olhos fechados – me deixasse a pensar que teria abusado do gin ou o comprimido para dormir estivesse estragado....

 Li os Clássicos Russos, fui uma razoável aluna de Ciências da Natureza, acredito que Neil Amstrong deu o tal grande passo para a Humanidade e a penicilina já me curou uma infeção muito, muito feia, daí que a minha relação com o sonho seja idêntica à de uma amante fodida depois da vitória do glorioso - acreditava no que havia para acreditar e, no dia seguinte, o Senhor Zé continuaria a assentar as compras no Dever e no Haver, no caderno preto de capa dura, portanto, a nuvem que me chamava e o prado verde não me conduziam, ao que eu julgava ser, o tal do Nirvana de que tanto se fala, efabula e vende como pães quentes,  à noite, nas vésperas de feriado. Continuava a insistir no poder do gin e no verde do prado verde que, convenhamos, tinha uma bela cor, além disso, restava-me a música e o tal cansaço. Mas sonhava. E sonhava. E sonhava.

Quando o sol nasceu, eu já não me lembrava da cor do prado, ou da leveza da nuvem, mas foi a luz do sol a deitar-se, sem pudor, na minha almofada e os teus dedos a percorrerem o contorno do meu pescoço que, sem nenhuma compaixão, me disseram: Estavas a sonhar, tiveste um sono muito agitado. Sabias que falas durante o sono? Agora, que olho bem para ti, posso confirmar - tens cara de quem gosta de sushi.
Pois! Pensei eu.
Será esta a matéria de que são feitas as nossas esperanças?!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

"Isto sou eu a falar!"






isto sou eu a falar, não interessa nada.

….estou a precisar do mundo, entendes? sair daqui, saltar para fora destes degraus, olhar outros rostos, outros cheiros, consegues perceber a  minha pena ao ver passar sempre à mesma hora, à mesma luz, no mesmo banco, o mesmo comboio? para onde irão todos os outros comboios? que  haverá além, mais além, das nuvens? não consigo perceber esta vontade súbita de fechar a porta, não olhar para trás e seguir por aí… não procuro respostas, já sei as respostas, todas? sim, quase todas, não será isso presunção? não, são, apenas, muitos anos a ouvir que o dia de amanhã será outro dia, o ano tem trezentos e sessenta e cinco ou trezentos e seis dias, que depois do verão virá o outono, que uma grávida demora nove meses a dar à luz uma rapaz ou uma rapariga, que não vemos o nosso rosto, a ondular, duas vezes na água do mesmo rio, que a terra é redonda e que, agora, que sou grande não sou ‘serás o que deus nosso senhor quiser’ – sabe lá ele que eu existo enrolada nesta saia de pregas e camisola castanha! não sei se conseguirás entender esta ânsia de me partir, ou talvez de  me ver partir, ou apenas, de partir por aí, não consigo explicar melhor e não tenho a pretensão de achar que os teus sapatos são melhores do que os meus, da tua janela  vê-se o mar e achas isso muito bom, ainda bem,  olha,  eu  consigo distinguir, umas sabrinas trinta e seis de uns sapatos trinta e sete, reconheço as botas de fim de estação, os sapatos de saldo e os pés vaidosos de uma mulher solteira, porquê? porque  moro numa cave, sim e, também, sou boa a olhar, tão boa que percebo que o sacos das farmácias são cada mais pequenos, a fruta que a família de cima compra no supermercado já não enche dois sacos e, agora,  é o miúdo mais novo que faz as compras , preciso  abandonar este cheiro a roupa feia e pobre,  que insiste em ficar, no ar, nos dias em que não posso abrir as janelas, não quero o algarve, nem a costa da caparica e cresce-me um nó no estômago, cada vez, que penso que o mais longe que consigo ir é à trafaria, não me servem as tuas palavras, não as quero para nada, pois claro, que há muita gente que nunca viu o mar e continuo a receber o ordenado, certinho, no dia trinta ou trinta e um de cada mês, sabes o cheiro que fica no ar quando os cães cagam aqui, mesmo, debaixo da minha janela? o pão-de-ló continua a ter o mesmo gosto do da tia Zulmira, mas não cheirava  a caca de cão, pois não? eu já sabia tudo isto, quando vim para Lisboa? talvez soubesse, percebi foi tarde de mais que o cheiro a merda não melhora com o pedigree dos bichos, nem com a qualidade da ração, quero ir-me embora, ir daqui para fora, seguir, sempre, sempre, aquelas placas que dizem ‘Outros Destinos’ e eu a ir sem destino nenhum, entendes o  que eu quero dizer, quando te digo, que já não me apetece  sentar nos  bancos da estação de cascais, a ver passar os comboios? lá, ao fundo, está o mar, e tu sabes, que eu  gosto muito do mar, e do outro lado já pensaste no que poderá estar? já alguma vez foste ao outro lado? e, neste lado, já alguma estiveste? deixo-me destas conversas de chacha  que já não me podes ouvir e queres ver o jogo do benfica em paz?! sim, traz um frango assado com picante e muitas batatas fritas, não gostas de picante? então traz metade com picante e outra metade com molho de limão, ah!, só vais depois do jogo, com o frango que sobrar faço arroz de frango, agrada-te? não, homem, com o arroz já não se sente o sabor a picante, sim, farei, como tu gostas, o jesus é estúpido? mas tu não gostavas dele?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Escrever é triste.






Escrever é triste.
É triste escrever. São as dores que se espalham na folha em branco, escritas com a ponta dos dedos de unhas muito roídas, ou muito pintadas, escorregam pelo papel as lágrimas, as faltas, os pesares, os pedidos que se intimidam e ficam calados no bolso do casaco, às vezes, caem, quando os bolsos têm buracos, estão descosidos e não aguentam o peso das moedas. Escrever é triste, mais triste do que pôr flores em jarras, como dizia o poeta. Surgem e impõem a sua vontade de ser gente a quem nada se pediu, trazem do lado de dentro o cheiro a sémen e a sangue. São gente em que não acreditamos, mas não resistimos. Os desgostos que contam, os lutos que vivem. Escrever é dizer que esta alma não nos serve assim como é, queremos outra e as mágoas ganham forma de parágrafo, de períodos, com ponto final. Saem de um sítio que nem sabemos que existe. Triste. Um buraco sem fim. Crescem pessoas, aparecem histórias, sem felicidade, sem sombra. Escrever não é dizer dia de sol, porque um dia de sol não se escreve, existe, escrevê-lo é apenas dizê-lo, ficar nas palavras que alinham um dia de sol, com letras de teclas a saltar, ou caneta de aparo que range, mesmo que lá fora esteja a chover. É na ausência que se escreve, na espera, na saudade, na vontade de um corpo que pede outro. Em vão. Triste esta existência feita de quem lê o que nunca esteve escrito - falsas as histórias, invenções súbitas, vozes que querem calar, consolar o que não tem consolo. A voz de quem escreve é uma canção triste, esta canção triste que tem de ser escrita, cantada numa gramática velha. Esta voz a entoar uma melopeia. De noite, de dia, de madrugada. Chega e não pede licença para ser. Quase uma pessoa de corpo inteiro. Uma pessoa triste. Conta as desculpas das faltas, a razão dos prantos, as mãos a desfazerem-se na folha de papel. E a dor implacável. Que se diga que viver é uma condição e uma intenção não se escreve, porque não é triste. Escrever é triste como a crueldade da esperança. Uma morte que não deixa um rasto de memória. Escrever é triste como pensar muito. Como a revolta, a dor e a fome de quem não come há muitos dias. A procura de salvação na escrita é como escrever o texto mais triste. Sem Deus, sem deuses, sem redenção. Sem paz. Sem fim. As belas histórias- lindas canções de encantar, são escritos tristes, iguais ao raio de sol que se pintou no papel, enquanto trovejava. E, por isso, escrever é triste. É uma resposta à pergunta triste: e, agora, meu amor? Um romance, uma novela, um conto e teríamos a resposta intacta. Vidas inteirinhas arrumadas, junto às paredes, vestidas como hussardos ou czares. Não mudo uma linha, não sei responder – as histórias não pintam a minha razão de que escrever é triste.     

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

(Regresso à casa). A porta mais feia da casa


Andrew Wieth

                                 A porta mais feia da casa.

Regresso à casa, à primeira porta, do lado direito da rua, de costas para o rio. A primeira porta sem enfeites, nem postigos de vidro rugoso.  Uma porta e duas tábuas de madeira pintadas de tinta castanha pesada e escura, sem graça e sem brilho. Uma argola em ferro, redonda e imperfeita compunha uma fechadura que respondia com dificuldade a uma chave preta e grande. Era a porta do quintal. Não tinha número, nem moldura. Era a porta mais feia de toda a casa. Cada uma das tábuas estava presa ao chão por um trinco cilíndrico, que encaixava num buraco sem grande mistério que não fosse a força de um homem, ou os braços habituados a esfregar roupa, e a bater, sem pausas, uma dúzia de claras em castelo. Estava sempre fechada e, por ela, depois de um degrau a que eu não ficava indiferente e ensaiando vários passos e saltos  entrava num longo corredor de   teto azul, com ou sem nuvens, sol a brilhar, chuva torrencial, estrelas, frio de inverno húmido, ou o calor mudo que vinha do Norte de África. No tempo em que vivi na casa, a única magia destas lajes de tijolo coladas uma às outras era o céu que as cobria. Uma porta castanha e feia a abrir um longo e estreito caminho de paredes caiadas de branco. No verão, o branco da cal das paredes brilhava e feria os olhos mais sensíveis. Imaculadas no calor não resistiam à humidade da chuva e do Guadiana. Criavam umas bolhas de ar, que uns dedos, pequeninos e atrevidos, insistiam em fazer estalar. E, se o corredor da casa guardava mistérios e contava muitas histórias, este outro, exterior e de paredes caiadas, podia pertencer a uma qualquer história, de junho a setembro, ser ringue de patinagem e a rua estreita  que servia os interesses de quem morava na casa. Pela porta mais feia da casa entravam as garrafas de gás, as sacas de carvão e as caixas de madeira com batatas, abóboras e cenouras. As galinhas vivas e a cacarejar deixavam-se arrastar, pelas asas, com as patas atadas, por esse caminho, até ao momento que um golpe certeiro, no pescoço, as sangrava e transformava em canja. Eu olhava para aquele sangue todo muito encolhida e espantada. Como não gostava de comer, a infeliz criatura, degolada e depenada, naquele ritual de final de semana, já não assombrava os meus pensamentos, quando, tostada e muito arrumada, no tabuleiro aparecia na mesa do almoço de domingo. Ao fundo, crescera um enorme tanque de lavar roupa e um alegrete por onde subia uma trepadeira de folhas a imitar cabelos, com bagas vermelhas. Este caminho aberto ao céu, um tanque de lavar roupa e o alegrete desenhavam o quintal da casa. Nos dias mais chuvosos, quem viesse de galochas teria de entrar por essa primeira porta, percorrer o caminho até ao tanque, sacudir o guarda chuva, abrindo-o e fechando-o, várias vezes e deixá-lo a pingar num ângulo, mais ou menos abrigado, entre o tanque e o alegrete. Só depois e, pela porta da cozinha, podia entrar em casa. A passagem pelo corredor dependia das estações do ano, dos rituais católicos, dos almoços de domingo e dias de festa. Havia, ainda, neste corredor, por onde, se entrava pela porta mais feia, um buraco escuro e fundo tapado com uma grade de ferro, para esse buraco despejava-se o balde de latão com a água suja de lavar o chão, os caldos que azedavam e, claro, o sangue da galinha de domingo e do peru do Natal. Era um buraco muito feio, eu deveria manter distância, mas para onde não resistia  e, lúcida pecadora, jogava,  botões, bichos-de-conta,  alfinetes, lagartixas, baratas,  lápis sem ponta, bocados de pano e de papel, apenas, porque naquele buraco, tão encostado ao tanque, no corredor de céu azul, me parecia estar  a entrada para um qualquer inferno, abismo,  ou caminho secreto. Quando regresso à casa, consigo ver esta primeira porta castanha, áspera e pesada a abrir para um  corredor de lajes  castanho-tijolo, mas é o buraco negro que vejo com maior nitidez e inquietação. O inferno deverá ser assim -  um buraco de água suja, apelativo e sem regresso,  ao fundo de um  longo corredor.    
 
 (continua)

 




quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Intimidade (este texto tem bolinha cor de rosa no canto superior direito)






Intimidade (este texto tem bolinha cor de rosa no canto superior direito)

Sem restrições. Da curva do pescoço ao sinal cor de sangue seco. Gosto de ti, sabias? A mulher não precisa de palavras, não quer respostas – ainda, lá está, o sol. Encostados um ao outro, não lhes dói o domingo que se alonga. O anel de rubi, do Rui Veloso, sabes qual é? Sei, queres que ta cante. Quero….Deixa ver…tu eras aquela… tom, falta-me o tom, aqui vai. Que eu mais queria/ao meu lado no concerto nesse dia… o tom escapa-se, vou tentar… Mas tu nem ficaste meia hora/não fizeste nem um esforço pra gostar e foste embora…. Esta canção… Gosto muito, sei a letra de cor. Na vida também é assim, não te parece? Contigo aprendi uma grande lição/Não se ama quem não ouve a mesma canção. Às vezes, levamos tempo a perceber. Pousa cabeça na almofada, os olhos dele brilham de água. De repente, fico assim, é a saudade, faz-me falta todo os dias. Estás a lacrimejar? Canta outra canção. Estou o quê, a lacri…quê? La-cri-me-jar. Diz-se assim? Diz-se lacrimejar, lacrimejamos. Nada disto interessa, pode ser o Abrunhosa…Tudo o que eu te dou. Sim? Essa também sei. Eu sei que sabes, já ma cantaste. Pois foi. Vou ouvir o tom, agarrar o tom…Eu não sei que mais posso ser/ um dia rei,/outro dia sem comer /por vezes forte, coragem de leão/às vezes fraco assim é o coração/eu não sei que mais te posso dar…..falta-me o tom, desafinei….falta-me a voz…Que um homem também chora/ quando assim tem de ser…O tempo passa…Tenho de ir, gosto do teu corpo, de te tocar, tão jovens os teus mamilos, a tua pele que sente tudo. Como é possível? É a genética, ela ri-se. Vamos, não tens fome? Olhou para ele como se o conhecesse. Como deveriam ser os casais. Pensou no encontro. Sempre íntimo e frágil. Irrepetível. Há casais que vivem juntos uma vida inteira e não falam esta intimidade, não te parece? Talvez! Começava a afastar-se… Sem mágoas. Que separam. Queres um sumo de laranja? O coração dela batia, ouvia-se a cantar Tudo o que eu te dou/tu me dás a mim, talvez a felicidade também fosse assim: breve, frágil. Intimidade, a rimar. Riu-se. De que se está rir a menina? Nada de especial, estou a pensar que hoje ainda não choveu, apetece-lhe uma torrada com o sumo de laranja? (Sem restrições. Da curva do pescoço ao sinal cor de sangue seco. Gosto de ti, sabias? Não. Não sabia. O Amor é outra coisa. Não interessa nada.)

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Intimidades (este texto tem bolinha encarnada no canto superior direito)






                                 Intimidades

Menos que um segundo, a água transparente a cair no verde frio, muito frio e a gota de gelo. Orvalho - cristal e irrepetível - como um beijo, sempre o mesmo beijo. Sílaba decorada, a sair da linha de um dedo, das mãos do homem e da mulher. Segue o frémito que os agarra. Conduz os braços. Chama o gemido que há-de vir. As suas pernas conhecem o ritmo e acertam-se no compasso que sempre os uniu. Sem segredos, sem receios, sem pudor. O desejo no espelho do corpo de cada um. E o sol que entrou na manhã clara. Têm os corpos quentes. Lavados na água das mãos de um no outro. Um hábito sem mistérios, nem surpresas. Um homem e uma mulher que estão sós. Mas que pertencem um ao outro quando se encontram . Quando a língua, o sexo os empurra e os abraça. Estão juntos. Uma boca, tensão e pele. Ele agarra-a, cruza-a no peito. Levanta-lhe o cheiro do pescoço. Respiram o mesmo fôlego. Olham-se e, por breves momentos, sentem o arrepio no gesto certo de um beijo. Menos que um segundo. Como a gota no  ar frio, muito frio,  na folha verde. Irrepetível. Único. Íntimo. Uma frase. Sílabas, decoradas, da língua que só o homem e a mulher conhecem.

 A intimidade é essa frase. Quase perfeita.         

domingo, 16 de novembro de 2014

O complemento oblíquo e o crochet de Joana Vasconcelos



                                                                                                             Joana Vasconcelos


            O complemento oblíquo e o crochet de Joana Vasconcelos.

Acompanho o percurso da sonda espacial Philae; estou à espera da cura para o cancro; tenho esperança que a ciência consiga dar conta das doenças autoimunes; vejo com interesse as coleções primavera-verão do Tenente, da Chanel e da Fátima Lopes; oiço os grupos que os meus filhos ouvem - quer goste ou não -; percebo “o encanto” de Santos à noite; visito e consumo Zara, de acordo com as minhas possibilidades; assisto extasiada às conversas dos miúdos num linguajar a precisar de dicionário; não me parece que a juventude de hoje seja tão ignorante quanto  a “pintam”; percebi com facilidade que um Visto Gold era qualquer coisa parecida com o passe de um futebolista com pés de ouro, mas em bom, com mais políticos e o meu dinheiro à mistura; a cozinha gourmet não me traz saudades do arroz de favas do Jacinto; a Noiva e a Cinderela da Joana Vasconcelos não me deixaram indiferente (deixaram – pretérito perfeito simples do Modo Indicativo, na terceira pessoa do plural, certo?); uso artigos descartáveis, porque são confortáveis ( e quem disser que não usa está a mentir); reciclo o lixo e ensinei a reciclá-lo; mastigo pastilha elástica; vou a concertos; saio à noite para dançar; não sou contra a interrupção voluntária da gravidez; não me incomoda que duas pessoas do mesmo sexo  se casem e adotem as crianças que quiserem e puderem, aliás, esta questão nunca foi, para mim, uma questão; os graffiti nas paredes são uma legítima forma de contestação; não vejo a Casa dos Segredos, mas sei que existe; leio, sempre que posso, autores novos (desculpa lá, Pacheco Pereira); rendi-me à rapidez do Google; faço compras on-line,  tenho uma madeixa colorida no cabelo e, até, tenho conta no feicebuque e endereço eletrónico….bem, a lista já vai longa e ficou bem claro que o “meu tempo” não era melhor do que este, porque o “meu tempo” é este em que vivo e vejo crescer os meus filhos. Vamos, então, à gramática, digo, Dicionário Terminológico, vamos lá:“ O Complemento oblíquo é a função sintática desempenhada por um constituinte selecionado pelo verbo e realizado por um grupo preposicional ou por um grupo adverbial, podendo estes dois grupos constituintes ocorrer coordenados numa mesma frase. (….) Alguns complementos oblíquos são obrigatórios, não podendo ser omitidos; outros nem sempre estão realizados, mas são selecionados pelo verbo, estando implícitos (….) Verbos que selecionam complemento oblíquo (…) 1) verbos locativos,2)verbos de movimento, 3) verbos com o significado de duração, 4) verbos com significado  de necessidade ou carência (…) “ Perceberam? Conseguiram perceber  a função sintática que desempenha? Ficará  mais clara a interpretação de um texto com a explicação do que é um Complemento Oblíquo? Eu ajudo, este complemento, com nome, desde logo, enviesado, é o equivalente aos Complementos Circunstanciais – complemento circunstancial de modo, de fim, de lugar e por aí fora…. Já estou a ouvir os autores do Dicionário Terminológico a chamar-me nomes mais feios do  que oblíquo, o pior que me pode acontecer é bloquearem -me a conta no feicebuque e inviabilizar o blog. Percebíamos que a análise sintática, atividade, aliás, muito “secante”, nos ajudava a perceber, por exemplo, os versos de Os Lusíadas. Bem explicadinha, muito bem explicadinha, a divisão e classificação de orações funcionava como um  útil exercício para uma melhor compreensão e utilização da Língua Portuguesa. Não estou a dizer que a análise sintática e a divisão e clssificação de orações serviam para analisar e interpretar Os Lusíadas. Nada disso. Escreveríamos mal se não tivéssemos aprendido os complementos circunstanciais e a dividir e classificar orações? Não sei, não tenho respostas. Tenho perguntas,  muitas perguntas – ficaremos a escrever e a falar bem, se soubermos o que é um Complemento Oblíquo e um Modificador? Mudar, alterar e modificar a terminologia daquilo a que chamamos Gramática torna-nos mais modernos, mais avançados, mais deste tempo, mais capazes ?
Não sei.

Consigo perceber a intenção do Dicionário Terminológico, pelo menos,  quem não é leigo na matéria entende que o dito pretende de forma abrangente – que bela palavra! - fazer uma tão completa, quanto  possível,  descrição da língua.

E agora, como explico tudo isto a um adolescente que não tira os auscultadores, porque está a ouvir os Imagine Dragons? Se ele estivesse a ouvir As Variações de Goldberg de Bach a minha dificuldade seria idêntica.

Se calhar ainda não pertenço, por inteiro, a este tempo.

 

(citações retiradas  de Domínios, Gramática da Língua Portuguesa da autoria de Zacarias Santos Nascimento e Maria do Céu Vieira Lopes – esta gramática é uma das várias que consulto para descodificar o Dicionário Terminológio)



sexta-feira, 31 de outubro de 2014

estás a ver a sombra?


 

                            Auto-retrato Charles Thurston Thompson, Inglaterra 1853 ("Figuras de Espanto")





estás a ver a sombra?

estás a ver a sombra? assim estás contra luz, ficará uma mancha branca e indefinida, eu não gosto do lado direito, o meu melhor ângulo é o outro, o lado esquerdo fica melhor,  para me fotografares os olhos a brilhar, tem de ser de frente, mostra, deixa-me ver, não gosto, tiraste-me uma fotografia à boca, qual é o interesse de tirar uma fotografia à boca? a preto e branco também se percebem as rugas do pescoço, fizeste de propósito. As fotografias a preto e branco têm mais luz, maior definição, a fotografia é a preto e branco. Sim,  estou a divagar, estás atrasado -  há duas horas que espero por ti, foste comprar um cartão para a máquina? inteirinho para mim? fotografias minhas a preto e branco? há duas  horas que te espero, estacionaste mal o carro? a menina da caixa reconheceu-te e tiveste de fazer conversa?! pois, és bem educado, eu sei, o trânsito fica caótico quando chove, hoje choveu? em que cidade? insistes nas fotografias, ainda vou ficar mais bonita, ainda mais bonita? deste as mesmas desculpas a última vez que te atrasaste, lembraste? íamos ver o rio…  apanha-se mais depressa… clichés, provérbios de algibeira, o que tu quiseres, eu não quero mais fotografias, pronto, não quero, queria e, agora, já não quero, gosto das fotografias que me tiras, tiraste-me fotografias nua, dessas gostei assim-assim,  gostámos os dois, o teu olhar não te atraiçoa, não estou arrependida, de que adianta o arrependimento depois de o mal estar feito? o “mal” não é despir-me para os teus olhos que nunca te atraiçoam, o ”mal” é ficar quieta, sossegada, muda à tua espera, na certeza de o tempo a passar, e eu aqui, aí tens tu o “mal”, só tu me fotografas a alma? a alma? não sejas ridículo, que sabes tu da alma, pára, a luz já não está boa, o sol desapareceu, ficarão muito escuras, serão  sombras e manchas, sem  sentido, nada disto faz sentido, não quero que me tires mais fotografias, não quero, o meu vestido é bonito? preto, bonito e fácil? um vestido fácil?  vestido fácil?! o que é que queres dizer com isso? o perfume dá-te vontade de…, não me agarres as mãos, não me prendas as mãos, as mãos não – desequilibraste e ficas com a minha alma, a preto e branco, nos  teus olhos, vesti-me assim, só para me fotografares? estamos com muito sentido de humor, queres ver-me rir, uma gargalhada, só uma?! então não tens a minha alma, nos teus olhos, no cartão da tua máquina? de que estás à espera? vá, faz-me rir.  Vou mudar de vestido e acender a luz. Não consigo ver as sombras.








terça-feira, 21 de outubro de 2014

Para a Lita, com Amor.



Deixava os passos arrastarem-se, pequenos e lassos. Adiava o movimento do pé esquerdo a acompanhar o pé direito. O pé direito a deslizar. Devagar. Surdos e mudos, os movimentos. Como se o tempo não fosse aquele caminho comprido, aquela rua movimentada. Imaginava outro país, outra rua, outro rosto. Outra vida. Olhava para o relógio. Indiferente ao atraso, indiferente aos cheiros, às pessoas, às casas. Indiferente à rua. Queria chegar tarde, atrasar-se. Não chegar a horas, não cumprir, não fazer, não obedecer. Os passos diminuíam o ritmo. Suava. Sentia o arrepio, lento,  a tomar-lhe conta do corpo. O medo a pesar-lhe nos ombros, a agarrá-la pela cintura. Uma dança a pedir sexo, sem voz, descompassada. A dor, o medo e o sangue. A pele em ferida. Uma vez e outra. A roupa rasgada pelo  prazer que não lhe pertencia. Nítida. A  imagem do medo e das dores. As pernas tremiam-lhe. Parou. Apoiou-se numa montra. Evitou olhar o reflexo. Encolheu-se, quando lhe tocaram, sem querer, naquela pressa de entrar para o autocarro. Apertou os braços, em cruz, à volta do pescoço. Respirou fundo e sentiu os gritos no ventre socado, no peito sem forma. O eco da sua miséria, os insultos num vernáculo ruidoso e mesquinho. Os soluços e os pulsos presos latejavam. Baixava a cabeça a um olhar mais curioso. Os passos queriam parar.  O corpo pedia-lhe silêncio. Olhou para o relógio. O tempo não tinha parado. Chegaria muito tarde. A casa era um buraco onde chegaria com  horas de atraso. Abriria a porta com as mãos húmidas e a pele colada à roupa. Enxovalhada. Sem graça. Um boa noite, em murmúrio, a esquivar-se à mão grande e fechada. Em vão. Sentiria as costas vincadas na parede suja, no chão gasto, na porta da cozinha. Uma vez e outra.

(continua)

 

 
                                                                                     Fotografia retirada de .folhadomate.com/blog


                       






 

 

 

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Agarrar a lua.




Uma folha arrancada de um caderno com as folhas soltas.

Não deverias ter pensado só em ti.  Não podias  ter feito isso.  Lamento, mas agora já não há mais nada que possas ser ou dizer - não te quero a meu lado. Arrruma as tuas coisas. Leva a gata, não te esqueças da caixa de areia e das latas de ração. Fecha  bem a porta, quando saires. Deixa a chave na caixa do correio. Vai. Adeus. Sim,  faremos o luto sozinhos. Nem o tempo nos pertence. Morreremos  pessoas diferentes.
Adeus!

 
 
(Agarrar a lua, comprar um vestido encarnado e dançar até ser dia. Outra vez.)
 
 
 
 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Um gin com água tónica?! Oxalá fosse!




(Um gin com água tónica?! Oxalá fosse!)


 Até podia ser pieguice, chamada de atenção, um pedido de colo. Podia ser. Sou - só - uma pessoa. E as pessoas costumam sentir e pedir amor. Mas hoje não. Podia ser. Não é. Quero sair da cama. Seguir em frente. Não consigo. Não me levanto. Puxo o lençol e enrolo-me nas flores bordadas no fundo quadriculado castanho e branco. Desfaço a almofada entre o pescoço e o cabelo que ainda cheira a champô, estou de lado, sobre o coração. O corpo pesa e treme. Não tenho frio, a chuva brinca com a janela. Desenhos a dedo. Pó e água. A luz amarelinha recorta uma sabrina, as mangas de uma camisa, o título de um livro e o marcador colorido que diz amigos para sempre. Oiço as crianças a correr para a escola, portas a bater, o chiar da roldana de um estendal. São horas de seguir em frente, encetar o mesmo caminho, pisar a terra, apontar os trabalhos de casa, abrir outra página. Continuar. Chego o corpo para a beira da cama, faço força com os pés, arrisco uma alavanca com o cotovelo, levanto a cabeça, respiro fundo, olho para cima, não vejo nada - uma mancha escura é a linha da parede e a esquadria do teto. Regresso no instante seguinte, ou no tempo que parou. Andei a pairar no buraco sem fundo, como nos pesadelos de criança. Tento outra vez, evito olhar para cima, para a espiral em que o teto se transformou. A cabeça dança. Às voltas. Sem música. Não percebo se a dança é dentro ou fora. Só sei a cabeça. A espiral. Às voltas. Círculos perfeitos. Grandes. Mais pequenos depois. Na mão direita, na mão esquerda. Não há dor. Só esta dança, em círculos, a agarrar o pescoço, o tronco, as pernas. A cama sou eu. O teto continua a fugir. Já não oiço a rua. A espiral a puxar o quarto para o buraco negro é tudo o que existe. Como nos pesadelos de criança.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

"- O teu cabelo está tão comprido."






(- O teu cabelo está tão comprido!)

- Sim. Não o corto desde o verão. Há três meses que não nos vemos. Andamos de um lado para outro com as nossas vidinhas, o costume, sabes como é. Nunca temos tempo para nada. Encontramo-nos poucas vezes. A cidade cresceu para o rio, para o outro lado da cidade. Tu foste com ele. Tens as tuas razões. Eu fiquei neste lado. Sei que não gostas, inventas histórias de assaltos, falas dos velhos que moram em casarões cinzentos, das janelas sem vidros. Dizes que a minha rua não tem uma farmácia. Uma padaria. Um café. Nada. Nem te respondo, talvez tenhas razão. Cada uma fez as suas escolhas. Ficou a cor. As margens. A luz. Que nos pertencem. O céu da mesma cor. O coração um só. E não, não estou sempre a dar-te prendas. Lembro-me de ti e, por impulso, compro-te um pechisbeque. Se não gostares, não uses. Terias preferido uma panela de sopa, uma travessa de rissóis, bifes panados. Já não me lembro se gostas de croquetes. Os miúdos gostam e comem muito bem. Os meus e os teus. Poderíamos trocar uma travessa de lasanha por um tabuleiro de bacalhau espiritual. Aconselhar-me na compra de um par de sapatos, dar a tua opinião sobre o quadros que vou pendurar na paredes do escritório. Ouviríamos,  sentadas no chão da sala, os parágrafos acabados de alinhar. Os mexericos da moda fariam soltar as gargalhadas. Poderíamos ir juntas ao supermercado, aos saldos, ao cinema. Nunca nos faltaria o açúcar e beberíamos um Nespresso quando nos apetecesse. Iria contigo passear o cão. Tirarias a roupa do estendal numa nuvem mais carregada. Teríamos a chave da casa uma da outra. Não repetiríamos os livros, falaríamos mal dos homens, com o tempo aprenderíamos a sofrer melhor. Sem lenços de papel. Acredita, amiga, que tudo isto tem mais graça que o penduricalho que te ofereci. Não gostaste? Não te rales.

Que importância é que isso tem?

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O exame de Ciências Naturais




O exame de Ciências Naturais

O calor batia-lhe nas costas, conseguia ver a sua sombra desenhada no chão, a ponta do pé direito encostada à cabeça, o ombro esquerdo colado a um dos lados da laje rosada. Em redor, as vitrinas, as escadas, as paredes verdes. Uma janela com o vidro cortado ao meio por um fio de telhas, a desafiar o céu, à sua frente. Esperava. A sua ansiedade, uma vez, a salvar o miúdo. Chegar quarenta e cinco minutos antes do exame foi quanto bastou para não o perder. A campainha tocara há instantes e, naquele momento, precisou de uma fé, de acreditar num deus, uma divindade que soprasse aos ouvidos do miúdo as respostas certas ao questionário de muitas páginas. Sabia que o miúdo tinha um anjo da guarda. Como toda a gente. Olhamos para o céu, gostamos de uma nuvem e escolhemos o anjo que nos acompanhará a vida inteira. Sabia que os seus miúdos já tinham olhado para o céu. Ciências Naturais, três anos de Terra, pedras, meio ambiente, cadeia alimentar, corpo humano, doenças sexualmente transmissíveis. O miúdo esforçou-se. Ela sentia-lhe o frio no estômago, a transpiração nas mãos. No caminho desejou que o dia de hoje fosse feriado, nem lhe explicou que os santos e as revoluções não apagam as responsabilidades. Ontem, antes de adormecer, disse-lhe que estava nervoso, não te vou dizer se me correu bem ou mal, não me perguntes nada, esqueceu-se de acrescentar é a vida que escolhemos. Esperava. Fugia do sol, apoiou-se no pilar cinzento de pedra, reparou que o Scarlett das unhas começava a estalar, desejou ter um computador, um ipad. Poderia trabalhar. Escrever é tão difícil. Admirava os escritores, os músicos, os pintores. O trabalho salva-nos, a arte também. Na tarde parada no seu tempo de mãe não passava ninguém. Nada acontecia. Conseguia ouvir as conversas das funcionárias, a telenovela, a receita de uma sobremesa rápida, uma irmã que morava em França que não viera de férias. Esperava. Apareceu um miúdo muito bronzeado, perdido, a perguntar pela professora com quem combinara encontrar-se, pode dizer-me as horas? Sabe onde é a sala vinte? Uma miúda muito loira de minissaia de ganga pegou-lhe no braço e levou-o. O director já chegou, vamos. Ouvia pela terceira vez, dia doze, as aulas começam dia doze, a funcionária que respondia tinha  voz de locutora de televisão, uma permanente apertada mostrava que estava preparada para o início do ano lectivo. Pensou no miúdo, fazia hoje dezasseis anos, estava a enfrentar uma prova de fogo. Talvez, a primeira. Os sentimentos confundiam-se.Tristeza, orgulho, alegria. Benvindo ao mundo para maiores de dezasseis anos. Está a crescer. O miúdo, trinta centímetros mais alto, aprendia as primeiras palavras. O telefone continuava a tocar. O sol afastou-se um bocadinho, poderia sentar-se no muro mais fresco, ver o movimento da cidade, ao fundo do átrio, num rectângulo estreito e alto. Não percebia os contornos, mas via passar o ruído, homens, mulheres, crianças, autocarros, automóveis. Na tarde quente o vento que mal levantava os vestidos e os cabelos refrescava a ansiedade e a espera. Olhou para os quadrados perfeitos do chão, a sua sombra tinha desaparecido. Um homem e uma mulher conversavam à sua frente, olharam para ela, encolheram os ombros, franziram a testa. Não lhes explicou nada. Começava a doer-lhe a mão. E a esferográfica? Teria o miúdo trazido esferográfica? Com os dentes puxou as peles do polegar direito. Arrancou uma pele mais a jeito e o sangue apareceu da cor da unha. As vozes eram barulho. Incomodavam-na. Esperava.

Quando se acorda com dezasseis anos, um exame numa tarde quente de Setembro é uma lição.

Ela esperava.                                                                                            

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lugar número três.





Lugar número três.

    Marcou o livro na página cento e vinte e dois, “ Wallander sentiu-se irritado por ela se meter na conversa”, mais tarde perceberia a irritação de Wallander. Encostou a cabeça ao vidro e deixou-se ir, percebeu o calor que seria o dia seguinte, o céu tinha as marcas do sol e ao longo da estrada, desprendia-se da terra o castanho desbotado, o verde salpicado de azul anil e o  laranja aceso. Um Alentejo longo desviava-se do mar e roçava, sem pudor, aquele céu quente de um domingo de Agosto. Para trás, ficou o mar prateado, luminoso, as casas desordenadas, o areal estendido na preguiça da tarde de verão. As cores do fim de tarde confundiam-se com as luzes que se acendiam e os faróis que riscavam de encarnado a estrada cinzenta. O azul do céu escurecia a noite não tardava, o fogo do entardecer esmorecia no horizonte. Insistentes. As luzes da cidade aproximavam-se. O Tejo não tardaria. A sua rua viria em seguida. A casa abriria o silêncio, o cheiro leve a sândalo, as sombras desapareceriam, quando rodasse a chave na fechadura. A dor no peito continuava a fazer-lhe companhia, abrandou na estrada, diluiu-se no entardecer, mas voltou com o silêncio e o sândalo. Perdera a conta aos sonhos, às esperas, às expectativas. Fininhas. As dores perseguiam-na mais que a sombra, mais que o amor. Não percebia, não adiantaria cruzar os braços, fechar os olhos, encolher os olhos, esconder-se no fundo de uma gaveta. Não era estar só. Ser só. Arrumar a solidão. Não. Explica-se uma dor de cabeça com Paracetamol, como se resolve a dor de todos os dias? O peso? O medo? O que fazer a seguir? Pensas demais, dir-me-ias, se tivesses nascido inseto a tua vida seria breve, sem emoções, sem alegrias. Segue o teu caminho, lembra-te da poesia, dos dias de sol, das tuas vitórias, insistirias. Não te daria ouvidos. Nunca o fiz. Ergueu a cabeça, arrastou as malas para o canto da sala, aqueceu o jantar do miúdo. Abriu o correio. Nada de novo, também não estou à espera de notícias. Sim, chegámos bem e fizemos boa viagem. Não, não havia muito calor, sim… Ar condicionado, gente bem-educada. O miúdo dormiu tranquilo, recomeça a estudar amanhã. Claro, continuarei a telefonar todos os dias. Uma noite descansada. Até amanhã. Sentou-se a olhar para as mãos manchadas pelo tempo. Afastou a passagem do tempo, respirou fundo… amanhã, terça-feira, quarta-feira, acabar o trabalho, a vidinha marcada no calendário, encetar outra rotina. Aprenderia a respirar, cortaria o cabelo, veria os episódios gravados de True Detective, um filme ou outro, aguardaria o resultado dos exames. Que farei a seguir? Insolente, a dor voltava. Perfeita e redonda. Incómoda. Já é muito tarde, vai dormir. Não te esqueças de lavar os dentes.

Quando adormeceu ouviu o vento arrastar os contentores do lixo, ventoso, mas muito quente, o dia, amanhã, ainda é agosto, verão…

sábado, 16 de agosto de 2014

Resgresso à casa - o corredor (continuação)

Andrew Wieth




O corredor.

Regresso à casa. Entro pela porta principal de madeira, ferro e postigo de vidro rugoso. Os pés saltam o degrau de pedra e, um atrás do outro, desenham triângulos, quadrados e retângulos nos mosaicos pretos, brancos, cinzentos. A mancha regular desenhada com mestria era o longo corredor. Teria sete ou oito metros de comprimento, mais ou menos dois de largura e era por ele que a vida passava, entrava e se instalava. Eu e os meus pés pequeninos inventávamos mil histórias, viagens, partidas para destinos desenhados ao milímetro, impostos pelas dimensões de cada um dos mosaicos. De joelhos, contava as esquinas, as vezes que a cor preta se repetia, em que quadrado surgia a cor branca, abria as mãos e media os palmos que separavam a porta da rua, da porta do escritório, imaginava o que mais tarde percebi serem linhas diagonais, e corria  os indicadores pelo  rodapé, moldura  suave, lisa e fria fita cinzenta, que  separava a mancha escura do chão, do tecido claro esbranquiçado da escaiola da parede, rematado com os laços encarniçados, iguais, em todas as outras paredes da casa. Aquele longo corredor mudava de cor ao longo do dia. Ao longo do ano. Quem entrava na casa, nos dias frios e chuvosos, de inverno, sentia o conforto de um horizonte seco, quente e confortável de luz filtrada pelos vidros coloridos do postigo, que desenhava formas no preto mais sombrio e no branco mais frágil, dos mosaicos do chão. À direita, um bengaleiro com um espelho oval e ganchos de metal permitia pendurar, sem pressas, os casacos e os guarda-chuvas. Nos dias menos luminosos, aquela armação de madeira, espelho e ferro era a personagem principal das minhas histórias de fantasmas e lobisomens. Encostava-me à porta de madeira-mel  do escritório e via criaturas enormes, braços a agarrar seres sem forma, gotas de água do tamanho de lagos. Ficava quieta, calada e muda a admirar aquela gente extraordinária. Eu era a menina, única criança da casa, não apreciava bonecas, nem tachinhos, nem panelinhas entretinha-me a falar com tudo que em meu redor pudesse transformar em histórias com fadas, gigantes, e outras pessoas que só eu tinha o privilégio de ver e ouvir. O corredor não era o meu lugar da casa, mas era o sítio, que pelas suas dimensões, mais voltas ao mundo me permitia dar. Nos dias mais quentes de verão, aquele corredor era fresco, arejado e brilhante. As sombras eram substituídas por manchas coloridas que desfaziam o calor e o bafo quente do Suão. Nesses dias, sentava-me num banquinho a ver o chão mudar de cor, abrigada do calor, sem tempo e no silêncio, apenas, interrompido pelo ritmo das tarefas domésticas. Mas esta criança não se cansa de estar e falar sozinha? De facto, eu não estava só e não percebia a estranheza de falar sozinha. Se, mais tarde, os livros do escritório me salvaram e mantinham comigo conversas intermináveis, neste tempo, o corredor que mudava de cor e luz foi uma das minhas melhores companhias. A porta guarda-vento de vidros coloridos em semicírculo, as portas dos quartos, do escritório e da sala de jantar, de madeira mel, os vasos de ferro que escondiam o barro e as raízes dos fetos, das sempre-vivas e dos cartuchos, as floreiras de pé alto e uma cadeira de braços estofada compunham o corredor. Quem entrasse na casa não ficava indiferente às simetrias desenhadas no chão e nas paredes, ao viço das plantas, nem às cores dos vidros, que nos empurravam para a sala de estar, grande e solar  a completar a harmonia que se adivinhava, quando a porta número sessenta e seis, na rua Conselheiro Frederico Ramirez, se fechava.





 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Na esplanada





Na esplanada.

 Este ano o vento varre mais depressa as palavras, as gargalhadas diluem-se e as razões que, por vezes, se desencontram, desaparecem na temperatura que este ano desceu nas mesas e cadeiras onde todos os anos sentam o inverno e as dores que viveram. Todos os anos, há histórias diferentes, um elemento novo, um amigo acabado de chegar, uma sombra para contar, o peso de uma morte. Celebra-se um ciclo que acaba e fazem-se planos para o ciclo que virá no primeiro dia de setembro. Ela gostava daqueles encontros, com mais ou menos vento, as noites cálidas do Suão que tudo arrastava eram as suas preferidas. Não se expunha, contava histórias, nunca as suas, ria e fazia rir. Bebia um copo de vinho. Ajudava às gargalhadas e ouvia as gargalhadas dos outros. Este ano vem mais séria, mais fechada, mais triste. Ouve as histórias, partilha as gargalhadas, conta um, ou outro dia mais longo, esconde as lágrimas e senta-se no lugar mais afastado da mesa, numa ponta, numa cadeira que procura na esplanada cheia, é a última a chegar, às vezes, nem chega, olha em redor: tudo igual, repetido e igual. Resta-lhe o grande amor e respeito pelos amigos - não consegue esquecer o inverno longo, a espera interminável, as dores, a expectativa do que há de vir. Assusta-a  o início do mês que mais aprecia, o mês que sempre foi seu, as manhãs mais cinzentas, o sol mais pálido, aquela luz - o brilho mais tímido daquele mês sempre celebrado pelas suas  escolhas. Pensa no regresso, as rotinas que se inauguram - nunca são iguais - os exames do filho, o afastamento dos pais e a partida do homem, que no lugar de um gesto gentil,  lhe deixara um enorme vazio. Ela já sabia, adivinhara o fim, nas primeiras palavras, no primeiro toque, no primeiro entusiasmo. Acreditara na pele a entender-se com a sua pele, a novidade do desejo que vira nascer num corpo ainda tão cheio de alegrias, histórias e promessas. Encantara-se com o tempo que parecia que a tinha esquecido, o corpo de menina que despertara na roupa mais justa, no esquecimento da traição, na doença a partir, sem rasto. Deixara-se ir. Ela tão cética, tão segura, tão guerreira, lutadora, a melhor aluna, a amiga compreensiva, a menina das roupas arrumadas e de bom gosto. Deixara-se ir. Ele, mais tarde, quando ela lhe dissera que as suas noites nas férias eram conversas a fechar esplanadas, não acreditou, pensou no ritmo frenético que os tinha empurrado para a mesma cama, na primeira vez que se tocaram, ao de leve, no rodar da cadeira da discoteca onde tinham dançado a noite toda. Ela não sentiu a necessidade de lhe explicar nada, mas explicou. Num momento, naquele momento, nas dúvidas, na boçalidade da sua observação percebeu o mundo diferente em que viviam, a indiferença dele, a falta de mundo (perdoou-lhe e entendeu), não se tratava de falta de paixão, que nunca pensei em paixões, não estava nos meus planos uma alteração no meu quotidiano, uma quebra no meu dia organizado, um pouco frívolo e vulgar, mas disciplinado, conquistado com os meus dois pulsos. Sorria, a sua ingenuidade, a banalidade dos seus sonhos, da sua vida. Nas conversas, nenhuma das suas fraquezas ela lhes contaria. Temia o mês de setembro, este ano, partiria para a cidade mais cedo. Sabia que o verão lhe tinha sido leve e que a sua atitude de homem comum, o copo de gin tónico, a vitória do Benfica, uma noite como DJ lhe tinham bastado. Teriam? Como seria quando se encontrassem? Se encontrassem? Outra vez? Improvável! Talvez não. Num mês acontece uma vida, não tenho tempo, nem espaço para mais inseguranças. Os miúdos estão em primeiro lugar, vou voltar à escola, preciso de separar o lixo (metafórico, não é?), um livro para organizar, sonhos para alinhar. Não, tenho uma vida para viver - um projeto de vida para ordenar por ordem alfabética. Estou proibida de beber gin, por isso, não serei boa companhia. O que resta então? Não sei, talvez nada. Hoje, agora, nada. Prezo esta liberdade de mulher sem macho. Esta liberdade de poder escolher entre um bom livro e uma noite a dançar, sou a mulherzinha “chata”, gira, às vezes, mas tão vulgar, que no meu lugar do balcão, onde costumo estar, se eu lá não estiver, estará uma outra. Mais gira. Mais jovem. Menos complicada e que mora. Logo ali, ao virar da esquina. Talvez menos vulgar no seu top Zara e sandálias Seaside. Cabeça mais simples, menos, que não telefonará a desoras e que da vida terá as expectativas normais das mulheres normais,  apenas, uma vida normal. Como é costume, como as amigas. As primas. Eu sou uma mulher banal. Igual a todas as mulheres banais da minha geração. É claro, que nada disto é objeto de conversa na esplanada. Por pudor. Por amor. Por não ter interesse nenhum. Iremos ver a chuva de meteoritos, rir dos disparates que fazíamos, tentarei ficar mais alegre e esquecer que entre o inverno que passou e o que há de vir houve um verão ventoso. Nada de especial. Tudo igual. Banal. Como eu – uma mulher banal.

Daqui a pouco, a esplanada estará cheia de  amigos, fará um esforço para ser mais alegre, mais tolerante….Como sempre foi.

(Eu disse-te, talvez, tenha sido a primeira coisa que de mim fiz questão de dizer, que não tinha graça nenhuma. E é só. Talvez. Quanto baste.)
O telefone não para de tocar, sim, iremos todos para a esplanada, depois do jantar. Ah! Hoje é a minha vez de pagar os cafés? ‘Tá-se bem, lá estarei. Sim, correu bem, trabalhei a tarde toda. Até logo.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

E, no entanto, penso em ti.





E, no entanto, penso em ti.

Venho da praia, estou cansado, trago o sol vivo na pele, o desejo serenou. Tiro o sal num duche muito demorado, gosto da água a desfazer o gel de banho, rolos de espuma a percorrer-me o corpo. Aos poucos, o bronzeado aparece. O sol não me escalda a pele. Seco-me bem com o turco grosso. Cheira a lavado. Não me esqueço da loção après soleil. O desodorizante. Deixarei a barba para amanhã. Um dia de praia e umas amigas. Soltámos gargalhadas, passeámos pelo areal, uma amiga de cada lado, os meus olhos desviavam-se para os biquínis coloridos. Sou um homem temporariamente só, hoje, à beira-mar, não estive só. Fiz o que quis. Engulo um prato cheio de  um caldo de galinha, enrolo uma lâmina de queijo numa fatia de pão e deito-me. Ainda passo pelo espelho e gosto do que vejo. Gosto sempre. A cor da pele contrasta com o azul dos olhos. Um homem elegante, enfim, alguns vestígios do gin tónico, mas a pose um ângulo recto perfeito. Ajeito a almofada, estico as pernas e o lençol. Talvez a noite arrefeça. Acendo um cigarro, experimento um zapping, deixo-me levar pela música e as imagens de um filme antigo. Inclino a cabeça, jogo os olhos pela sombras do quarto arrumado, páro na janela, a persiana fechada, o vidro a deixar entrar o ar, as espirais do fumo dos meus cigarros a saírem. Sem destino. Baixo os olhos, e apesar da penumbra, consigo distinguir a enorme mancha de humidade. Muito escura. Muito espessa. Feia. É apenas uma mancha de humidade. Uma mancha negra num quarto de um prédio de apartamentos, vulgar, inócuo, no subúrbio. No subúrbio cinzento que cresceu, sem beleza, junto ao emaranhado de estradas. Longe da cidade. De repente, esqueço a praia, a cor dos biquínis, a cor da minha pele bronzeada. E vejo a minha vida parada, muito quieta, muito só, escorreita, naquela horrível mancha. Uma vida cinzenta num bairro de subúrbio. Estou desempregado, sim,  sei que foi uma opção, em breve voltarei a fazer o que sempre gostei de fazer. Em breve. Olho para trás, nunca o faço, evito o passado, mas a mancha empurrou-me para a realidade. A realidade?! Uma vida. Um emprego. Uma mulher, de vez em quando, nesta cama. Eu, de vez em quando, noutra cama qualquer. Um filho que mal conheço. O buraco no peito desde que a minha mãe partiu. A última, ou talvez tenha sido a penúltima mulher, que se deitou nesta cama disse-me que os homens só crescem, só se tornam adultos, depois de as  mães morrerem. Não achei graça nenhuma. Não ri. Continuo como sempre fui. Único. Senhor da minha vontade. Agora. Mais livre. Não gosto de prestar contas a ninguém e a minha mãe faz-me falta.Todos os dias. Penso nela. Sou o centro da minha própria saudade. E ela faz parte desse mundo. És um bom menino, ouvi-a dizer enternecida. Era um só. Sim, sou um bom homem. Acho que sou. O meu umbigo. Um homem adulto, temporariamente só, com síndrome de filho único, disseram-me. Nem sei o que isso significa. Não me interessa. O amor incondicional das mães tornam-nos egoístas? O sol e a lua no mesmo peito? As ideias feitas, prontas e inalteráveis. Intolerante. Ávido. Curioso. Palavras que conheço. De cor. Par coeur. Em francês soa melhor. Vaidoso. Um homem Incapaz da entrega total? Incapaz de amar? De se apaixonar? Mãe, tenho saudades tuas, serei, por isso, um homem adulto? Serei, agora, um homem adulto? Terei crescido? Já não caibo na moldura, mãe. Li, algures, num poema. A mancha de humidade é o quarto sombrio e abafado. Um quarto. Uma mancha escura. Irregular. Talvez a lixívia consiga apagar a mancha. Apagar esta vida mais cinzenta. Se esfregar com muita força, o branco da parede aparece e a vida voltará. Igual. Repetida em vinte e oito anos de noites loukas (com K, não há outra forma de escrever louka), balões de gin, água tónica, morangos. Muitos cigarros. Muitos amigos. Jantares, festas. Só amizade. De todas as cores. Mulheres diferentes em intervalos de tempo, mais ou menos, longos, a música no ar, o Benfica campeão, a pose de cavalheiro, a atitude de um gentleman, o espelho a dizer-lhe  que sim. Livre, sem compromissos, sem tristezas, sem mágoas. Pois é, a  solução é lavar a maldita mancha com muita lixívia. Amanhã, trato disso. Será a primeira coisa a fazer. Vou acender outro cigarro. Já perdi meia hora de filme. Comprarei um garrafão de lixívia, uma  escova rija, não me posso esquecer das luvas. Depois, passarei uma boa camada de creme pelas mãos. 

E, no entanto, penso em ti.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

O silêncio e o Tejo no último dia de julho.





Silêncio e o rio Tejo no último dia de julho.

Muito nublado, pintado de cinzento o rio, o céu carregado deixa que as curvas dos montes se recortem e desenhem curvas sensuais, ora mostrando, ora escondendo, as nuvens mais grossas. Advinha-se, ao longe, uma cidade, na linha do horizonte com corpo de mulher. Corre, o rio, pesado e dançando com pequenas ondas, deixando-se -se levar, cortam-lhe o ritmo os cacilheiros, os pequenos veleiros, os barcos mais velozes. Renova-se. Em cada curva. Investe nos pilares da ponte. Estremece com as hélices de um helicóptero ruidoso. Da água escura, apenas, um marulhar tímido. A cor acinzenta-se, cada vez mais espessa, mais turva, a neblina fica opaca, apaga o transparente. Está húmido o ar, quase frio, neste julho que se despede. Arrefece. Não apetece a cerveja, nem o gelo a derreter num copo mais inspirado. Nem  uma gota de sol , durante todo o dia. Os semblantes ficam mais carregados, impacienta-se quem na praia procura forças, as respostas, a necessidade de justificar o tempo de repouso que se guardou para trinta dias de pés dentro de água e a esfregar-se na areia. O tempo está a mudar, este verão está cheio de medo, teme a crise, cospe a guerra e entristece-se, perdeu a esperança. Não me incomodam os dias sem sol. Junto ao rio a pele desejaria o abraço de um tecido mais quente. De um lado para o outro, há quem se desafie numa corrida, numas pedaladas de uma bicicleta mais sofisticada, num passo mais ritmado, aceleram-se os corpos. A neblina é cortada pela cor dos maillots, dos ténis garridos. O cinzento cortado com bolas de cor a compor o caminho a par do rio, de alcatrão, feio e escuro. Um caminho muito estreito, deitado ao longo do rio. Não se ouvem vozes de crianças. As vozes, surdas, vão e vêm, apetece uma gargalhada, a música deixa-se ouvir através das colunas alinhadas Componho a écharpe, Não tem frio? Perguntam-me, não, não tenho frio. A luz a enfraquecer entristece-me, há quem jante, penso na cidade de Cesário Verde, penso noutras cidades. Fico a pensar. A pensar. A olhar para o rio. Se olhar para a esquerda, consigo distinguir o encarniçado da ponte, nas minhas costas, no outro lado da linha, prepara-se a cidade – vem aí mais uma noite. Uma noite de inverno, oiço alguém dizer. Imagino-me, nesta mesa num dia de inverno escuro ou  um domingo de inverno, com sol. Se fosse janeiro não estaria, sentada, tranquila, a olhar para o Tejo. Numa esplanada. Não veria aquele veleiro cheio de histórias e mar para contar. Continuo sem frio. Cai um pingo no meu caderno cor de rosa. O pingo não estragou as palavras que a parker desenhou. Há cães que ladram a uma gaivota e um homem limpa o suor a um lenço estampado. À medida que o tempo avança, o dia vai caindo e  a noite não demora, não tardará. O caminho estreito, agora, começa a parecer uma avenida de vestidos decotados tapados com casaquinhos  de gente mais previdente. Quando saí de casa não pensei na humidade. Queria ouvir música, ver o Tejo – estaremos separados uns dias. A avenida em que o caminho se transformou deixa ouvir os aviões, o teclado do inevitável Facebook, os telemóveis mais insistentes e as conversas mais amargas sobre dinheiros desaparecidos. Começam a chegar os casais, temos reserva para jantar. Talvez fumasse um cigarro. O dono da esplanada pergunta-me se tenho fome, Quer que lhe mostre a ementa? Deixo-me ficar, não tenho fome, ocuparei a mesa mais uns minutos. Sairei, quando a cidade de seis andares ultrapassar os pilares da ponte. No andar de cima, as pessoas parecem cedilhas à solta. Varreram a cidade durante o dia. E, de repente, a música começa a ter o som de alguém que a toca. Ficarei mais um pouco, esqueço a cidade de seis andares. A minha bebida está no fim e a avenida ficou mais larga, mudou de vida e de lugar. Reconcilio-me com a humidade e  continuo sentada. O caderno  cor de rosa, a parker e eu estamos a gostar. Um idiota saído  de um filme série B bate palmas, não me mexo, não quero as palavras espalhadas pelo chão. O silêncio desapareceu, a avenida e o Tejo ficaram. Estou em boa companhia. Os músicos acertam-se, os primeiros acordes do saxofone acompanham as braçadas dos remadores de camisolas às cores. Entra o contrabaixo, dois miúdos a rir e a correr e um barco a motor a riscar o Tejo e o Silêncio. O céu escureceu  um pouco mais. Não estou sozinha, tenho a música sentada na minha mesa da esplanada, em frente ao Tejo. Identifico um ator de telenovela e um tema de Miles Davis, não me recordo dos nomes. Esqueço o frio e a humidade. As nuvens não se percebem no céu mais escuro. Um casal agasalhado pede marisco. Nunca me ocorrera misturar Miles Davis com marisco. Gosto de Miles Davis de marisco nem tanto. Na outra margem já se veem pontos de luz e, por breves momentos, o rio ficou sem um único traço a raspar-lhe as ondas, distingo o diálogo, contrabaixo e saxofone, os gritos e uma gaivota. Já não são horas de dia. Terei de partir. Pedir a conta, fingir que tenho frio e levar a música que ficará no ar.

Está na hora. O meu relógio tem as horas sempre à hora certa.

Vou para casa. Andarei mais um pouco à beira rio. Não, ainda não. Um pombo preto poisa no banco colorido, volta para trás. Não se mexe. Eu já fui e, no entanto, continuo a olhar para o Tejo. Regressarei um dia destes. Prometo.

 

(Algures, no Tejo, no dia 31 de julho de 2014, às 20h50m)