domingo, 29 de junho de 2014

Um fio de couro com uma cruz de prata.






Um fio de couro com uma cruz de prata.

Tenho guardado na gaveta mais pequena da minha mesa de cabeceira, com o termómetro, as aspirinas, um bilhete antigo de um concerto que faz de mim aquilo que hoje sou, uma pulseira com o fecho partido e outras bugigangas que, agora, não ocupam lugar,  um fio de couro com uma cruz de prata. Mais uma peça que carrega como todas, que por razões que só nós sabemos explicar, a história, ou histórias que nos lembrarão sempre que o tempo também tem um tempo e que a vida não se condói com as horas certas de um relógio a horas e o que escolhemos é muito pouco,já, todos nós  sabemos. Não sei se aqui haverá algum mistério, alguma explicação filosófica, ou apenas, o sensaborão cliché “aconteceu assim, porque assim tinha de ser”. O fio com a cruz, por agora, é uma recordação e uma presença. Adiar um arrepio, ou dar tempo a que a pele que se deseja se guarde dentro de uma gaveta é a expressão de uma fragilidade humana. Nada contra. Só dói um bocadinho, porque sabemos que o momento em que estamos muito perto de uma felicidade, ainda que muito pequena, é irreversível – nunca voltamos à carícia que podia ter sido, nem à história que deixámos de contar. Somos muito frágeis perante a felicidade, e o corpo que por magia se encaixa no outro, num primeiro momento. É raro. Não é assim que se faz, não é assim que se imagina, não é assim que nos foi ensinado. Pois não. E, não, ali, não havia mais ninguém, não podia haver. A intimidade que surge de um corpo que se encontra e o desenho que sabemos de cor de um sinal que, apenas, se viu uma vez, é um prémio. Assustamo-nos. Uma guloseima muito  grande para umas mão tão pequenas. E o tempo corre e a vidinha é num escritório, numa saída de metro, no sítio do costume. Creio que foi a Agustina, minha querida Agustina, que disse que o ser humano é muito pouco corajoso perante a diferença e, apesar de fazer da procura de felicidade ser uma das suas insistentes e mais prementes buscas encolhe-se, esconde-se quando a encontra. Literatura, é só Literatura e o fio de couro com uma cruz de prata na minha mesa de cabeceira, é  o quê? Uma lembrança para mais tarde recordar. A lembrança de uma felicidade que se adiou, Isto não será literatura? Não sei lê-la de outro modo. A Fera na selva? Alexis? O Quarteto de Alexandria? Que sabemos nós da vida? Do seu mistério? Do mistério das nossas fantasias? Preenchemos um formulário, compramos um bilhete de comboio, vamos ao fim do mundo à procura de uma paisagem diferente, resolvemos difíceis equações de matemática e de nós sabemos tão pouco! Não conhecemos os sentimentos de uma mulher, não percebemos o egoísmo dos homens e todos os dias nos encantamos, todos os dias acreditamos como Scarlett que amanhã é outro dia. Mas não é. Somos vida e o que a vida “muito bem entendeu que fizéssemos com ela”, dizia a minha avó e com a mesma ligeireza dizia-me: “Quando fores estudar para Lisboa leva um vestidinho mais composto para ires ao cinema “. Aqui está o que mudou: a compostura com que se a vai ao cinema, porque avó, a vida vive-se da mesma maneira, Avó, falo de sentimentos. (Estou a ouvir-te dizer, Paula B, deixa o gajo, ele não percebeu nada.) Talvez, tenha percebido, mas é tão banal pensar que a tua descompostura, irreverência, o “pensas demais”, a tua força ”, assusta os homens. Nem pareço eu a falar!Isso significa o quê? É muito simples: esqueces os príncipes encantados e vais-te ajeitando conforme podes, Talvez, tenhas razão. Talvez. Onde é que está escrito que a felicidade passa, sempre, pela evidência de uns sapatos maiores que os teus debaixo da tua cama? Dá-lhe um tempo! Aí é que está -  um tempo -  a única coisa que não podes dar. Porque não te pertence. Não lhe devolvas o fio. Deixa-o viver a vida dele e vive a tua – que é tão Grande!

 



(A casa está em silêncio, os miúdos, estão nos seus caminhos, os meus pais envelhecem , uns dias mais felizes que outros. Apetece-te ir dancar? Vai miúda, vai se te apetece. Malditas pilhas que não te refreiam. Vai, ao contrário de algumas cabeças, o tempo que te resta já não é assim tanto.Tempo,deixa-a  dançar. E, se ele estiver acompanhado? O quê? Pensavas que ele estava sozinho?!)


O silêncio da minha casa faz-me muito feliz. E, como estive a escrever, arrumei alguns bocadinhos da vida que estava cheia de lágrimas.


 
 

 






quarta-feira, 25 de junho de 2014

"Não sei quantas almas tenho" Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho

[…]

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

[…]

Fernando Pessoa.   

 

“Diverso, móbil e só,/Não sei sentir-me onde estou.”

Sinto o teu cheiro no meu peito, na minha roupa. Percebo as sombras que dançam à nossa volta. Escolhes a cadeira de flores, pedes-me água. É muito nítida, bem definida, a mancha amarela que marcou os meus dedos quando me apertaste a mão. Olhavas através do vidro e vias os jacarandás a perder as flores, neste verão triste. Anoitece, tu insistes na luz do sol. Queres calor. A cor de um corpo e ondas com areia da praia. Um olhar que traga espuma, um eco, um regresso, uma certeza. Temos o olhar perdido, vago, olhamos para um ponto e depois para outro. Sabemos de cor o tracejado que o tempo deixou na parede, sabemos a história de cada uma das manchas. O olhar, errante, procura uma mancha que não conhecêssemos, uma cor que o fixasse. Ver nascer o sol, apreciar o cair da noite, o acre que fica no ar depois dos corpos agarrados e suados rolarem no chão. O silêncio acompanha a escuridão da noite. Sem lua. Sem palavras. Uma estrela no céu mais baixo, nuvens carregadas, desenhadas a carvão. Fixamos aquele brilho, o mesmo brilho através dos vidros das janelas a revelar os jacarandás mais tristes. Nada muda. Tudo mudou. Aquela estrela nunca saiu do céu, mas nós nunca a vimos. Nunca nos pertenceu? Não, nunca nada nos pertence, por inteiro. Somos como a estrela solitária. Num céu muito escuro, ou carregado de estrelas. Por que insistes em olhar para estrela? Não está lá ninguém. Ninguém. Nem o que somos. Ou pensamos ser.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Aristóteles não era belga





Aristóteles não era belga

 

Os miúdos estão em exames, estudam, estudaram muito. A vida é assim – trabalho, luta diária, as lágrimas também fazem parte e os sonhos são da cor da pele, nada mais que isso. Ouviam histórias ao deitar, eu ou o pai, sentávamo-nos numa cadeirinha muito pequenina, uma cadeira algarvia pintada à mão. Veio de casa do pai e, agora, tem em cima auscultadores, folhas soltas – um registo do tempo que passou. E passou muito tempo. “A aurora de róseos dedos…”, “Era uma vez um lago que queria ser mar…”, ficou guardado e muito bem guardado e aparecerá um dia destes, quando se olharem ao espelho. Estão gente, têm opiniões e dizem muitos palavrões. (É normal os miúdos, entre eles, dizerem tantas vezes ‘caralho’ e ‘foda-se’?).O mais velho pediu-me um jantar para comemorar o décimo sétimo aniversário. Ouvia Satie na minha barriga, um dia descobriu a valsinha “Je Te Veux”, do mesmo Erik Satie e ouvi-a e ouvi-a e ouvia  - (maldita tecnologia que tem repeat) e muito enfatuado dizia Ó mãe, não há pachorra para tanto abraço. Falava dos Teletubbies . Tinha razão. Ainda hoje não percebo como resisti a ouvir tantas vezes Caetano Veloso, nem como ainda aprecio A Flauta Mágica. Agora o segredo está em Santos. Em Santos?? Sim, mãe. Vamos todos e tu fazes aquele bacalhau da tua festa de anos e fazemos um jantar sentados à mesa. As raparigas vêm giras e os rapazes de blazer azul-escuro, concordas? Mãe, os meus amigos adoram-te. O mais novo não fala, não pediu nada, deveria ter ido a pé até Fátima, se eu acreditasse que Nossa Senhora sabe usar uma máquina de calcular e tivesse lido os resumos daquele Manual pomposo chamado Dicionário Terminológico… Mas, estou em crer que a Senhora deverá ter mais em que pensar. Estou, aqui sentada, bebo um Vodka Orange e espero acordar como acordei hoje. Isso basta-me. Vou perdoar O David Guetta e um senhor chamado Bon Jovi (talvez consiga fazer a seleção musical durante o jantar, mas não lhes imporei Chet Baker, nem Bill Evans, não se escapam,  garanto, ao Dark Side Off The Moon). Não tenho muitas certezas na vida, nem muitas “coisas” que gostasse de ter, mas o meu dia completa-se no fundo das suas gargalhadas, Às vezes, lá levam um estalo, ouvem um grito e sim, a família tradicional é aquela que aprendemos na catequese (eu fugia, quando podia, não fiz nem crismas, nem primeiras comunhões, tenho um pai que achava que eu devia ir brincar para o jardim, em vez de me enfiar numa sacristia bafienta. Obrigada, Papá e olha Tanqueray , continua  a ser o melhor gin de sempre). A Família feliz que se constrói num vestido de noiva e num ramo de flor de laranjeira. Um pai, uma mãe, avós primos, primas tudo isso…. E viveram felizes para sempre.Foi assim que aprendemos. Se houver aquele sentimento  - vago- chamado Amor, que suporta as roncadelas, o mau humor da sogra e a prepotência de um macho, a quem sempre sai a espinha do bacalhau à Braz. Essa  família conheço dos filmes da Meg Ryan. Com os meus avós, também, aprendi qualquer coisinha. Mas não soube fazer o trabalho de casa. Agora, nada disso me interessa . Falava de certezas, os meus adolescentes, têm, neste momento, o melhor do pai e o melhor da mãe. E nunca dirão que Aristóteles era belga, o London Underground  é um movimento terrorista , nem que o princípio do Budismo é cada um por si .

Faremos o jantar, ouviremos o que nos apetecer e ele irá com os amigos beber uma imperial, talvez duas, não o irei buscar, mas -falava de certezas- se eu lhe disser que às duas da manhã tens de estar em casa, ele será pontual.

Como se faz? Famílias disfuncionais? Famílias monoparentais?

Estas famílias têm de ser sempre infelizes, traumatizadas, com putos a roer as unhas até aos cotovelos? Não, não têm. Amar os filhos, mesmo quando são insuportáveis e acham que mandam em nós, ajuda muito. Dos pais esperamos que os amem também.E é quanto baste. Garanto!

Mas não é fácil e tem muito ranho e sangue à mistura.E sal.
E dor.

 

(a seleção musical é da responsabilidade do meu filho mais velho).








quarta-feira, 18 de junho de 2014

Um candeeiro que veio de Paris




























Um candeeiro que veio de Paris

E, depois, há aquelas coisas-tralhas que guardamos durante anos, vão sobrevivendo às mudanças de casa, separações, às crises existenciais, e juntando-se às outras tralhas e coisas que vão entrando, encaixando, em cima umas das outras. Enchem-nos a garagem, a arrecadação, o vão da escada e com um bocadinho de esforço ainda dormem no corredor na casa dos nossos pais. Temos todos, as nossas existências atafulhadas de coisas, coisinhas, um dia, ainda hei de precisar desta caixa, esta saia foi comprada na primeira loja da Ana Salazar, a loiça não está partida - num almoço de família poderá fazer falta - e este candeeiro  veio do  marché- aux- puces de Paris, ai! este triciclo está em bom estado e serviu para os dois miúdos, os brinquedos estão intactos e a caixa monstruosa dos Legos, também. Tudo ali. Muito quieto e mudo, cheio de segredos e histórias. Juntemos a tudo isto os cadernos da Faculdade, as fotocópias dos livros esgotados de Paul Teyssier, de Freud e de Julia Kristeva, a máquina de escrever do avô, as edições repetidas dos livros RTP e as teses de mestrado e de doutoramento dos amigos - seria uma heresia deitá-las fora ! -  as Revistas  d’ O Expresso, d ‘O Independente, as Kapa,  as primeiras Sábado. Além dos álbuns de fotografias, as coleções de selos e os sapatos, que ajudaram a limpar uma ou outra lágrima. Olhemos, ainda que de relance, para tudo isto e temos ali a história da nossa vida. Acho que qualquer sociólogo poderia estudar, sem tropeções, só com esse olhar clínico as tralhas-coisas de que somos feitos. Coisas, bric-à-brac, objetos, entulho, inutilidades. Um dia, mais cínicos, cheios de boas intenções e ânimo, decidimos deitar tudo fora. Colocar tudo no lixo, sem pensar no que acontecerá ao candeeiro de Paris ou à cópia sublinhada e comentada da Psicopatologia da Vida Quotidiana. Uma ato falhado? Pois sim. Estamos a querer deitar uma vida inteira para o contentor mais próximo: não me apetece esta vida, estas pessoas, estas dores, este desgosto, este filho malcriado, estas raízes do cabelo que insistem em nascer brancas, aquela piscadela de olho, nem tão pouco o beijo mais suado, entre agora telefonas tu, agora telefono eu. Tudo para o lixo. Não é um suicídio. É deitar fora tudo aquilo de que já não gostamos, não precisamos, tudo o que nos faz sofrer. A vida que não escolhemos. Um suicídio não é irreversível, ao candeeiro de Paris podemos seguir o rasto e ao filho malcriado mandá-lo, por exemplo, para casa do pai. Ó mulher, por que não vendes tu esta tralha toda? Faz uma venda de garagem! Vende tudo a um euro, dá os brinquedos a Instituições que precisem, oferece o triciclo. Sim, tudo isso está apalavrado (palavra encanitante e sem significado). Já combinei, vêm recolher parte das coisas-tralha que foram uma família, na próxima semana. Os Legos são intocáveis e a máquina de escrever do meu avô também. Darei as roupas, o papel irá para a reciclagem, a loiça que não estiver partida permanecerá em caixotes mais pequenos, a saia da Ana Salazar é vintage e ainda me serve, os livros serão organizados e os que estão repetidos ficarão repetidos, talvez, os rapazes os apreciem. Continuo sem saber o que fazer ao candeeiro que veio de Paris. Não sei. Um projeto de vida viria a calhar, um caminho só meu. Apenas eu. Dois sacos de lixo já encheram o contentor mais perto, amanhã encherei mais dois ou três e, assim, com pequenos passos vou tornando a vida mais espaçosa. O tal projeto de vida a desenhar-se nas prateleiras arrumadas. Ainda incompleto, o tal projeto. Sim. Já sei! Quando descobrir o que fazer com o candeeiro do marché-aux-puces, o projeto de vida estará resolvido. Em paz. Mas eu não deitarei fora la lampe du marché-aux-puces. Não. Já decidi.

E tu já decidiste onde arrumarias o teu? Todas as pessoas têm um, porra! Ou uma Nossa Senhora de Fátima.

 




 

 

domingo, 15 de junho de 2014

Em Lisboa há uma rua com o chão pintado de cor de rosa

 
 
 
Em Lisboa, há uma rua que tem o chão pintado de cor- de -rosa.
Mais uma noite a observar e a ouvir o que está perto, muito perto, pode perceber-se que se a música é o pretexto mais forte o que move os copos a desenharem círculos, não é solidão, porque seria falso pensar que sai à noite quem está só. Encontrar um par? Não significa estar só, nem solidão. Desfazer o vazio num copo de gin, repetir pela enésima vez o mesmo refrão procurar aquele estado de embriaguez que, sempre nos leva para ” Um pouco mais de sol  eu era brasa./Um pouco mais de azul eu era além”.
A noite estava muito quente. Levo-te a casa, hoje confirmei como danças bem, anda de olho em ti já há algum tempo.(E depois casas comigo e ajudas-me a pagar as contas? ).Entretanto, talvez, uma a solidão se organizasse. Mostrar-lhe-ia o nascer do sol da janela, explicaria que as grandes tragédias estão dentro de nós e uma aspirina acalmaria as dores de cabeça. Mas não. Não é assim, nunca foi. Fica  um gosto e a partilha de se dançar e cantar, vezes sem conta, a mesma canção. Entreter uma noite que as séries da Fox não preenchem e perceber que já nada nos surpreende. "Não há nada de novo aqui/debaixo do sol." As surpresa do encontro, nem tão pouco a veleidade de entender que, ao nosso lado, há quem pense o mesmo.  Há quem tenha pensamentos mais prosaicos. A noite e o copo na mão, contenha água ou gin, é, apenas, isso, um copo na mão, com água ou gin. Nada mais do que isso. Dançar o mesmo refrão e, se o amanhecer for bonito e doce, pintado de um azul de aguarelas desfeitas, calmo e lilás, apenas, lamento que tenha sido das poucas pessoas a vê-lo. Com estes olhos. Apeteceu-me ficar junto ao Tejo. Mas amanhecia e o nosso tempo já é outro e não cabe na moldura. Talvez estivesse à tua espera. Apesar de saber que a cor do céu nunca te deteve. Apenas a  urgência de chegar ao copo seguinte. Naturezas. É como  gostar de ovos com presunto ao pequeno-almoço. Eu não gosto, no entanto, há quem  aprecie. O taxista era simpático, falou sempre, este é o meu segundo emprego, tenho duas filhas universitárias e a mulher está desempregada. Indiferente aos assédios, ao refrão da moda e aos trinta anos da morte de António Variações. E, a noite é isto. Se eu ainda comesse doces, assaltaria, com gula, a padaria da praça do Chile. Nada mudaria e a noite ficaria igual ao poema de Sá Carneiro. Com os mesmos versos. Então porque é que vais? Porque insistes em ir? Ver nascer o dia, pintado com o azul do jacarandá e dançar até que esta dor passe, quanto a mim, são razões suficientes. Das cores dos outros não sei.


http://youtu.be/cLQJVKP3YlM





quinta-feira, 12 de junho de 2014

Esgotada.

Roubado por aí

O texto virá, mas hoje não - estou cansada, esgotada, decepcionada, triste, "amarfanhada " por dentro. Só me apetece falar em silêncio. Falar comigo, que não é sinónimo de falar sozinho. estamos bem, eu e eu, pena que de vez em quando, alguém tenha de morrer.
Com o coração a bater.
 
(Têm por hábito ir à Feira do Artesanato que, se realiza nos meses de Junho/Julho na Fil? Já alguma vez, por lá comeram, no pavilhão da restauração, que é como quem diz, a zona dos comes-e-bebes, uma "sandocha" de presunto, beberam um copo de vinho tinto, uma fatia de queijo entalado num bom naco de pão? É uma expeiência gastronómica  interessante e o artesanato é  o que se espera que seja .... Então, agora experimentem ir jantar às nove da noite a um espaço da moda, inaugurado com pompa e circunstância  com todo o  Get 5 português, é idêntico ao espaço de restauração da Feira de Artesanato de Junho/Julho....mas em bom, isto é gourmet - palavra que incomodoria Eça de Queiroz - gente antipática, serviço de quinta categoria  e um preço tão apelativo que garantiria umas opíparas ceias na dita feira, o resto das nossas vidas. A corrida de cavalos de Os Maias?! Sim, mais coisa, menos coisa. Gente de condomínios de luxo e arredores, mal educada, comida servida em tabuleiros self-service da cantina, mesas e bancos muito altos  - será design nórdico? -  aromatizados com perfumes caros e malas de griffe a condizer, pespontadas  com um soberbo e eventual  arroto cúmplice de uma casta, apuradíssima, do Rosé, em promoção. Um refeitório gigante a épater le bourgeois. Viva a civilização, o progresso, a moda, e um povinho vestido Dolce e Gabbana da feira de Caracavelos. Ah! Com um bocadinho de sorte tropeçam no Pedro que se zangou com a outra que é a vilã da novela. Uns quantos senhores de fato cinzento, que mandam em nós, já, desengravatados, também por lá andam a resfatelar-se  num Esporão  palitando os dentes com um ossinho de leitão de mãozinha, em pala, a tapar a boca. A vida é bela: um dia destes rendo-me ao belo do courato  e à entremeada na brasa. Gordurenta e pecaminosa. Como é bela a vida. Quanto a mim, a próxima factura com 23% de IVA  será longe, out, num time menos chique a valer  e de preferência sem gourmets, nem selfies, modelito que, por cá, se tem vendido muito bem. Gostos. Se calhar, sou esquisita!)
 
O que é que um texto tem a ver com o outro? Não sei, entretanto, esqueci-me.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Parabéns, José.




Parabéns, José

Os olhos muito brilhantes, o sorriso rasgado a barba a pedir lâmina e espuma de barbear. A determinação. O brilho no sorriso a generosidade com os amigos, o gosto pela Segunda Guerra Mundial, a camisa a condizer com as calças, a porta a abrir-se para deixar passar, a mãe, a amiga, a avó, as unhas roídas e o cinismo. O ritmo que só ele conhece, a impassibilidade de uma linha que não se desfaz. O sentido de justiça e a justeza nas apreciações. A preguiça e a medida de um tempo que só ele controla. As primeiras imperiais, o desafio do decote das miúdas, o futebol a perturbar, por momentos, a serenidade. Por vezes, põe-me em causa, quer mandar, ser o galo nesta capoeira e o CR 7 é o maior - perdoado porque gostou de ler os Maias e teve vinte valores na apresentação oral de um trabalho sobre um poema – difícil – de Cesário Verde. Cresceu tanto e é tão pessoa. Contido e tão digno no seu sentir. Já não cheira a menino e não precisa que lhe escolha a roupa. As suas gargalhadas continuam a encher a casa, a mãe está sempre bonita, cheiras sempre tão bem, Mãe! Não se esquece de gosto muito de ti, Mãe. Todas noites, antes de adormecer, Gosto muito de ti, Mãe. Nunca se esquece, mesmo quando não estamos juntos.Nasceu perfeito, lindo e rosado, faz hoje dezassete anos, não sei, como dizia Jorge de Sena, dirigindo-se aos filhos, “que mundo será o vosso”, eu não sei, José, que mundo será o teu. Também não sei.  Apenas te dei a vida.
Parabéns, meu Anjo Bom.

 




terça-feira, 10 de junho de 2014

A Horta da Mena (ou um dia muito produtivo). Há dias asssim!

Um bocadinho da Horta da Mena.

 (Gato Barbieri e Caliente)




 A horta da Mena.

Não sei de que matéria são feitos os sonhos, além de palavras e tenacidade, não conheço a  receita  da longevidade e  de cenouras, rabanetes, batatas, tomates e coentros, não entendo  nada que um senhor de avental branco não possa pesar, acrescente-se que aprecio, sobremaneira,  que o leite venha diretamente da vaca para os iogurtes. A marca Pão de Açúcar e o Cartão Continente são, portanto, o meu norte nestas questões naturais, responsáveis pelo bom funcionamento da minha existência. Tenho pela natureza o respeito que se tem por qualquer língua morta – reconheço o que me ensinou, aprendi a generosidade de um saber milenar, admiro os segredos por revelar, de um território longínquo que, para mim, citadina empedernida, será fronteira nunca violada, nem por um desejo “de perder países”, ou por uma qualquer demanda de Santo Graal. Coisas minhas e do meu amor à cidade. Admiro, estimo e, em dias de maior tédio, sinto, até uma ligeira inveja desse gosto de chafurdar na lama e, qual Caeiro, em dia mais contemplativo, ficar a ver os morangos, os tomates e as abóboras a crescerem. Confesso que a inveja não é muito duradoura, os morangos prefiro-os em batidos e a única a abóbora em que acredito é a que se transforma em carruagem luxuosa. Chega, no entanto, muito viva “[…] a Paz da Natureza sem gente / […] sentar-se a meu lado” e  a minha admiração, por quem, de uma semente consegue arrancar, depois de dias e dias de labuta um soberbo prato de sopa de nabiças, ou um arroz de favas que não deixaria indiferente o nosso amigo Jacinto. E, se por milagre, a semente se transforma em sopa, é porque numa qualquer, mais rija, folha de couve  houve  “metafísica suficiente ”. Mena, o próximo caldo verde que comer em tua casa comê-lo-ei com a mesma verdade com que aquela pequena, nossa amiga, come chocolates. Prometo.
 
Um abraço a cheirar a hortelã.
 

Falar sozinha





Falar sozinha

Trazes contigo aquele cheiro enjoativo de música barulhenta, cigarros e sorrisos perdidos. Terás de lavar essa roupa e a cara também precisa de uma boa ensaboadela, deita-te e descansa que  já é quase amanhã Dorme, depois organizas o que não trouxeste dentro de ti. Dói-te, um bocadinho, pois dói. Adiante. Arruma o quarto, os sapatos do miúdos e prepara alguns exercícios de Alemão (não sabes Alemão? Copia, vai à net, inventa. És mãe, não és?), de Português, um horário de trabalho, não te esqueças da listas compras, tens de telefonar ao teu amigo que fez ontem anos, ter um pouco de paciência e explicar aos teus pais que ir ao Algarve nos feriados de Junho está fora de questão, alegra a tua mãe e diz-lhe que os agapantos já floriram, insiste e explica-lhe - como se estivesses a convencer-te a ti própria – que a solidão é uma boa companhia, mas não te esqueças de lhe dizer que já te organizaste tão bem que na próxima vez que fores de fim de semana, levarás as caixas, a geleira e aquelas placas que se congelam para conservar a comida congelada  que trazes quando lá vais. Tens de arrumar a gaveta da secretária, porque desapareceu um boletim de vacinas e não te lembras onde puseste as fotografias do verão passado. A tua principal preocupação, neste momento, são os exames dos miúdos, o texto que tens em mãos e não te podes esquecer das consultas que marcaste. Lava muito bem a alma com que saíste à noite e não deixes a roupa preta ao sol. Lembra-te que nos tempos mais próximos não poderás comprar nenhum livro, nem um par de sapatos e esquece os cds. Já ouviste todos os que compraste nos últimos meses? Então de que estás à espera? Habitua-te a ouvir rádio, talvez te alegres, e sonhes com os programas que já fizeste e escreveste – os sonhos são teus, podes sonhar o que muito bem entenderes! O miúdo faz anos dia onze e ainda não sabes o que lhe vais oferecer, porque ele ainda não pensou muito no assunto, isso é o que ele diz: tu já percebeste há muito tempo que o Sudoeste é a sua primeira escolha. Não fiques a pensar muito naqueles sons que ele chama música e está sempre a querer que tu oiças, não te preocupes começou a ouvir música clássica muito cedo, adormecia ao som de Chopin e a voz do pai a contar-lhe a Odisseia, agora David Guetta é o  Noturno e “a aurora de róseos dedos” só fará sentido na Zambujeira do Mar. A próxima luta é convencer o pai que a música não começa, nem termina com Bach e que o todo o trabalho deve ser recompensado. Amanhã é feriado e não te podes dar ao luxo de dormir, um pouco, até mais tarde, porque quando eles chegarem esfomeados e a cheirar a pés, tens de ter o almoço pronto, as compras feitas, a roupa estendida, e, se te portares bem, ainda os convences a ir à feira do livro, já sabes que não podes comprar livros, mas podes passear pelo Parque Eduardo Sétimo e olhar o Tejo, ao fundo. Largo e livre. Não conseguirás ignorar os Santos Populares, os casamentos de Santo António, que tu achas uma tradição muito salazarenta, as marchas, arraiais, mastros e sardinhas assadas para turistas. Aguenta, tem paciência! A sardinha assada para ti é na Ria Formosa com jarros de sangria, salada de tomate e pimentos assados e amigos a dizerem disparates. Manias! Olha, convida os putos (ai, se eles me leeem!) para comer caracóis, mas pensa num sítio sossegado "sem dá cá um balão para eu brincar”, vai às páginas amarelas on-line. E, agora , olha para as horas ? Dormirás muito pouco, pões –te,  para aqui , a falar sozinha, e é o que se lê.

(Ouve lá, queres um gajo para quê? Não estás exausta? Estás a falar há mais de uma hora. Achas que te apeteceria adormecer ao som de uma roncadela vigorosa à benfiquista? Sim, os do Sporting também roncam, é tudo igual….Vai para a cama e deixa de acreditar no viveram felizes para sempre dos filmes da Disney. Na Audery Hepburn e no Robert Redford, pensas que a vidinha deles era muito diferente da tua? A vidinha, é da vidinha que estás a falar….das pessoas. Eram atrizes e atores, muito bonitos e desempenharam bons papéis, e tu és o quê?)

E, agora, vou-me embora, estou cansada. A roupa ficará para mais logo!

 


domingo, 8 de junho de 2014

O Rui, eu e um par de olhos azuis




O Rui, eu e um par de olhos azuis.

 A última vez que desci contigo as escadas do Plateau, tínhamos passado a noite a dançar, eu era uma menina e líamos com gosto a Confissão de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro, estou muito tranquila a falar destes nomes, porque  esta criatura  não se interessa por literatura, não sei se lerá as mensagens  e confessou-me  que quando tiver de usar óculos talvez, talvez recomece a ler. Esta madrugada, depois de o ter procurado, em vão, na cidade inteira, percebi que nada há de mais injusto e cruel que afundarmos o nosso olhar num outro olhar. As palavras valem muito pouco e, quando ao sentirmos a neblina que vem do Tejo, percebemos, ali, na Vinte e Quatro de Julho, com uns vapores de gin no ar, que  só precisamos das pessoas que connosco são capazes de partilhar um desgosto, uma alegria, um piropo.“És uma miúda engraçada”, dizias-me, tu, meu querido Rui, eu acreditava, comíamos um cachorro quente, discutíamos as trivialidades da vida e, se eu te  dissesse que eram  uns olhos azuis,  que me tinham deixado a pensar em pecados e afins,  dir-me-ias: “ Faz-te à vida!” Mas o Rui morreu há cinco anos, a vida divide-se em impostos, trabalhos, dinheiro escasso, doenças e negativas a matemática, e o melhor que eu sei dizer é : ” a minha avó tinha olhos azuis “e eu gostava muito dela.

Corri a cidade, à noite, fora de horas, e não os encontrei, não vi os olhos azuis.Da criatura que um dia talvez recomece a ler. Nada.  Só pura imaginação, fantasias e uma ou outra ponta de ego, mais ou menos inflamada. Sem  nenhum interessse. Talvez acredite em ti, Rui, esta noite, fizeste-me falta, sabes que, agora, não como cachorros, passo mais tempo sozinha, recomecei a escrever e não há um só dia em que não pense em ti. Estou um perigo: tive o azar de me deixar entusiasmar por uns olhos azuis. Hoje, precisei das tuas certezas, porque quando me dizias que uns olhos azuis valem tanto como os olhos de outra cor qualquer, eu acreditava.

 De madrugada, vinha do Tejo a neblina fria de que tu tanto gostavas, podíamos dar as mãos e rir até ao Calvário. Creio que a amizade é  a memória das mãos de um amigo nas nossas.

“ O sexo foi bom?”, eu nunca  te respondia , mas tu percebias e deixavas-me em paz o  tempo, suficiente, para eu organizar os livros, a tranquilidade, o quotidiano e a ansiedade.

Fazes-me falta, Rui
Muita falta.

Estás bem, aí, onde estás? E os olhos azuis que  recordarei, com nostalgia, serão os da minha avó. Está prometido. Lembras-te dela? Os miúdos estão a estudar muito e para a semana, recomeçarei uma nova série de exames médicos. A camisa preta que tresanda a tabaco irá para a lavandaria.
(Nunca conheci um fumador que odiasse tanto o cheiro a tabaco...Eu deixei de fumar, como sabes, mas o cheiro entranha-se, quando vamos aos sítios.)

Um beijo.





segunda-feira, 2 de junho de 2014

Projecto Fluvial, a partir de uma fotografia de Carlos Júlio.

Photo: projecto fluvial

Carlos Júlio,Projecto Fluvial

(esta fotografia foi retirada do FB, no mural de Carlos Júlio, não sei se é da sua autoria, mas foi um "assalto" descarado. Desculpe, Carlos Júlio - não resisti a tanta beleza)




Projeto Fluvial

Posso seguir devagar, muito devagar, a linha do teu corpo, tocar com a ponta dos dedos o teu pescoço, adivinhar o relevo do sinal que tens nas costas, desenhar com o indicador as iniciais do meu nome, como um jogo, quando ainda não nos conhecíamos, lembras-te?, posso chapinhar nessa linha de  água, a suavidade do meu corpo contra o teu, silenciar os segredos que levámos um ao outro. Posso descobrir o círculo que se fecha e se afasta e em cada sussurro se reflete na linha de água das nossas bocas, mergulhar o desejo que se desfaz nessa linha de rio em que mal ouso tocar. Posso pegar na tua mão e deixar fugir as promessas do tempo que há de vir. Ser a forma do teu corpo suave de talco e a linha de água, que sem querermos nos despiu e desfez. Tocar na linha e depois fugir. Posso, se quiseres, seguir na margem, enxugar as mãos e levar  devagar, muito devagar a linha do teu corpo. Uma linha de água. Um barco. E, depois fugir.