quinta-feira, 31 de julho de 2014

O silêncio e o Tejo no último dia de julho.





Silêncio e o rio Tejo no último dia de julho.

Muito nublado, pintado de cinzento o rio, o céu carregado deixa que as curvas dos montes se recortem e desenhem curvas sensuais, ora mostrando, ora escondendo, as nuvens mais grossas. Advinha-se, ao longe, uma cidade, na linha do horizonte com corpo de mulher. Corre, o rio, pesado e dançando com pequenas ondas, deixando-se -se levar, cortam-lhe o ritmo os cacilheiros, os pequenos veleiros, os barcos mais velozes. Renova-se. Em cada curva. Investe nos pilares da ponte. Estremece com as hélices de um helicóptero ruidoso. Da água escura, apenas, um marulhar tímido. A cor acinzenta-se, cada vez mais espessa, mais turva, a neblina fica opaca, apaga o transparente. Está húmido o ar, quase frio, neste julho que se despede. Arrefece. Não apetece a cerveja, nem o gelo a derreter num copo mais inspirado. Nem  uma gota de sol , durante todo o dia. Os semblantes ficam mais carregados, impacienta-se quem na praia procura forças, as respostas, a necessidade de justificar o tempo de repouso que se guardou para trinta dias de pés dentro de água e a esfregar-se na areia. O tempo está a mudar, este verão está cheio de medo, teme a crise, cospe a guerra e entristece-se, perdeu a esperança. Não me incomodam os dias sem sol. Junto ao rio a pele desejaria o abraço de um tecido mais quente. De um lado para o outro, há quem se desafie numa corrida, numas pedaladas de uma bicicleta mais sofisticada, num passo mais ritmado, aceleram-se os corpos. A neblina é cortada pela cor dos maillots, dos ténis garridos. O cinzento cortado com bolas de cor a compor o caminho a par do rio, de alcatrão, feio e escuro. Um caminho muito estreito, deitado ao longo do rio. Não se ouvem vozes de crianças. As vozes, surdas, vão e vêm, apetece uma gargalhada, a música deixa-se ouvir através das colunas alinhadas Componho a écharpe, Não tem frio? Perguntam-me, não, não tenho frio. A luz a enfraquecer entristece-me, há quem jante, penso na cidade de Cesário Verde, penso noutras cidades. Fico a pensar. A pensar. A olhar para o rio. Se olhar para a esquerda, consigo distinguir o encarniçado da ponte, nas minhas costas, no outro lado da linha, prepara-se a cidade – vem aí mais uma noite. Uma noite de inverno, oiço alguém dizer. Imagino-me, nesta mesa num dia de inverno escuro ou  um domingo de inverno, com sol. Se fosse janeiro não estaria, sentada, tranquila, a olhar para o Tejo. Numa esplanada. Não veria aquele veleiro cheio de histórias e mar para contar. Continuo sem frio. Cai um pingo no meu caderno cor de rosa. O pingo não estragou as palavras que a parker desenhou. Há cães que ladram a uma gaivota e um homem limpa o suor a um lenço estampado. À medida que o tempo avança, o dia vai caindo e  a noite não demora, não tardará. O caminho estreito, agora, começa a parecer uma avenida de vestidos decotados tapados com casaquinhos  de gente mais previdente. Quando saí de casa não pensei na humidade. Queria ouvir música, ver o Tejo – estaremos separados uns dias. A avenida em que o caminho se transformou deixa ouvir os aviões, o teclado do inevitável Facebook, os telemóveis mais insistentes e as conversas mais amargas sobre dinheiros desaparecidos. Começam a chegar os casais, temos reserva para jantar. Talvez fumasse um cigarro. O dono da esplanada pergunta-me se tenho fome, Quer que lhe mostre a ementa? Deixo-me ficar, não tenho fome, ocuparei a mesa mais uns minutos. Sairei, quando a cidade de seis andares ultrapassar os pilares da ponte. No andar de cima, as pessoas parecem cedilhas à solta. Varreram a cidade durante o dia. E, de repente, a música começa a ter o som de alguém que a toca. Ficarei mais um pouco, esqueço a cidade de seis andares. A minha bebida está no fim e a avenida ficou mais larga, mudou de vida e de lugar. Reconcilio-me com a humidade e  continuo sentada. O caderno  cor de rosa, a parker e eu estamos a gostar. Um idiota saído  de um filme série B bate palmas, não me mexo, não quero as palavras espalhadas pelo chão. O silêncio desapareceu, a avenida e o Tejo ficaram. Estou em boa companhia. Os músicos acertam-se, os primeiros acordes do saxofone acompanham as braçadas dos remadores de camisolas às cores. Entra o contrabaixo, dois miúdos a rir e a correr e um barco a motor a riscar o Tejo e o Silêncio. O céu escureceu  um pouco mais. Não estou sozinha, tenho a música sentada na minha mesa da esplanada, em frente ao Tejo. Identifico um ator de telenovela e um tema de Miles Davis, não me recordo dos nomes. Esqueço o frio e a humidade. As nuvens não se percebem no céu mais escuro. Um casal agasalhado pede marisco. Nunca me ocorrera misturar Miles Davis com marisco. Gosto de Miles Davis de marisco nem tanto. Na outra margem já se veem pontos de luz e, por breves momentos, o rio ficou sem um único traço a raspar-lhe as ondas, distingo o diálogo, contrabaixo e saxofone, os gritos e uma gaivota. Já não são horas de dia. Terei de partir. Pedir a conta, fingir que tenho frio e levar a música que ficará no ar.

Está na hora. O meu relógio tem as horas sempre à hora certa.

Vou para casa. Andarei mais um pouco à beira rio. Não, ainda não. Um pombo preto poisa no banco colorido, volta para trás. Não se mexe. Eu já fui e, no entanto, continuo a olhar para o Tejo. Regressarei um dia destes. Prometo.

 

(Algures, no Tejo, no dia 31 de julho de 2014, às 20h50m)

 

 

 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Salão de beleza.




Lavar, secar e depilação completa com cera fria.

Sentada no cadeirão confortável, encosta a cabeça e fecha os olhos.
Vem muito depressa, mal se percebe, torna-se impulso, arrepia e rasgão mais fundo, a aumentar: deitar fora, tudo, de imediato. O coração pode parar a qualquer momento. Percebe as lágrimas a ameaçar turvar o chão, as cadeiras, o espelho, enroladas num nó, a precisar de um papel, de uma caneta - o grito a querer sair. A vontade de chegar a casa. As palavras a procurar uma sombra mais fresca. Sem medo. Ouve o ar irrespirável, pesado e a alegria desfeita. A nódoa negra. A memória de um corpo a pertencer a outro. Um buraco enorme a mudar a razão de lugar. Chorar, mais nada. Talvez escrever.

Venha comigo, vista esta bata, se faz favor. Vem só lavar ou cortamos as pontas? Já fez a estética, não é verdade?

Quero esquecer e gritar. Pode ser amanhã, depois de amanhã? Marcar para outro dia? Pode ser nunca, outra vez?

terça-feira, 22 de julho de 2014

Homens temporiamente sós - um epílogo possível.





Homens temporariamente sós – um epílogo possível.

Na segunda garfada de frango de fricassé, sentida e mastigada com os sentidos todos, percebeu que já era tempo de deixar o Rui Reininho seguir o seu caminho. Ficou suspenso no gosto do limão envolvido no ovo, na carne tenra do frango e recuou a um tempo que já não existia. Sim, estava na hora, em breve faria cinquenta anos, arrumara o luto, tinha um bom emprego, e na frente e segundo melhor prato de frango de fricassé de toda a sua vida, sim, porque o melhor, só a sua querida mãe o sabia fazer. O pai juntara-se a ela e a sua independência confundia-se com a liberdade de um homem temporariamente só - momentos de uma solidão que com dificuldade conseguia entender. Mais do mesmo, pensava, quando chegava a casa e tinha de fritar os bifes, ouvir as queixas do companheiro de casa e o silêncio de quem não tem de  contar o seu dia. Porque não tem a quem o contar. Acabara o luto, ainda tinha de resolver as questões prosaicas de um casarão para arrumar. E porque não?

 Vira-a, pela primeira vez no elevador, não prestou atenção. Uma colega. Farda azul-escura, cara de quem do mundo apenas conhece o caminho para a Damaia, a perna alta, o cabelo de um louro indefinido. Continuaram a encontrar-se no elevador, à mesma hora, cheirava a um perfume de supermercado, o casaco já tinha um pouco de brilho e baixava os olhos quando ele muito hirto no seu olho azul de homem temporariamente entrava no elevador e dizia um polido e bem-educado, Bom Dia. Ele sentiu que não lhe era indiferente, sorria no seu egoísmo de homem só e mirava-a, pelo canto do olho, no espelho do elevador. Recordava-se de alguns filmes que vira, de cenas de elevador sorria e saía no piso a seguir ao dela. Secretária da direção, operadora de sistemas delegada com muitas horas a entender telefone. Sorriu, já tinham alguma coisa em comum. Andaram para cima e para baixo no mesmo elevador, durante um mês, talvez dois, ela temia a sua timidez de menina de quem só conhece o caminho para a Damaia, saía antes que ele lhe dissesse uma frase mais delicada, um elogio… Por essa altura, já tinha reparado na copa D, no tornozelo fino, no colarinho da camisa sempre direito, na pontualidade e no rubor, quando os seus olhos saíam do espelho. Percebera o nome na placa na banda do casaco, conhecia o piso em que trabalhava…. E a copa D não lhe deixava muito espaço para metafísica. Amanhã convido-a para jantar. Não, talvez seja melhor almoçar.

Na semana seguinte, já almoçavam juntos quase todos os dias ele falava e ela ouvia-o. Ouvia tudo o que ele dizia, ele gostava de ser ouvido. Gostava de se ouvir. Ela gostava de o ouvir, não, porque o compreendesse, mas aprendera a ouvir. Muitas vezes, não o escutava, não o entendia. Não conhecia os filmes de que ele falava, calava-se quando ele trauteava uma canção e lhe perguntava. Conheces este tema? Ele insistia, ela calava-se, sorria, jogava o peito um bocadinho para a frente, declinava a sobremesa, não posso engordar. Pois não, querida, não pode. No dia em que bebiam um copinho de vinho ele arriscava Ah! Pois é Bébé! Ela ficava confusa, acelerava o almoço, dizia-lhe que tinha trabalho atrasado e saía a correr. Um dia arriscou convidá-la para jantar, ela atreveu-se e propôs -lhe as suas duas assoalhadas na Damaia, sairia mais barato, como ele gostava – pouco despesa e muita calma, já lá iam umas semanas de almoço, ele já sabia que ela era  órfã, ele também era, ela era mais nova e aquela sua expressão de  quem só sabia o caminho para a Damaia, dar-lhe-ia paz, as noites de póquer, os jantares de homens, não lhe corrigiria o português, não falariam de nada muito sério, garantir-lhe-ia o gin tónico, os jogos do mundial, respeitaria as suas vontades e em breve a copa D seria celebrada com uma pela macia de criança, sem um pelo, uma mancha, um cheiro. Se calhar, apaixonei-me, eu também não lhe sou indiferente, falava pouco, é verdade, mas o resto, qual resto? Pensaria nisso mais tarde. Comprou uma boa garrafa de vinho, um ramo de rosas e quando bateu à porta das suas duas assoalhadas na Damaia o cheiro de frango de fricassé rescendia no prédio inteiro. Ela vestia uma saia preta, uma camisa branca, pusera o colar de pérolas que a madrinha lhe oferecera e os sapatos de verniz que nunca calçava no emprego, acentuara o perfume – uma réplica bem intencionada  de Dior – iluminara o sorriso com o baton e colocara velas da Loja do Gato Preto, na sala, em cima de todos armários. Pediu-lhe que se pusesse à vontade, ofereceu-lhe um gin tónico, tenho de a ensinar a preparar um gin tónico, enquanto olhava para o espelho da sala e despia o casaco sem desalinhar a camisa. Vou mostrar-te a casa, dissera-lhe ela, mostrou a casa de banho minúscula e interior, a cozinha com os apetrechos todos e uma Bimby coberta com um paninho de crochet, o fogão com forno e o frigorífico combinado, a vista não é muito bonita, mas os vizinhos são muito simpáticos, avançaram para o quarto, colcha de cetim, lençóis pretos, velas de várias cores e uma prateleira com o que lhe pareceu ser os retratos da família toda. Todos mortos e alumiados com velinhas. Não viu um livro, um CD, um par de sapatos desalinhado, uma gota de humidade, era muito arrumada, talvez tivesse bom gosto, faltava-lhe um aparelho de som, uma televisão LCD, agrada-me que se tivesse lembrado dos lençóis pretos e da penumbra no quarto. Gostas, perguntou-lhe a sua timidez? Acho que não me esqueci de nada do que fui percebendo que tu gostavas, esqueci-me de alguma coisa? Não, Bébé, está tudo impecável. Vamos jantar, pediu ela com uma voz suave a piar e com  o timbre de quem só conhece o caminho para a Damaia, o molho do fricassé tem de ser comido, depois de ser cozinhado. Vamos jantar! Vamos lá, então.

Enquanto jantavam ouviam Roberto Carlos, o vizinho de cima é doido por Robert Carlos, mas não te aborrece, pois não? Ele não se aborrecia e até trauteava com desenvoltura Tudo pára quando a gente faz amor, mas e agora? Ter-se-ia perdido a magia? À terceira garfada de fricassé com que se lambuzou pensou que poderiam sempre mudar de casa e ter um filho, ela era muito nova, deveria ter bons genes, tinha anca larga, uns bons seios, tinha aquela estar de quem tem pouco mundo: uns programas do National Geografic e  ela ficar-lhe-ia muito agradecida….

Até ando a experimentar uns pratos novos de bacalhau, confessara-lhe, muito orgulhosa, mas não são na Bimby.  Gostaria de casar de vestido branco, branco pérola, vá, com decote, pode ser curto, tu dizes que te casarias com cinquenta anos?

E porque não? Mas serei capaz de ser feliz? De a fazer feliz? Não, isso não tenho dúvida, já a faço muito feliz. Sim, gostaria de ter mais um filho. E, porque não?

(Bastaria a copa D e o frango de fricassé? Pois, talvez, seja esse o segredo. Iria pensar no assunto, ela tagarelava sobre um bacalhau que se coze na véspera e de nunca ter ido à praia, tenho a pele muito branca, dizia-lhe, levas-me a uma esplanada um dia destes?)

 


terça-feira, 15 de julho de 2014

Phil Collins - Another Day In Paradise






Another day in Paradise.

Sentou-se no sítio mais estratégico que encontrou, plataforma em mármore e pedra, colada à vitrina onde seriam afixadas as pautas. No átrio sofisticado e asséptico não havia cadeiras e os degraus da escada pareceram-lhe muito duros. A espera seria longa. Não amanhecera feliz já ninguém acorda a transbordar de felicidade, talvez, as crianças os amantes satisfeitos, e, no entanto, a realidade crua da luz do dia mostrará os assentos dos carros, a escaldar e um dia depois de ontem. Quanta ambivalência nos frágeis corpos humanos!  Ria-se quando dizia que se sentia frágil, que a dor abrandava quando ele punha o braço à volta da sua cintura. A cintura que cabia de um golpe só entre o punho e o cotovelo. À sua frente passavam as sabrinas, os envelopes castanhos, os vestidos de verão decotados, as saias curtas, as miúdas, os miúdos. Ela esperava. Ainda, guardava o amargo que vinha da alma, - fica sempre um sabor acre -, um arranhão, uma nódoa negra. Naquele momento, debruçava-se para a placa de mármore e madeira, qual teclado do seu computador, da sua secretária. Não houvera envolvimento, afinidades. Nada de muito pessoal. Um  emaranhado de vias rápidas a separá-los, um milhar de livros de que ele nunca ouvira falar, o apego aos filhos que ele desconhecia, a avidez de predador que a assustava. Ainda assim, ficaram as mãos, as canções de Abrunhosa, o gemido de dois corpos que se encontram. O tempo avançava de havaianas, rastras e pranchas de surf. Depois do almoço disseram-lhe, depois das duas horas da tarde, pensou que se estivesse em São Tomé ficaria até à hora do lanche o que a obrigaria a voltar na manhã seguinte. De que matéria seria feita o tempo? Os mais crescidos com o curso de medicina no fim da linha e dobrado nos envelopes castanhos, alguns engenheiros com pontes desenhadas nas caras de acne e barba rala, ocupavam a sala minúscula da secretaria. Uns passos adiante, porque não amanhecera feliz, as lágrimas eram expectativa e desilusão. Preferia a desilusão, a negação de uma ilusão que não se cumpriu. Um sonho, um balão cheio de ar. Compôs a canção  A kiss with a dream to build on, andara distraída, desfizera a culpa, a vaidade ganhou um corpo, e durante, algum tempo, andou  naquele limbo de que nada poderia ser, a seguir e, no entanto, tudo poderia acontecer. Poderia? Aprendera que a ilusão não resiste à distância que separa as Olaias de Belém. Moramos muito longe, línguas diferentes, teríamos de aprender um linguajar intermédio. O átrio, cada vez, mais ruidoso, tranças e abraços a fazer-lhe companhia. De vez em quando, aparecia um ar mais sério, mais composto, Olá Pedro, o menino está contente com os resultados? O menino estava, do seu menino continuava sem saber nada. De que falariam naquele linguajar? De futebol? De velhos? Da lua que lhe era indiferente? De arte? Da vida? Da sua? Da dele? A única que valia apenas ser vivida? Era o menino de sua mãe, conheceria ele o poema de Pessoa? Não deveria conhecer, seria isso muito importante? Entre as Olaias e Belém? Com que olhos veriam o Tejo? O arranhão na alma fica sempre. As nódoas negras também. Depois saram. E daí? A seu lado, duas miúdas discutiam a negativa a matemática e as idas ao Urban suspensas até Outubro. Estavam vestidas com calças da mesma cor e cheiravam a champô de morango. Levantou os olhos reconheceu um colega, encolheu-se na caneta azul  e no seu caderninho cor de rosa. Deixou a caneta deslizar até à espuma branca, tinha os pés na água morna, ouvia as gargalhadas e via os castelos de areia crescerem, cobertos de conchas, algas, pauzinhos. Os meninos gostavam. O pai ajudava-os e ao longe, a fazer de conta que aquele momento não lhe pertencia, amava-os com aquele amor abençoado, genuíno e raro. As ondas iam e vinham, ela fingia a atenção na leitura, esperava que o tempo parasse. Terá sido esse o seu desejo naquele momento? Não lhe interessava. Trouxera para aquela pedra mármore fria e branca um presente que já tinha passado. Não seria sempre assim? Sentia o cheiro da maresia e do Ambre Solaire. O telefone tocou, era uma amiga preocupada, uma amiga que lhe pediu que não chorasse, pensa nas desgraças dos que não têm uma mãe, assim, como tu, pensa nisso. Prometeu não chorar sem antes tirar o rimmel e o lápis preto. Não ficarei com os olhos todos borrados. Ganhou coragem e voltou aos clichés do que agora se chamavam relações amorosas, namorados, amigos coloridos? Uma ética A. S.E. A. C. e outra ética D.S.E.A. C. , isto é, Antes  de o Sexo e a Cidade e Depois de o Sexo e  a Cidade.. Não conhecia New York. Carrie Bradshaw era uma imagem da televisão. Démodé e sem graça, estéril. Que insistimos em copiar. Recuou até Casablanca e An Affaire to Remenber. O silêncio ocupava o átrio como se todos se preparassem para subir o Empire State Building. Chegaram uns senhores mais sérios escolhiam as vitrinas, arrumavam papéis, ainda vai demorar, ficarei o tempo que for preciso. Sem expectativa, com um pouco de dor, mas já sem culpa. Continuou sentada, o caderninho cor rosa nos joelhos e, de repente, lembrou-se, e se eu fosse daqueles putos muito mal criados,  que cospem no chão, e cuspisse de vez para os arranhões de alma, para as dores todas e lhe fizesse com a ponta daquela parker azul escura , um risco que desse uma volta completa ao carro? Se eu fosse um puto muito malcriado e lhe furasse os pneus do carro? E, se eu dissesse muitos palavrões e mandasse  o senhor sério  para o ….

Guardou  o caderno cor de rosa, fechou  a parker, olhou  para as pautas, percebeu  que o seu menino iria passar as férias em Alemão e  manuais de Ciências da Natureza. Como não é  um puto malcriado não lhe riscará o carro- até porque já não o consegue  diferenciar de todos os outros que por aí circulam –que queres ?! não tenho memória para carros – quanto ao cuspir, estou quase a ir tão longe quanto o menino que gosta de estudar e não se deita sem me abraçar.

De um momento para o outro, tornamo-nos pessoas diferentes. De um momento, para o outro.

 

domingo, 6 de julho de 2014

Há filmes assim: uma pergunta que nos persegue.


Words and pictures.


Que farei da minha vida agora que partiste?

E de que cor serão os teus dias, se não estiver do outro lado de um pincel? Que farei com os meus livros, as tuas imagens, os teus sonhos? Como se reorganiza uma vida que é construída no ir e vir de um e outro sonho? Como se respira com um coração, quando tínhamos dois? Que farei das palavas que me disseste e as belas frases de Jonh Updike que decorámos os dois? Os pássaros como sinais de pontuação nos fios de um poste de eletricidade? Lembraste? Que farás com os quadros que não consegui acabar de pintar? Serás capaz de explicar que se não fosse a arte todos falaríamos uma só língua? Que dirás quando te perguntarem que parti cedo demais? Vais falar-lhes da minha arte? E serás capaz de lhes dizer que nada disso tem sentido, sem as tuas palavras? Nem os teus desafios? Sem esse nosso tão grande amor à vida? Que faremos que quando uma parte de nós deixar de existir? Que faremos sem as palavras? Que será de nós sem o poder das minhas imagens que tu tão bem completas, ou destróis? ( muito  vodka, eu sei!)

Sobreviveremos um sem o outro?

 Quem encontrará as palavras diferentes com muitas sílabas?

Que seremos nós sem a “emoção” das minhas imagens e as palavras que te levaram a gostar do mundo, além de um parágrafo bem alinhado de um verso de Walt Whitam?

Continuarás a gostar da vida com as mesmas cores?

Sobreviveremos um sem o outro?

Já percebeste que o resto é tão pouco importante? A vida, o pão, a atitude e o sexo? Eu sei que comecei por te dizer o contrário!

Continua a amar os teus alunos, porque eu sei que tu és capaz de o fazer muito bem.

Aproveita esses teu dom, é tão raro!

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Mulheres temporariamente acompanhadas.





Uma mulher temporariamente acompanhada.

A mulher é muito gira, tem graça, dizem que tem estilo. Gosta de dançar e de sair à noite. Conquistou a pulso, com os dois pulsos, o seu lugar no mundo, cumpriu as obrigações todas com as Finanças, sai  sem medo, vai aos concertos que ela própria escolhe, compra  os sapatos, os perfumes, as saias e os livros sozinha, construiu a sua liberdade, reconciliou-se com a sua pele. Organiza com o tempo da pontualidade de um relógio, os trabalhos de casa, as consultas de oftalmologia, escolhe o melhor psicólogo, prepara os fins de semana com o pai, ao milímetro. O seu estar só já não tem o amargo da solidão anterior, o silêncio faz-lhe companhia. Passeia pela casa, quando os miúdos não estão, a ler em voz alta um texto de Henning  Mankel,  Clarice Lispector, uma canção de Edith Piaf, ensaia uma cor de lápis de olhos, ao espelho. Aos fins de semana, a mulher vai dançar, ao cinema, ver o rio, visitar uma amiga. Escreve, estuda uma matéria e quando o trabalho a chama é ele que lhe faz companhia, pode juntar a noite com o dia. O frigorífico dá-lhe o que ela vai precisando e se o telefone não tocar, nem dá pela sua existência. A solidão, o falar uns longos silêncios, saborear um copo de vinho pode ser, por um momento, a felicidade suprema. Às vezes, um rapaz mais atrevido senta-se no seu sofá, adormece a seu lado, sussurra-lhe uma brejeirice ao ouvido, ocupa-lhe a tranquilidade, ameaça-lhe o silêncio, trata-a por minha querida, as borboletas, tímidas, saltam-lhe dentro estômago, vem o convite para o almoço na esplanada, e a mulher pensa que acredita, mas não se convence, oferece-se o direito de sonhar com o mar mais azul, a conversa sem rumo, os pés na areia. Por momentos, breves momentos, uma história a desenhar-se no horizonte, mas depois lembra-se da cama ocupada, a tampa da sanita levantada, as ressonadelas, as esperas pelo telefonema que não chega, lembra-se de outras histórias a tolherem-lhe os movimentos, de outros rapazes atrevidos, dos olhos encarnados de tanto chorar, das promessas em que acreditou, do coração sufocado pela dor e deixa-se ficar. Esquece o telefonema, pensa na adolescente em que se tornou, sms torrenciais, declarações no chat, nas palavras está tudo a ir depressa demais. Pensa que não se enganou e que para tudo há uma  justificação. Sim. O rapaz é atrevido: alguma justificação haverá. A mulher achou o rapaz educado e a sua intuição tem-lhe mostrado que há pessoas de bem. A ansiedade abranda, dois jogos de futebol importantes no mesmo dia, um dia mais quente uma lista interminável de assuntos para tratar, não podia telefonar, estava aflito queria ver o jogo de futebol, sabes como adoro futebol, estou muito cansado, tenho de chegar a casa antes do jogo começar, desculpa querida. A mulher é gira, independente, mas também está cansada. Sentiu a sua paz e o seu silêncio comprometidos. A mulher gira não gostou da ansiedade, da espera, das borboletas a queimarem as asas dentro de si. A mulher não desiste: não é mulher de desistir, nem de cruzar os braços. O filho mais velho está ver o jogo. A mulher não tem paciência. Agarra num livro, olhará um momento ou outro para o écran da televisão. Às nove horas, estará sozinha em casa e não pensará mais no assunto. Colômbia e Brasil, também poderão ocupar o seu écran.( Queres  ver o jogo cá em casa?)

Uma mulher temporariamente acompanhada: poderia ter tropeçado no rapaz atrevido, durante os Jogos Olímpicos. Nada a declarar, estará temporariamente acompanhada. Estar só  será uma boa companhia. (A Alemanha marcou um golo). É assim. Não me perturbou. Desculpa, rapaz atrevido.

Dizem que  gostamos daquilo que conhecemos e entendemos, será por isso que eu não gosto de futebol. Quiçá?

terça-feira, 1 de julho de 2014

Homens temporariamente Sós (GNR)






Ana Paula,

Ó minha querida, se tu soubesses como gosto de ti e não estou a mentir, disse-te que não te mentiria, que não sentiria, que não te falaria de amor, só sei rimar amor com dor, se calhar tenho lido pouco. Não estou infeliz, não quero a tua infelicidade. Não há aqui nada de trágico. Vejo a vida como um jogo, gosto de insistir, se calhar para depois voltar a perder. Encanto-me, desencanto-me com a mesma rapidez com que bebo um copo de vinho. Gosto do beijo. Gosto de soltar o beijo. Dói um bocadinho, quando me perco, quando não consigo esquecer, quando não quero esquecer. Não penses que não me entreguei, que não tentei. Li em todos os dicionários o significado da palavra amor, procurei em muitas noites, espreitei o fundo de muitos copos. Minha querida, não me entendas mal, não me odeies e não transformes o meu abatimento, o meu silêncio, em maus pensamentos contra ti. Também os tenho. Mas não são contra ti. Ainda. Minha querida, tentámos. Tentei e sabia que ia perder, tanto terreno por conquistar… Não, não estou ocupado com outras mulheres. Mentirei se disser que estarei sempre a teu lado. No futuro. Estive contigo, Ana Paula, quando estive contigo. Não consigo sofrer de outro modo - é a minha natureza. Preciso do silêncio das minhas duas assolhadas, ao sábado à tarde, das nuvens de fumo no quarto, gosto de ter as camisas arrumadas por cores e do meu sofá sem forro e já gasto. Querida, não vou de férias marcadas na agência de viagens da tua amiga. Já não te oiço quando falas em salas com mobília completa. Gosto de ir sozinho à lavandaria. Hoje apetece-me uma fatia de queijo e um copo de vinho. Não quero mais nada. Abro o frigorífico e nunca encontro gelo, não gosto de Sumol e sei tomar conta das minhas ressacas. Querida, tira as tuas coisas da minha casa de banho, leva a mala Gucci, as melhores memórias o sentido de humor, deixa-me ficar a perder. Leva a gata - não te esqueças - não gosto de gatos. Não tires a televisão do quarto e deixa a rádio no ar, como eu gosto. Tu já sabias! És bonita, jovem, queres uma família, férias nas Caraíbas, discutir o mau feitio do galã da novela com o homem que sentaste, a teu lado, no sofá do Ikea. Vês? Podes ir ao Ikea, ao Centro Comercial e usar a colónia a cheirar a laranja. Eu quero ver todos os jogos de futebol, não ter horas para chegar a casa, não quero impor esta minha obsessão: estar só. Gosto de ser assim: só. Sim, querida, sou egoísta. Serei leviano, vivo dento de mim, gosto da minha companhia e das nuvens onde preciso, tantas vezes, de descansar a cabeça. Continuarei a olhar para umas pernas bonitas e um carro de coleção continuará a fazer-me sorrir. Desejar. Se calhar estou a perder,tenho o coração a bater e só consigo pensar na felicidade dos próximos dias, porque serão iguais aos de hoje. Depois de teres partido. Deixa as chaves no armário da cozinha, se faz favor. Vai, minha querida, vai em paz. Eu não sou homem para casar! E, tu sabias, nunca te menti. Os homens como eu não são homens para casar.
Serei um homem temporariamente só.
(Aceita o advérbio de modo que eu sei que tu detestas.)

Pedro