quarta-feira, 24 de setembro de 2014

"- O teu cabelo está tão comprido."






(- O teu cabelo está tão comprido!)

- Sim. Não o corto desde o verão. Há três meses que não nos vemos. Andamos de um lado para outro com as nossas vidinhas, o costume, sabes como é. Nunca temos tempo para nada. Encontramo-nos poucas vezes. A cidade cresceu para o rio, para o outro lado da cidade. Tu foste com ele. Tens as tuas razões. Eu fiquei neste lado. Sei que não gostas, inventas histórias de assaltos, falas dos velhos que moram em casarões cinzentos, das janelas sem vidros. Dizes que a minha rua não tem uma farmácia. Uma padaria. Um café. Nada. Nem te respondo, talvez tenhas razão. Cada uma fez as suas escolhas. Ficou a cor. As margens. A luz. Que nos pertencem. O céu da mesma cor. O coração um só. E não, não estou sempre a dar-te prendas. Lembro-me de ti e, por impulso, compro-te um pechisbeque. Se não gostares, não uses. Terias preferido uma panela de sopa, uma travessa de rissóis, bifes panados. Já não me lembro se gostas de croquetes. Os miúdos gostam e comem muito bem. Os meus e os teus. Poderíamos trocar uma travessa de lasanha por um tabuleiro de bacalhau espiritual. Aconselhar-me na compra de um par de sapatos, dar a tua opinião sobre o quadros que vou pendurar na paredes do escritório. Ouviríamos,  sentadas no chão da sala, os parágrafos acabados de alinhar. Os mexericos da moda fariam soltar as gargalhadas. Poderíamos ir juntas ao supermercado, aos saldos, ao cinema. Nunca nos faltaria o açúcar e beberíamos um Nespresso quando nos apetecesse. Iria contigo passear o cão. Tirarias a roupa do estendal numa nuvem mais carregada. Teríamos a chave da casa uma da outra. Não repetiríamos os livros, falaríamos mal dos homens, com o tempo aprenderíamos a sofrer melhor. Sem lenços de papel. Acredita, amiga, que tudo isto tem mais graça que o penduricalho que te ofereci. Não gostaste? Não te rales.

Que importância é que isso tem?

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O exame de Ciências Naturais




O exame de Ciências Naturais

O calor batia-lhe nas costas, conseguia ver a sua sombra desenhada no chão, a ponta do pé direito encostada à cabeça, o ombro esquerdo colado a um dos lados da laje rosada. Em redor, as vitrinas, as escadas, as paredes verdes. Uma janela com o vidro cortado ao meio por um fio de telhas, a desafiar o céu, à sua frente. Esperava. A sua ansiedade, uma vez, a salvar o miúdo. Chegar quarenta e cinco minutos antes do exame foi quanto bastou para não o perder. A campainha tocara há instantes e, naquele momento, precisou de uma fé, de acreditar num deus, uma divindade que soprasse aos ouvidos do miúdo as respostas certas ao questionário de muitas páginas. Sabia que o miúdo tinha um anjo da guarda. Como toda a gente. Olhamos para o céu, gostamos de uma nuvem e escolhemos o anjo que nos acompanhará a vida inteira. Sabia que os seus miúdos já tinham olhado para o céu. Ciências Naturais, três anos de Terra, pedras, meio ambiente, cadeia alimentar, corpo humano, doenças sexualmente transmissíveis. O miúdo esforçou-se. Ela sentia-lhe o frio no estômago, a transpiração nas mãos. No caminho desejou que o dia de hoje fosse feriado, nem lhe explicou que os santos e as revoluções não apagam as responsabilidades. Ontem, antes de adormecer, disse-lhe que estava nervoso, não te vou dizer se me correu bem ou mal, não me perguntes nada, esqueceu-se de acrescentar é a vida que escolhemos. Esperava. Fugia do sol, apoiou-se no pilar cinzento de pedra, reparou que o Scarlett das unhas começava a estalar, desejou ter um computador, um ipad. Poderia trabalhar. Escrever é tão difícil. Admirava os escritores, os músicos, os pintores. O trabalho salva-nos, a arte também. Na tarde parada no seu tempo de mãe não passava ninguém. Nada acontecia. Conseguia ouvir as conversas das funcionárias, a telenovela, a receita de uma sobremesa rápida, uma irmã que morava em França que não viera de férias. Esperava. Apareceu um miúdo muito bronzeado, perdido, a perguntar pela professora com quem combinara encontrar-se, pode dizer-me as horas? Sabe onde é a sala vinte? Uma miúda muito loira de minissaia de ganga pegou-lhe no braço e levou-o. O director já chegou, vamos. Ouvia pela terceira vez, dia doze, as aulas começam dia doze, a funcionária que respondia tinha  voz de locutora de televisão, uma permanente apertada mostrava que estava preparada para o início do ano lectivo. Pensou no miúdo, fazia hoje dezasseis anos, estava a enfrentar uma prova de fogo. Talvez, a primeira. Os sentimentos confundiam-se.Tristeza, orgulho, alegria. Benvindo ao mundo para maiores de dezasseis anos. Está a crescer. O miúdo, trinta centímetros mais alto, aprendia as primeiras palavras. O telefone continuava a tocar. O sol afastou-se um bocadinho, poderia sentar-se no muro mais fresco, ver o movimento da cidade, ao fundo do átrio, num rectângulo estreito e alto. Não percebia os contornos, mas via passar o ruído, homens, mulheres, crianças, autocarros, automóveis. Na tarde quente o vento que mal levantava os vestidos e os cabelos refrescava a ansiedade e a espera. Olhou para os quadrados perfeitos do chão, a sua sombra tinha desaparecido. Um homem e uma mulher conversavam à sua frente, olharam para ela, encolheram os ombros, franziram a testa. Não lhes explicou nada. Começava a doer-lhe a mão. E a esferográfica? Teria o miúdo trazido esferográfica? Com os dentes puxou as peles do polegar direito. Arrancou uma pele mais a jeito e o sangue apareceu da cor da unha. As vozes eram barulho. Incomodavam-na. Esperava.

Quando se acorda com dezasseis anos, um exame numa tarde quente de Setembro é uma lição.

Ela esperava.