sexta-feira, 31 de outubro de 2014

estás a ver a sombra?


 

                            Auto-retrato Charles Thurston Thompson, Inglaterra 1853 ("Figuras de Espanto")





estás a ver a sombra?

estás a ver a sombra? assim estás contra luz, ficará uma mancha branca e indefinida, eu não gosto do lado direito, o meu melhor ângulo é o outro, o lado esquerdo fica melhor,  para me fotografares os olhos a brilhar, tem de ser de frente, mostra, deixa-me ver, não gosto, tiraste-me uma fotografia à boca, qual é o interesse de tirar uma fotografia à boca? a preto e branco também se percebem as rugas do pescoço, fizeste de propósito. As fotografias a preto e branco têm mais luz, maior definição, a fotografia é a preto e branco. Sim,  estou a divagar, estás atrasado -  há duas horas que espero por ti, foste comprar um cartão para a máquina? inteirinho para mim? fotografias minhas a preto e branco? há duas  horas que te espero, estacionaste mal o carro? a menina da caixa reconheceu-te e tiveste de fazer conversa?! pois, és bem educado, eu sei, o trânsito fica caótico quando chove, hoje choveu? em que cidade? insistes nas fotografias, ainda vou ficar mais bonita, ainda mais bonita? deste as mesmas desculpas a última vez que te atrasaste, lembraste? íamos ver o rio…  apanha-se mais depressa… clichés, provérbios de algibeira, o que tu quiseres, eu não quero mais fotografias, pronto, não quero, queria e, agora, já não quero, gosto das fotografias que me tiras, tiraste-me fotografias nua, dessas gostei assim-assim,  gostámos os dois, o teu olhar não te atraiçoa, não estou arrependida, de que adianta o arrependimento depois de o mal estar feito? o “mal” não é despir-me para os teus olhos que nunca te atraiçoam, o ”mal” é ficar quieta, sossegada, muda à tua espera, na certeza de o tempo a passar, e eu aqui, aí tens tu o “mal”, só tu me fotografas a alma? a alma? não sejas ridículo, que sabes tu da alma, pára, a luz já não está boa, o sol desapareceu, ficarão muito escuras, serão  sombras e manchas, sem  sentido, nada disto faz sentido, não quero que me tires mais fotografias, não quero, o meu vestido é bonito? preto, bonito e fácil? um vestido fácil?  vestido fácil?! o que é que queres dizer com isso? o perfume dá-te vontade de…, não me agarres as mãos, não me prendas as mãos, as mãos não – desequilibraste e ficas com a minha alma, a preto e branco, nos  teus olhos, vesti-me assim, só para me fotografares? estamos com muito sentido de humor, queres ver-me rir, uma gargalhada, só uma?! então não tens a minha alma, nos teus olhos, no cartão da tua máquina? de que estás à espera? vá, faz-me rir.  Vou mudar de vestido e acender a luz. Não consigo ver as sombras.








terça-feira, 21 de outubro de 2014

Para a Lita, com Amor.



Deixava os passos arrastarem-se, pequenos e lassos. Adiava o movimento do pé esquerdo a acompanhar o pé direito. O pé direito a deslizar. Devagar. Surdos e mudos, os movimentos. Como se o tempo não fosse aquele caminho comprido, aquela rua movimentada. Imaginava outro país, outra rua, outro rosto. Outra vida. Olhava para o relógio. Indiferente ao atraso, indiferente aos cheiros, às pessoas, às casas. Indiferente à rua. Queria chegar tarde, atrasar-se. Não chegar a horas, não cumprir, não fazer, não obedecer. Os passos diminuíam o ritmo. Suava. Sentia o arrepio, lento,  a tomar-lhe conta do corpo. O medo a pesar-lhe nos ombros, a agarrá-la pela cintura. Uma dança a pedir sexo, sem voz, descompassada. A dor, o medo e o sangue. A pele em ferida. Uma vez e outra. A roupa rasgada pelo  prazer que não lhe pertencia. Nítida. A  imagem do medo e das dores. As pernas tremiam-lhe. Parou. Apoiou-se numa montra. Evitou olhar o reflexo. Encolheu-se, quando lhe tocaram, sem querer, naquela pressa de entrar para o autocarro. Apertou os braços, em cruz, à volta do pescoço. Respirou fundo e sentiu os gritos no ventre socado, no peito sem forma. O eco da sua miséria, os insultos num vernáculo ruidoso e mesquinho. Os soluços e os pulsos presos latejavam. Baixava a cabeça a um olhar mais curioso. Os passos queriam parar.  O corpo pedia-lhe silêncio. Olhou para o relógio. O tempo não tinha parado. Chegaria muito tarde. A casa era um buraco onde chegaria com  horas de atraso. Abriria a porta com as mãos húmidas e a pele colada à roupa. Enxovalhada. Sem graça. Um boa noite, em murmúrio, a esquivar-se à mão grande e fechada. Em vão. Sentiria as costas vincadas na parede suja, no chão gasto, na porta da cozinha. Uma vez e outra.

(continua)

 

 
                                                                                     Fotografia retirada de .folhadomate.com/blog


                       






 

 

 

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Agarrar a lua.




Uma folha arrancada de um caderno com as folhas soltas.

Não deverias ter pensado só em ti.  Não podias  ter feito isso.  Lamento, mas agora já não há mais nada que possas ser ou dizer - não te quero a meu lado. Arrruma as tuas coisas. Leva a gata, não te esqueças da caixa de areia e das latas de ração. Fecha  bem a porta, quando saires. Deixa a chave na caixa do correio. Vai. Adeus. Sim,  faremos o luto sozinhos. Nem o tempo nos pertence. Morreremos  pessoas diferentes.
Adeus!

 
 
(Agarrar a lua, comprar um vestido encarnado e dançar até ser dia. Outra vez.)
 
 
 
 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Um gin com água tónica?! Oxalá fosse!




(Um gin com água tónica?! Oxalá fosse!)


 Até podia ser pieguice, chamada de atenção, um pedido de colo. Podia ser. Sou - só - uma pessoa. E as pessoas costumam sentir e pedir amor. Mas hoje não. Podia ser. Não é. Quero sair da cama. Seguir em frente. Não consigo. Não me levanto. Puxo o lençol e enrolo-me nas flores bordadas no fundo quadriculado castanho e branco. Desfaço a almofada entre o pescoço e o cabelo que ainda cheira a champô, estou de lado, sobre o coração. O corpo pesa e treme. Não tenho frio, a chuva brinca com a janela. Desenhos a dedo. Pó e água. A luz amarelinha recorta uma sabrina, as mangas de uma camisa, o título de um livro e o marcador colorido que diz amigos para sempre. Oiço as crianças a correr para a escola, portas a bater, o chiar da roldana de um estendal. São horas de seguir em frente, encetar o mesmo caminho, pisar a terra, apontar os trabalhos de casa, abrir outra página. Continuar. Chego o corpo para a beira da cama, faço força com os pés, arrisco uma alavanca com o cotovelo, levanto a cabeça, respiro fundo, olho para cima, não vejo nada - uma mancha escura é a linha da parede e a esquadria do teto. Regresso no instante seguinte, ou no tempo que parou. Andei a pairar no buraco sem fundo, como nos pesadelos de criança. Tento outra vez, evito olhar para cima, para a espiral em que o teto se transformou. A cabeça dança. Às voltas. Sem música. Não percebo se a dança é dentro ou fora. Só sei a cabeça. A espiral. Às voltas. Círculos perfeitos. Grandes. Mais pequenos depois. Na mão direita, na mão esquerda. Não há dor. Só esta dança, em círculos, a agarrar o pescoço, o tronco, as pernas. A cama sou eu. O teto continua a fugir. Já não oiço a rua. A espiral a puxar o quarto para o buraco negro é tudo o que existe. Como nos pesadelos de criança.