terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pode o Amor ser tão cruel? I






Pode o Amor ser tão cruel? I


Encontraram-se onde, agora, as pessoas se encontram, entre um poema de Vinícius e uma canção de Cole Porter, no espaço, ínfimo que separa um ‘like’ de um comentário de quatro ou cinco linhas. Andaram neste namoro três, quatro semanas. Depois de muitas trocas de imagens de filmes que lhes assegurava a cumplicidade de um passeio à beira-mar e a cor de lingerie, passaram a ser um do outro. Um namoro banal, quase, feliz, como os das pessoas que acreditam no amor e na comunhão de almas tocadas pelo “que seja eterno enquanto  dure”, nos sms, com as mesmas palavras, à mesma hora. A mulher sorria, brilhava-lhe no rosto a tarde de amor, sexo e poesia trocada entre dedos, língua e pele. Tinham-se encontrado e, para a mulher, era o início de um idílio que a levara a perdoar ao homem o hades, o desconhecimento da música barroca e a desatenção a um dia de trabalho. Perdoava-lhe os pecadilhos, os gestos menos delicados e o vernáculo exagerado nas declarações de amor. Viam-se e amavam-se entre uma aula de condução do filho mais velho, o teste de inglês do mais novo e as doenças crónicas da mãe dele. A mulher trabalhava, organizava-lhes a felicidade, acompanhava os filhos e ansiava pelas palavras do homem no quadradinho azul do computador, abençoava as tecnologias e a felicidade que lhe dava a partilha dos mesmos poetas e os refrões das cantigas do Abrunhosa. Construíram um nós, passeavam na praia batida pelo vento e ousaram uma ida ao cinema. A mulher que não acreditava no amor começava a perceber a beleza de um beijo roubado e a segurança de um biillet doux às oito da manhã: “Os amores felizes devem ser todos iguais como as famílias felizes de Anna Karénina”, livro que a mulher duvidava, que o homem alguma vez tivesse lido, falha que não a incomodava, porque aos cinquenta anos aprende-se a valorizar a força das palavras em surdina. Assim passaram os dias, o entardecer, os sábados à tarde, quando a ginástica das crianças não lhes tolhia o orgasmo, ou o prazer de uma conversa mais séria. A mulher sentia-se bem com aquele homem com um passado de aventuras, uma doença ruim, dois casamentos infelizes e a banda sonora certa para qualquer que fosse o cenário. No início, achava-o exagerado, provocador, atrevido, no entanto, a sua meiguice – ‘amorzinho para cá, amorzinho para lá’ – convenceram-na, apreciava aquelas carícias, os elogios à medida da sua cintura, ao brilho dos seus olhos. Foram-se ajeitando, sempre a cumprir horários, sempre a obedecer. Era a vida de cada um deles, o passado que se impunha, o dela mais comum, mais tranquilo, o dele mais carregado, mais rendilhado: ‘não somos todos iguais e a lucidez com que educamos os filhos depende de pessoa para pessoa’ – é a alma dos nossos negócios, como na canção da Bethânia e do Chico. Sabiam-na de cor. E, quando se encontravam no mesmo verso, o mundo parava, os seus olhares eram um só e a vida parecia que não se tinha esquecido deles. Enfim, poderia, pensava a mulher, reconciliar-se com a definição de um possível amor - a poesia tinha uma voz e um eco na sua pele. Um mês, dois meses, organizados ao milímetro, passaram. A mulher estava feliz, o homem também. Passavam horas a trocar mensagens e promessas, a mulher achava graça àquele palavreado, gostava da sua imagem ao espelho, o homem respondia-lhe com uma canção e ousava os seus dedos na curva das suas coxas, no recorte dos seus lábios. Havia entre eles uma afinidade de uma novela romântica e o respirar dos diálogos de Anaïs Nin. E riam, riam muito. Dos dias de chuva, das suas aventuras de adolescentes, das transgressões mais arrojadas, das vidas que tinham vivido. Encontravam-se à luz do dia, mas o parque de estacionamento, à noite, com os candeeiros de lâmpadas fundidas não lhes era indiferente. Ele estacionava o carro à beira Tejo, ou à beira-mar do Guincho e amavam-se. Podiam ficar uma tarde inteira, duas horas, mas nunca mais do que um intervalo, sem remorsos. ‘Coisas dele, pai extremoso’, pensava a mulher. As horas que lhes pertenciam eram só deles e tinham a cor e o respirar de um nós que o homem tinha imposto. Ela sentia-se feliz. Completa. Mulher. Provocadora. Amada. ‘Bem fodida! Queres tu dizer.’ E, riam-se, uma vez mais. Um rir e um estar que a mulher desconhecia. ‘Beijas tão bem!’, dizia-lhe ele. Viviam aquela felicidade única, comum para  quem acredita que os minutos podem ser eternos. Poesia, música, pele, transgressão e uma bonita história de amor - ‘ é o amor’ - que tinha passado de uma linha virtual para uma cama num prédio das Avenidas Novas. ‘E, se fugíssemos?’ – perguntou-lhe ela, um dia, mais atrevida, mais cansada, mais ansiosa. ‘Sim. Podemos fugir.’- respondeu-lhe ele. Combinaram uma esquina, ali, numa perpendicular à Avenida Fontes Pereira de Melo – ‘Esperas por mim, estarei parado no sinal, amanhã, por volta das quatro, quando me vires, vens ter comigo, depois logo se vê…um fim-de-semana, uma noite…Se calhar, chego um pouco depois das quatro. Quando me vires …’  Ela concordou, Sim, sim, chegaria o seu momento. Organizou os jantares, o saco da Educação Física, as rotinas…. Avistou a perpendicular com a Avenida Fontes Pereira de Melo , um pouco depois das quatro, estava atrasada, viu o carro dele, parado. Avançou, o coração a sair da boca, a correr dentro do seu corpo: ela correu também. Atravessou a Avenida, viu-lhe o sorriso e correu, agarrou o presente que lhe comprara e cerrou os dentes, saltou para a rua. Jogou-se nos seus braços, não percebeu o sinal vermelho para peões, nem o Mercedes que arrancou e a jogou para longe, para o outro lado  do passeio, como um papel amassado, jogado pela janela, sem forma e, já,  sem vida. Do outro lado, na perpendicular com a Avenida Fontes Pereira de Melo, o homem virou a chave, pôs o carro a trabalhar, olhou para esquerda uma vez, para direita outra vez, percebeu que ninguém o tinha visto, esperou que o sinal mudasse para avançar, sentiu, por momentos, o sangue nas veias - ‘ Chegarei a tempo de estender a massa para a pizza, o miúdo não precisará de ir jantar ao Mac. Ainda vou espreitar o feicebuque, pode ser que a Ana Paula já lá esteja’. Olhou pelo retrovisor, o corpo da mulher ainda estava estendido, desarranjado, no chão. Ao longe, ouvia a ambulância que se aproximava. Entretanto uma pequena multidão olhava para aquele corpo sem vida, disforme, descalço. “Está a sorrir, a mulher está a sorrir”, gritou uma voz mais descarada. "Ainda era jovem, devia ser bonita.”

Quando a ambulância chegou, chuviscava e a noite descia no céu frio de Dezembro.





segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

One night stand



Mimi Tavares, One Night Stand, 2012.
 
 
 
 

One night stand

 

Estico os braços e  percebo as costas lisas, macias, largas: um homem misturou-se comigo no último cubo de gelo. O olhar. Via um par de olhos, lembrava-se dos azuis, brilhantes, a estatura, a aproximação das mãos, o ruído de  uma canção que se conhece de cor, o cigarro que caiu no chão, “tem lume?”, muito óbvia a pergunta, na noite, num refrão gasto por onde se deixa arrastar o corpo não se pensa. No óbvio. Não se pensa. Tinha os olhos abertos doridos e olhava para aquele corpo, a seu lado, semi nu. Apagam-se as palavras, amolecem  os gestos, o corpo insiste, quase se toca, pressente-se um desejo – uma solidão igual. Doía-lhe tudo, a existência, a respiração ofegante, sem nome, atravessado na sua cama desfeita, já sem penumbra. Com a dor e o que insistia em ver, em procurar, viu o apoio - um longo balcão de imagens repetidas, em frente, havia um espelho, viu os olhos brilhantes, vítreos, na sua frente. Na cabeça, ouvia o bater do seu coração, a conversa igual, a banalidade dos desabafos, as mãos dadas, sim, tinham dado as mãos, devem ter rido: o choro não traz desconhecidos para casa, a tresandar a gin. Mexia-se a custo. O desespero e uma angústia  espalhavam-se pelo corpo, na garganta seca, nem a sinceridade de um gemido, não conseguia afastar-se, endireitar-se. Sem pudor - o sol,"ajudar-me-á”. Tossiu e sentiu um golpe. As costas subiam, procuravam a almofada. O corpo de costas macias, lisas e largas mexeu-se. “Olá, tens um cigarro? ”Um indicador mostrou-lhe o chão encerado e a roupa espalhada.”Deve estar, por aí, um isqueiro”. A frase arrancada deixou um risco de enjoo. “A casa de banho?”. Com o olhar, mostrou-lhe o caminho. “É a porta pintada de azul”. Tinha frio. Cobriu-se com lençol e ajustou o corpo a procurar conforto. “Queres que te deixe o meu número de telefone?”. A cabeça, muito devagar, acenou.“Não vou precisar do número de  telefone, para nada. Despacha-te. Vai-te embora!” Cruzou os braços, viu as horas, lembrou-se de um almoço, ou seria um lanche? “Adeus, foi um prazer”. Sorriu. “Não duvido”. A cabeça ao ritmo do coração.
 
 

(Porra....ainda me dói o Francisco. Foda-se! )  



 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

 
 
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Para o F.





( um bocado de papel para reciclar)

 

Para o F.

Sou pouco dada às palavras – lia com dificuldade as letras das canções que cantarolavas – e os sentimentos não são, como sabes, matéria da minha preferência, quero, no entanto, à sombra destes dias de inquietação, dizer-te, num último parágrafo, que encontrei um par de botas pretas acima do joelho; aprendi, por fim, a fazer puré de batata e a Maria Felicidade, irmã da Sãozinha, que não chegaste a conhecer, continua desaparecida. Trivialidades. Nada disto faria muito sentido, se não tivesses encontrado debaixo da mesa que compraste na Feira da Ladra, a minha caneta de tinta permanente e uma beata fria com restos do meu baton. Vês tu?! Eu tinha razão: o amor não existe. Deixo a chave que me emprestaste – fizeste questão de dizer, várias vezes, que era emprestada! – na caixa do correio. Se, por acaso, ainda houver algum rasto meu: um cabelo, uma mancha de perfume, um botão, deita-o fora – o passado é o tempo que nos fica colado à pele, não podemos permitir que nos agarre, também, a alma. Quanto à caneta podes ficar com ela, quando a tinta secar, poderás arrumá-la no fundo de uma gaveta, ou oferecê-la a quem aprecie, ainda, um aparo a raspar o papel. A caneta é um objeto: podemos fazer com ele o que por bem entendermos, os objetos não têm remorsos.

Adeus.

Lamento as banalidades deste último parágrafo. Ou, talvez, não.

 

P.S. – Não te preocupes, não irias gostar das botas – são demasiado brilhantes – pisar-me-ias, num passo mais arrojado, ao som de uma canção de Frank Sinatra.

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Texto com bolinha ou variações sobre um quadro de Dali



Resultado de imagem para Rapariga à janela Dali
Salvador Dali, Rapariga à janela

Texto com bolinha ou variações sobre um quadro de Dali

Lembra-se de ter visto esta janela no Museu do Prado, estavam ambas, lá, por acaso, ela e a rapariga do Dali. Entrara na sala de Dali pela mão de um filho, era uma exposição temporária e, enquanto os outros  ficaram com os relógios e a cara da Gala, ela ficara, suspensa, a olhar para aquela janela, para o movimento do corpo bordado a tecido claro, colado às ancas largas, as pernas roliças, o rosto escondido pelas madeixas de cabelo, o pé displicente apoiado na ponta dos dedos, o mar com uma vela muito distante, o reflexo no vidro, o panejamento repuxado pela violência da janela escancarada, um pano, ou um lenço, do lado esquerdo, o corpo da rapariga sem mãos nem rosto. Sentia o seu respirar, pensou que as mãos poderiam estar cruzadas,ou abandonadas a um desejo que a sensualidade do vestido exibia sem pudor. Ficou muito tempo mergulhada naquele mar, sentiu, por momentos que aquela janela lhe pertencia. Não era grande apreciadora de Dali - não desprezava a sua genialidade - gostava dos surrealistas. Mas Dali não era o seu preferido, daí o seu espanto...aquele bocadinho de vidro da janela a refletir as casas e o movimento sensual daquela mancha branca de muita cor e luz, durante muito tempo, não a largavam. Nunca mais a largaram. Tem feito, ao longo da vida, muitas legendas para aquele retângulo de mar emoldurado, quase simétrico, interrompido pela mancha branca de  cor e luz, de uma mulher. Imagina-se a mulher - a rapariga do vestido colado às costas e às pernas -, vê-se com as mãos enterradas na barriga a amparar os movimentos, intensos, sempre mais intensos, ritmados, compassados - em música - do corpo do homem que, da sombra de um céu cinzento, se entregou  às suas coxas e se colou ao seu corpo. As palmas das mãos abertas tocam nos ombros, a voz dele lambia-lhe o pescoço, a mão direita procurava, rastejando, o nó do seu prazer. (a rapariga da janela com sexo à frente) A mão esquerda do homem segurava a moldura de madeira a que os movimentos de ambos se agarravam. Endireitou-se, encontrou o seu lugar entre a a boca e o prazer que aumentava e se roçava na pele, ao som de uma valsa tocada ao piano. (a rapariga da janela com sexo à frente  não se mexia ao frio de novembro, nem ao vento do mar) Um movimento levantou-lhe o vestido, a mão grande do homem abriu caminho, molhou os dedos e no primeiro gesto simultâneo, entrou nela, ávido, a saciar as bocas. Ficaram um só. Ofegantes. Libertavam-se. Um e outro. Dois acordes da mesma canção nos seus ouvidos. Quando acabaram de se beijar e, olharam o mesmo  mar, a vela de um barco que se via da janela com uma rapariga desconhecida -  pintada por Dali -  tinha desaparecido.
 

 

sábado, 17 de outubro de 2015

Speak Low ou como as viroses são coisas boas.



As viroses são coisas boas.
 
 
As viroses são ‘coisas’ – sim, coisas – boas que acontecem nas nossas vidas. Impedem-nos de pensar - alegria, das alegrias - jogam-nas para uma cama, sem dó nem piedade, enrolam-se em nós e deixam em suspenso as questões metafísicas e as indecisões políticas. Agarram-se à nossa cabeça e apertam-na como se não houvesse amanhã: «Vamos lá apertar, agora, que o futuro a Deus pertence!». Delicioso cliché a chá de gengibre! Que felicidade! Durante, pelo menos três dias, não nos preocupamos com a roupa que teremos de vestir, o saldo negativo, as promessas de António Costa, os trabalhos de casa dos miúdos e, até, a melhor maneira de ler o Sermão de Santo António aos Peixes desiste de ser a maior das nossas dúvidas pedagógicas. É tão bom ter uma virose e, se ela, além de brutais dores de cabeça e de corpo, se fizer acompanhar de uma simpática diarreia, então, ficamos descansados e em paz – elegância garantida por mais uns tempos. Há-as de várias cores, tamanhos e medidas, não se compadecem da crise gostam que lhe demos total e completa autonomia e adoram estragar-nos os planos. Se tiver um namorado, convites para passear, livros para ler – a Elena Ferrante ou o Henning Mankell, são bons exemplos – as viroses felizes que, entretanto, ocuparam o lado mais largo da cama facilitam-nos as escolhas – o namorado é uma voz ‘lá longe’, ao telefone, as festas e os passeios aconteceram sem nós e a leitura não saiu da mesa de cabeceira. Mas o melhor das viroses é a compreensão de que a traição, afinal, é uma agradável e tranquilizadora maneira de se estar na vida, passo a explicar:  quem, como eu, por exemplo, durante dois longos anos foi fiel à loucura de umas quantas células, entrega-se, sem qualquer tipo de moralismo ou remorso, ao sorriso da primeira virose que lhe aparecer. Sem delongas, nem grandes cogitações. A monogamia não é mais do que um  preceito burguês da  felicidade. As viroses são democráticas. Assim, coladas às nossas misérias, pijamas ou camisas de dormir vivem connosco momentos de verdadeira e aconchegante agonia, sem percebermos, no entanto, que ‘a vida continua’ e SER depende de um mão cheia de lenços de papel e antipiréticos.
Como é bela a vida! Obrigada, querida amiga por tudo o que fizeste por mim, nos últimos dias, desculpa se te viro as costas, mas tenho ali uma panela de legumes a cozer e uns testes para pensar.
Aproveitem bem as viroses que vos couberem em sorte, porque, durante alguns dias, elas serão a verdadeira razão da vossa existência.





sábado, 10 de outubro de 2015

Um amor civilizado.






Um amor pouco civilizado

E, depois, levas-me a dançar a noite inteira? Proteges-me do açúcar e da tempestade? Tiras o som da televisão quando o vento for uma canção  a roçar-se nos vidros? Vais comigo ao ciclo de cinema francês? Deixas-me usar botas de verniz acima dos joelhos? Não te zangarás comigo, quando as prateleiras da casa de banho forem uma montra de sombras e rimmel? Os domingos de manhã, que passar a dormir não serão, para ti, uma perda de tempo, uma torneira que não veda bem? Se fumar um cigarro à janela, nas noites de lua cheia, não falarás sobre os 'malefícios' do tabaco? Gostarás de bebericar um gin, nas noites mais longas de inverno? Compreenderás a minha irascibilidade na caixa do supermercado? Não me obrigarás a comer sentada à mesa, muito direitinha e com o guardanapo no colo? Perceberás a minha ‘fome’ de solidão e de silêncio? Gostarás das minhas gargalhadas quando trocares as palavras e te enganares a pronunciar o nome de um poeta? Conseguirás deixar de escrever rsss… nas mensagens privadas e parar de me perguntar se estou bem? Entenderás que as raparigas gostam de sair, em bando, sexta-feira à noite? Não sentirás ciúme, quando a minha camisa mais justa cair nos olhos de algum cavalheiro mal disposto? O meu 1, 53cm com 48 kg não serão pretexto para me obrigares a tomar vitaminas? Entenderás que o sexo gosta de dentes bem lavados? Serás capaz de entender que não gosto da conjugalidade na lista das compras? Ouvirás comigo todos os discos do Sabina? Dançarás comigo o slow mais piroso do Tony Carreira? Ou do Frank Sinatra? Cantar-me-ás ao ouvido? Aguentarás as minhas conversas intermináveis ao telefone? Perdoar-me-ás não gostar de futebol, nem de ensopado de borrego? Andar descalça e com pouca roupa pela casa não te deixará constrangido? Não gostar de arroz doce com canela não fará de mim um animal esquisito? A roupa preta que costumo usar não irá sujar o teu sofá branco do Ikea? Obrigar-me-ás a conhecer os teus amigos de infância? Serás capaz de não me perguntar por que não me dou bem com o casamento, nem acredito em  promessas de amor eterno? Sentirás, como eu, que a Amizade é a forma de amor mais verdadeira? E, se eu me esquecer de te telefonar prometes não elaborar uma Teoria Geral Sobre as Regras das Relações Felizes? Esquecerás Veneza? Guardarás Paris num postal ilustrado?

Bem me parecia….É que eu gosto de ir ao cabeleireiro, pinto o cabelo e as unhas, uso perfume no corpo todo e não troco a leitura de um policial por uma cozinha bem arrumada.

Coisas minhas!

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Parabéns, João.





Parabéns, João.

O dia dois de Setembro de 1998 amanheceu nublado e húmido. O ar   muito quente colava-se à pele e à respiração. Sabia que o caminho para o hospital seria rápido e que chegarias de tarde, à hora marcada e de bem com a vida. Nasceste encarniçado, despenteado e cheio de fome. Já te contei uma centena de vezes tudo isto e sabes que dias depois de teres nascido, eras um rapazinho bonito e bem disposto. À tua volta tudo te distraía e te animava. Gostavas de música, de ouvir as histórias que te contávamos e de comer. Os teus primeiros anos foram de alegria, brincadeira e muita conversa. Aprendeste a falar e a andar muito cedo. Um dia, um amigo mais crescido de quem tu gostavas muito disse que eras um «miúdo muito livre». Pois. Percebemos esse teu gosto pela liberdade (e pela ireverência) no teu primeiro dia de escola: sem percebermos como, conseguiste perder, em segundos, os atacadores dos sapatos e a mochila. Nunca registavas os trabalhos de casa, hábito que manténs com militância, estar sentado quieto e calado na sala de aula continua a ser, para ti, um martírio. Não conheces a palavra arrumação, perdes  a capa dos livros escolares e estragas sapatos com vontade e sem medo. Com facilidade fazes amigos, falas com fluência inglês e alemão, gostas de uma boa gargalhada, de raparigas loiras – a Sara Sampaio deve ser a excepção – e de descobrir bandas novas no Youtube. Quando olho para ti, vejo-te numa nuvem qualquer, perdido num sonho, ou num pensamento. Não resisto aos teus olhos brilhantes, por isso, é-me muito difícil dizer-te não. Mas digo e tu não gostas.

Tratas com tanto amor os teus avós, os teus primos e as pessoas que te pertencem, às vezes, penso que o teu coração vai rebentar. Não tenho dúvidas que a generosidade fará de ti um homem de bem. Eu estarei de olho em ti. Um dia destes encontrarás o teu caminho e dir-me-ás: «Mãe, anda cá, preciso de falar contigo.» Talvez nos sentemos a conversar, de mão dada, a ouvir Doors, ou Pearl Jam. Talvez me digas o que queres ser quando fores grande, ou, como hoje, me perguntes, entre uma gargalhada e um arrepio: «Mãe, qual é o sentido da vida?» Não sei que conversas serão as nossas e quantos centímetros mais irás crescer, não sei que mundo será o teu. Não sei, meu querido filho.

Sei que metade do meu coração te pertence, há dezassete anos.
Parabéns.

Não te preocupes com o sentido da vida.

[…] Segue o teu destino/Rega as tuas plantas/Ama as tuas rosas./ O resto é a sombra/De árvores alheias […] Ricardo Reis.

Isto dizem os poetas, as mães costumam dizer outras verdades.


(Tem cuidado, João, ainda há bocadinhos de vidro no chão da cozinha. Olha para o que estás a fazer – o chão da cozinha pode ter vidros, as garrafas que deixaste cair, lembraste? Em que é que estavas a pensar? Por onde andas? Em que nuvem te sentaste? Que queres tu, afinal?)

Coisas de mãe, adoro-te filho.


sábado, 22 de agosto de 2015

Regresso à casa - As tardes de verão sem praia.Parte I


                                                                   

                                                  José de Guimarães, Camões e D.Sebastião.


    

                                              
                   
Regresso à casa.

As tardes de verão sem praia. Parte I

Nos dias sem sol, quando o vento norte trazia a água fria e não deixava entrar o levante, ficávamos em casa. As horas passavam devagar sem gente, nem correrias ou cuidados com a digestão. A leitura ainda estava longe, as bonecas não falavam e as mulheres da casa arrumavam o dia entre a açorda, as limpezas e as costuras. Sobravam-me as paredes brancas e os lápis de carvão. Ensaiava na cal que não conseguia descascar os números, gostava muito do dois: parece um cisne, mas também pode ser um pato desenhava-os grandes com o pescoço muito longo e um bico mais pequeno ou ensaiava uma família numerosa com pai, mãe e filhos, fazia  linhas de números dois - com traço grosso - a passear ao longo do rodapé que rematava as lajes do chão, geométricas e enceradas a encarnado de tingir os joelhos, as rendas do vestido e os pés descalços.  Era o quarto dos baús enormes,  protegidos do pó e do tempo  por uma capa de tecido que fechava com botões de vários tamanhos, nunca percebi o desenho da chita que forrava esses baús, quando os  botões começaram a não resistir às investidas dos meus dedos a cor já tinha desaparecido. Eu gostava daqueles botões, dos buraquinhos que mostravam a cor dos baús e das linhas que se soltavam, sabia que porque não brincas com bonecas? e o já te disse que os baús te podem cair em cima eram a legenda de mais uma tarde sem sol e sem calor passada naquele quarto de paredes brancas. Bastava um dia sem verão para o quarto com uma janela de fecho ferrugento se transformar num exercício de matemática, já então indecifrável, ou numa roda de conversa com pessoas que vinham da rua, das conversas dos crescidos e das notícias do jornal que eu ouvia ler. Esta miúda não se cala. Olha o que fizeste às paredes, têm de ser caiadas, outra vez. Eu sabia de cor as frases zangadas, mas também percebia o olhar tranquilo das mulheres da casa porque a menina depois de dormir a folga tem de fazer alguma coisa, coitadinha, e a tarde passeava-se tranquila, indiferente ao frio do vento norte e à praia deserta.     

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Parabéns, José!






Parabéns, José.

De como eras bonito e perfeito quando nasceste já tu sabes, já ouviste, vezes sem conta a história do teu nascimento. Sabes o que comi na véspera e de que comia, com os dedos todos, frango de churrasco e  a comida indiana nunca me enjoou.  Estás farto de me ouvir dizer que eras um lindo bebé – tinhas cara de capa da Pais e Filhos e várias vezes me disseram, quando te viam, que eras muito bonito. Perfeitinho. Um sorriso rasgado. Olhos brilhantes. Foi fácil amar-te: eras tranquilo e gostavas muito de passear. Ouvias Satie, embalava-te ao som das Gymnopedie, mas People are Strange também não te deixava indiferente. Olhavas com curiosidade para a chuva e o óculo da máquina de lavar roupa foi, para ti, durante muito tempo, um verdadeiro mistério, a entrada do leitor de cassetes de video serviu de esconderijo a soldadinhos de plástico, batatas fritas e peças de lego. Muito cedo largaste a fralda, não gostavas de ter as mãos sujas, desenhavas golfinhos e as tuas gargalhadas espontâneas eram únicas. Ainda são. Gostas muito de rir e manténs o sentido de humor que fez o teu pai pensar se não serias uma criança precoce, mas tudo isto tu sabes – vês nas fotografias e as tuas avós não se cansam de repetir. A tua infância foi feliz, tranquila, aceitaste sem lágrimas a chegada do teu irmão e entraste na escola sem sobressaltos. Trazias amigos para casa, gostavas de partilhar os teus brinquedos e, mesmo com óculos e o tormento de tapar um olho (partidas da genética: somos ambos estrábicos, mas shiuu!, ninguém sabe) eras capaz de rir, brincar e o mundo à tua volta, além de lugar para novas descobertas e brincadeiras, nunca foi para ti uma ameaça. Olho para ti e percebo que o tempo gosta de ti. Sempre gostou. Nasceu-te uma ou outra borbulha, já tens barba, gostas de andar bem vestido e, de repente, vejo-te a olhar para as raparigas, olha-as com admiração, curiosidade e, não raras vezes, reparo que te olhas com vaidade ao espelho, perfumas-te com cuidado, apuras (acho que até deves ensaiar) os teus gestos e tens um muito composto grupo de admiradoras, não falo do respeito e admiração que os teus colegas têm por ti, porque não gostaria que te tornasses petulante. E tu também não. Estiveste e estás a meu lado. Respeitamo-nos, sabemos o lugar que cada um ocupa no coração um do outro e, não sei, se por magia, ou entendimento, somos cúmplices. Rimos juntos dos disparates que cada um de nós faz, dançamos, às vezes, as mesmas músicas, lemos um ao outro os textos que nos comovem  e troçamos das selfies, das “pitas” no FB,  das falinhas mansas, discutimos política e cultivamos alguns ódios de estimação. Não, não somos os melhores amigos um do outro: tu és meu filho e eu sou tua mãe. Discutimos, com veemência, as nossas ideias políticas, não gosto da tua arrogância e, quando insistes em dizer que tens razão e a defendes sem argumentos, zangamo-nos, tenho de te levantar a voz e colocar-te no “teu” lugar. Tu não gostas, eu sei. Nesse momento, eu digo: “temos pena” e tu trepas de fúria pela parede que estiver mais perto, sabes que viro as costas e penso: a opinião de cada um é apenas uma opinião – vale o que vale. Tu lutas, insistes, persistes, vais em frente.

 Vai, em frente, meu filho, continua o homem de bem que já se desenha no teu carácter. Luta, assim, cheio de força e convicções pelo teu lugar ao sol e continua com esse coração generoso de gargalhada solta e sem preconceitos.

Hoje fazes dezoito anos, estás um homem. És um homem, já não acreditas em máquinas que fazem trabalhos de casa, a vida está intacta à tua espera, tens o teu caminho a sair-te debaixo dos pés. Não sei como, mas percebeste, muito cedo, que a tua vida é obra tua - resultado das tuas escolhas. Não cedas, meu filho, vai, segue o teu caminho… nunca me pertenceste (os filhos não nos pertencem, são-nos emprestados para que tomemos conta deles, durante algum tempo, como alguém disse, não é verdade?). A tua medida do tempo, ainda, é para mim um mistério e a tua serenidade, nem sempre me convence. Olha, José, isso não me incomoda (muito), porque o meu amor por ti não tem mistério nenhum e as gargalhadas que damos juntos continuam a ser a melhor maneira de te dizer que metade do meu coração te pertence. Vai, vai sem medo. Aproveita os teus dezoito anos, sê feliz e a melhor pessoa que conseguires.

Parabéns, José.

 

(Dou por mim a pensar que, se calhar tu não adolesceste o suficiente…. Mas depois  lembro-me das nossas brigas para desligares o computador e as tuas respostas com a voz a ‘crescer’ para mim e fico mais tranquila.
Coisas de Mãe)

 


terça-feira, 12 de maio de 2015

as mãos




 

(fotografia de Isabel Fernandes, maio 2015)


as mãos

de apertar os sapatos, as chaves na mão a abrir a porta, as mãos a apagar a luz, a limpar os vidros, a escrever na folha em branco, as mãos  de enroscar, de abanar, de acariciar, de ajustar o cinto, as mãos sobre a mesa a esticar a toalha, a contar os garfos, a dobrar as pontas do quadrado de papel, as mãos a contar os sonhos, a esfregar os olhos, a secar as lágrimas, a sufocar as gargalhadas, as mãos a dar a mão  às mãos, a puxar as sombras, a afastar as moscas e a escolher o feijão, a contar os cêntimos, as mãos estendidas, as unhas encardidas a cheirar a fome, as mãos miseráveis, a implorar, a desejar  outro dia, as mãos do copo cheio, o ritmo, as mãos em prece, as mãos de velho, as unhas  rasgam as peles dos dedos da mão,  as mãos penteiam,  ouvem,  puxam o prazer, gemem, desfazem, pedem, as mãos encontram, as mãos a apalpar o calor na testa, a amassar o pão, as mãos a dizer adeus, a aplaudir, a esfregarem-se uma na outra, as mãos da bofetada, as mãos em silêncio, as mãos a cheirar a merda, a bordar o lenço, as mãos a justificar, o dedo a apontar, as mãos mais sujas, sempre limpas, as mãos à sombra, ao sol, as mãos a crescer, as mãos a ficarem sós, a seguir o caminho certo, a errar nos cruzamentos, as mãos na estrada, a andar, as mãos que dizem “volto já” e não voltam, desaparecem, as mãos  não regressam, as mãos não param, as mãos sangram, falam, as mãos cheias de palavras a viver, as mãos a morrer, a ficar, a cair, a segurar, as mãos, as mãos, a mão, as mãos na pele, as mãos no rosto, o cheiro das mãos, as feridas, as marcas do relógio no pulso encostado à mão, as mãos perguntam, as mãos  desenham no vidro um recorte, as mãos, a mão, as mãos sem paz, as mãos, as mãos em  ti, as mãos fechadas, as mãos sem fim



 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Homens temporariamente sós - uma canção de Rui Reininho (conclusão)





Homens temporariamente sós . Uma canção de Rui Reininho. (conclusão)

Toma, é para ti,

não sei que resposta será esta, não sei que texto irei escrever, nem sei se  uma carta, ou alguma coisa que valha a pena a ler. Não sei! Escrevo e, pronto. Tu gostas de música, sabes cantar e sabes muitas canções de cor, eu fico-me pelos refrões, pelo dubibidu, sempre, muito desafinado. Com naturezas muito diferentes, um dia gostámos da mesma canção. Até aqui, tudo parece em ordem, em paz. “Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz”, diz o Álvaro de Campos. “Se”….

Andámos trocados, desencontrámo-nos e, talvez, não fosse aquele o luar certo para  falarmos, pela primeira vez. Não sabemos as razões e os dias são todos diferentes, fechamo-nos nos corações, olhamos todos os dias para as nossas “nódoas negras sentimentais” e deixamos o sentimento à porta como um guarda-chuva molhado. Em dias de melhor humor, com um balão, ou dois, de gin a roçar-nos a bainha da verdade, acreditamos que estamos no céu, misturamos a alegria com uma solidão mais pequena e, incrédulos e imperfeitos, que somos, acreditamos na magia do momento, no arrepio da pele, deixamos, sem medo, o domingo entrar sem pressas ou pudores. Acreditamos. Ou melhor, acreditamos… mais uma vez. Por momentos, a felicidade é uma alegria de um beijo roubado, a cumplicidade de um refrão. Sentimos. E só queremos sair, porque temos medo que “aquilo” seja a felicidade. Já lemos esse livro e a adaptação para o cinema foi uma réplica medíocre. Não arriscamos, não entramos na sala escura, temos medo, receamos um the end igual a todos os outros, ou esperamos que a sessão seguinte seja melhor e permitimos que nada mais  aconteça.  

É a natureza de cada um de nós. Roubamos as justificações de diálogos anteriores: “Não quero, tenho o traço do tempo nos ponteiros  do meu relógio, prezo a minha liberdade, nem prometi falar de amor, ‘tudo anotado numa memória que queremos esquecer’. Perder? Não interessa! Há, sempre, outros caminhos, outros beijos, outros sonhos. Também, não sei o que é isto." Eu disse-te que ter esta mania da escrita me levava atrás das palavras, só palavras, alinho parágrafos e, às vezes, é quanto basta para transformar a realidade. Do não, da rejeição, da insegurança, invento histórias e deixo que a garganta seque, acabo protagonista da minha própria ficção, percebo tudo isto quando olho para o espelho: é como nos versos que ouvimos uma e outra vez, nos filmes, no dar que pensamos que é o que o outro quer receber, ‘estás enganada, miúda, não ouves o ruído à tua volta? A noite que não é só tua?’ – “essa história não é tua”. Não, esta história é A minha. Nem culpas, nem desculpas…. apenas desencontro, um filme mal traduzido. Nem lamento, enfim, um bocadinho. Talvez, percorrer mais uma estrada, uma garrafa de vinho cheia de razões, mais algumas palavras, justificações, porque é isso que nos torna pessoas: pontificar, justificar, explicar….O que talvez pudesse ter sido – não foi! Salvou-se o sorriso, o acreditar “as mãos bonitas, inteligente, o teu sorriso, o teu cheiro.” A pessoa que se tinha perdido entre umas noites mal dormidas e uma vida a reclamar a sua fragilidade. Ficou, apenas, isso? Terá sido apenas isso que ficou a boiar no fundo do copo? Nunca temos respostas para essas perguntas. Nunca sabemos quem somos nos olhos do outro. E é esse o mistério…que nos faz correr!

Eu disse que não sabia que texto seria este, no início, nem sabia que te estava a escrever uma carta.

Escrevi e pronto! Foi um impulso! Uma necessidade, de fechar uma porta? De arrumar uma gaveta? Uma pausa,  mostrar que também tenho uma memória anotada que (não) quero esquecer. Foi tudo! E não foi nada, porque, nunca, nada é o que parece! Fica aqui, a meu lado, a tua alegria, o teu sorriso, o toque das tuas mãos.

(Lamento, mas não consigo perceber o ruído, coisas minhas, valem unhas roídas, alguma raiva e a minha lucidez. – “- Não nasceste para pensar, rapariga!”  Pois, não.)

Adeus!



quarta-feira, 8 de abril de 2015

Amêndoas, sol de abril e sombrinhas de chocolate





Volto mais uma vez à casa…

Amêndoas, sol de abril e sombrinhas de chocolate.

Estou no passeio do poial da porta de madeira, as pedras estão mais brilhantes, mais gastas: é outra rua e a casa já não existe. Páro à frente da porta que agora é de alumínio, estico o pescoço, quero espreitar pelo postigo e ver as sombras desenhadas nos mosaicos de xadrez. Em vão. As portas de alumínio não têm postigos. Sobram as palavras, a memória e a luz. Ficou o sol de abril e o rio ao fundo, a brilhar. Vou do lado de dentro do passeio, agarro com força a mão do meu avô. Hoje vamos comprar amêndoas, um cartucho grande de amêndoas de muitas cores. O papel pardo guardará as cores de açúcar e o miolo da amêndoa. Não podes comer sozinha o cartucho inteiro. Prometo que comerei, apenas, os dedos da mão direita. Porquê os dedos da mão direita? Porque são mais fáceis de contar. Acertamos o número de amêndoas que cada um comerá e seguimos para o rio. Gosto daquelas tarde mornas, da minha mão a perder-se na mão enrugada do meu avô. Afastamo-nos da casa. Vou aos saltinhos e sei que não caio, porque a mão está bem fechada. Por nós passa uma carroça, a mula vai sujando, sem pudor, o empedrado e eu coro, ponho a mão na boca, abafo um sorriso, somos cúmplices, as mulas deixam as ruas cheias de merda, arregalo os olhos para a cara do meu avô. Rimos os dois. Na casa não se podia dizer palavrões, enchia-me de orgulho, aquele avô malcriado, que me proibia de dizer merda, puta e outros nomes feios, mas dizia-os, na minha frente. Na rua. E insistia: Nunca digas a palavra comunista, nem a palavra fascista em voz alta, nem em casa! Mais tarde, explicaram-me a relação entre estes palavrões e um senhor cinzento que passou, vários dias, encostado às paredes do prédio da frente. Chegámos ao rio, os canteiros do jardim eram da cor dos gladíolos e antes de irmos à procura das amêndoas o meu avô ainda me pegou  ao colo para eu beber água no repuxo – um arco transparente que me estava proibido. Sabe-se lá quem bebe aquela água? Qualquer pessoa pode pôr a boca na bica. Com o meu avó, a merda e o chafariz pertenciam-me. Estávamos felizes: Podemos comprar uma sombrinha de chocolate, fazer uns furinhos, pode ser que te saia outra sombrinha. A alegria  de uma promessa a começar sem o indicador atirado para a frente do: Se te portares bem! Voltámos pela mesma rua, mas mudámos de passeio - O sol pode derreter o chocolate. E eu sabia que, quando chegássemos a casa, despejaríamos o cartucho das amêndoas, às cores, numa taça de loiça branca que estava guardada no armário da sala de jantar, uma taça um pouco maior das que no mês de outubro se enchiam com marmelada e tapavam com papel vegetal. Os passeios com o meu avô ainda existem. As taças brancas de marmelada e amêndoas continuam guardadas no mesmo armário de portas de correr e rede de alumínio. Desapareceram a casa, a mão a agarrar o mundo e o postigo. Mas eu volto lá, sempre, com a boca cheia de amêndoas, nos dias mais quentes de Abril.




terça-feira, 17 de março de 2015

Não é fácil o amor.





Não é fácil o amor.

Agarrou-se à esperança de mais um sorriso, uma canção e um prato de tremoços comido a dois, a quatro dedos – a casca a saltar, o fruto trincado empurrado com um golo de cerveja – não sentiriam a chuva, viam a humidade em  gotas, nos vidros, o céu a carregar-se, a cair-lhes em cima. Passavam de um lado para o outro, encolhidas, as pessoas, as crianças, os rapazes carregados de mochilas. Ela trincava o miolo amarelado, a ponta dos dedos a ficar enrugada, por vezes, esquecia-se e deixava-se ficar num olhar mais triste, um guarda-chuva mais colorido, os dedos arrefeciam, catavam a pele e a casca mais solta. Distraída, esquecia-se. A imperial aquecia. Conseguia desenhar os olhos, uma boca, no copo transpirado. Olhava para o copo dele. Mais vazio, já sem espuma. Não conseguia evitar acompanhar-lhe os gestos, sentia o frio que entrava, quando a porta da rua se abria. A pele e o sentir. Arrepiados. Talvez, ainda, uma estrada sem chuva, sem lama, talvez, restasse o tempo de um abraço sem cansaço, nem arrependimentos, talvez… Pensava na canção. Pensava na gargalhada e no sol, insistia na esperança - e, se não se tivessem acabado as palavras?!  Por fim,  engoliu a mágoa, um soluço, o fim, a esperança, no mesmo golo de cerveja fresca. Os dedos finos a segurarem o copo. Como garras fortes. Tudo um tremendo equívoco, os parágrafos trocados, o discurso reles, as imagens obscenas, a gargalhada, a boçalidade, os dias à espera de uma resposta, um agrado. A espera. Ela à espera. Ele a falar, a falar, a contar anedotas, a não se importar, a repetir a mesma conversa, a insistir em histórias de conquistas, de divertimento, as imagens, as mesmas imagens sem legendas. Feias. Sujas. Encostou, com cuidado, o copo vazio ao pratinho das cascas, olhou para ele, encolheu os ombros, levantou-se, contou  com o indicador umas moedas. No tampo da mesa, o desenho irregular do fundo molhado dos copos. Adeus. Sem caminho. Sim. Tinha a certeza. Deixou-o à procura do empregado, para lhe pedir mais uma. Mais uma. Como ela. Não deixara mágoa, apenas a decepção. A desilusão, perceber outra pessoa: os sentimentos não interessavam. O homem que não conhecia deixava aquela tristeza fininha, a rasgar a pele, a crescer dor no seu corpo. Fininha como o frio das gotas de chuva que a surpreenderam, naquele mês de março. Quase primavera. Desculpa, foi sem querer.

Não tenho nada para desculpar, para perdoar, como se desculpa uma pessoa de ser quem é?  

segunda-feira, 9 de março de 2015

Um bife, o Tejo e o Dia da Mulher.





Um bife e o Tejo no Dia da Mulher.

Dizem que perdi massa gorda, que tenho as defesas em baixo, que estou muito magrinha, que se conseguem contar as costelas, os ossos do ombro, as pernas estão muito fininhas, as rugas do rosto  muito acentuadas e que se não me fortalecer, em breve, uns bichinhos irão fazer das minhas forças um belo repasto. Não costumo discutir a autoridade de quem sabe mais de matemática do que eu, portanto, se me dizem que tenho de comer dois bifes por semana, comerei dois bifes, por semana – coisas de médicos, manias de quem não cresceu com a imagem da Twiggy e gosta muito de donuts. Pois, muito bem, comerei um bife, talvez, dois. Os médicos que me desculpem, mas se na garganta não passar mais do que duas garfadas de carne mal passada, não insistirei. Hoje, resolvi, embrulhada numa roupa mais domingueira, aproveitando o dia de sol e a proximidade do Tejo, ir comer um bife à beira Tejo. Convidei várias pessoas: não, hoje, é domingo, almoça-se com a família, é dia da mulher temos de estar com o marido e os filhos, convidei a sogra para almoçar. OH! menina um bife, hoje, à beira Tejo, com tanta obrigação que tenho ao fim de semana?! Vai ao talho do supermercado, frita um bife, compra umas batatinhas de pacote, liga a RFM e, pronto, comerás o teu bife, o teu primeiro bife da semana, da tua nova dieta. Neste momento dos convites ao telefone, enfastiada com as sogras e as obrigações de quem não arranja desculpa melhor, parti para o rio. Uma tarde de inverno quente, um Tejo, barcos à vela, a promessa de um futuro, assim, transparente, brilhante e luminoso. Sentei-me na esplanada que mais gosto, o melhor ângulo de água à minha frente e aguardei a minha vez. Esperei o bife que me tiraria da miséria que é o meu corpo mirrado e me devolveria uma saúde de ferro, sem ferrugem. Veio o bife, veio o copo de vinho, vieram as conversas: IRS, Passos Coelho, na minha próxima vez deixamos os putos com a tua mãe. Então a violência doméstica está a aumentar? É como os casais homossexuais: dantes ninguém falava no assunto e agora, até, aparece nas telenovelas, é um sinal dos tempos desta sociedade sem valores. Ai! Menina, experimentei um gelinho para as unhas que dura uma eternidade. Pedrinho, ponha o guardanapo no colo para não se sujar. O  bife encolhia, a minha camisa mais certinha (afinal, eu ia comer um bife, numa esplanada!) parecia perder a graça e a garganta fechava-se, o copo de Casa de Santar empurrava, a custo, a bola da última dentada de bife, entretanto já tirara uma par de fotografias a um casal alemão, a família de filhos barulhentos olhara-me com olhos de ver, para o decote e o sol começava roçar-se nas minhas   costas. O calor aumentava e a família numerosa não me deixava sossegar. Pensei que tinha escolhido mal a esplanada, que deveria estar a beber Coca-Cola e que comer um bife se estava a tornar uma experiência pouco agradável: olha, a gaja está sozinha, ocupa uma mesa de quatro lugares e tem um copo de tinto na frente, está comemorar o dia das gajas. Sábias palavras proferidas por um grupo de três cavalheiros, com o saco do Expresso debaixo do braço e polos Gant coloridos. Uma gaja a ocupar uma mesa de quatro e nós aqui em pé. A bola do bife deslizou-me pelas goelas. A Casa de Santar e o calor da camisa de seda preta incharam-me o mau feitio e, num gesto educado com um português muito bem articulado, interpelei os cavalheiros : Há aqui três lugares vagos, os senhores estão de pé, está muito calor, podem sentar-se aqui, por favor, estejam à vontade. Olharam-me com desconfiança, não deixando de fitar o botão da minha camisa que  se soltara, encolheram os ombros e com a arrogância e sobranceria responderam: deixa estar - registei o tratamento por tu – a nossa mesa está quase pronta. Viraram-me as costas, soltaram uma gargalhada e - não tenho a certeza - mas ia jurar, que ainda ouvi um olha a gaja, deve ser das tais que anda à procura de homem, estas casas não deveriam deixar entrar toda a gente. Não reagi - já tinha perdido o gosto, o bife estava frio e o sol aquecia-me demasiado as costas. Pedi uma segunda taça de vinho e mergulhei no Tejo. Por momentos, pensei que estaria no lugar errado e que o certo era ter ficado em casa a ouvir a RFM, fritar o bifinho na frigideira, cozer melhor os botões das camisas… breves momentos. Aliás. A minha estreia a comer bifes em sítios públicos não foi das mais felizes, nem muito barata e concordo em absoluto com as palavras do cavalheiro de polo Gant azul-turquesa: estas casas não deveriam deixar entrar toda a gente. Mas talvez seja por este exercício gratuito de humilhação do macho colorido perante a fémea que tem o arrojo de ir sozinha comer um bife, que o dia da mulher não pode deixar de ser celebrado.

Quando bebi o café, uma fila de pequenos barcos à vela, deslizava ao sabor da brisa quente e o Tejo, prateado e orgulhoso, sem que ninguém percebesse, piscou-me o olho. Saí, agradeci à empregada delicada que me tinha servido e comecei a pensar na esplanada, assim que o saldo do meu cartão o permitir, onde, comerei, sozinha, o próximo bife mal passado.  

terça-feira, 3 de março de 2015

A música.




A música

Vou muito para trás, agarro a ponta de uma nuvem que agora é memória e vou como se não tivesse rumo, e sei tão bem, onde moras, nuvem perdida. Vejo o perfil, os telhados recortados contra o céu. Eu já não existo debaixo desse céu, da janela vê-se, agora, um sol rubro, vivo, diferente, outro sol. A janela alta com a moldura de madeira que tocava aquele céu escuta, agarra a música. Novos compassos. Outros solistas. Transparentes. Consigo vê-los. Oiço-te. Percebo pela sombra que somos outros. Que somos de outros. Percebo que não sou eu. Já não existo. Parti. Partimos. E, num sopro de uma nota só, deixámos de existir.

Sem mágoa, só a música me leva até à porta da tua casa que não existe. Já não és tu. Não somos, nem diferentes.

Sem mágoa, apenas, a tua mão a agarrar a mesma nuvem que eu.

Sem mágoa.

Cala-te, por favor.





Cala-te, por favor.

Escrevo. Respiro e oiço-te, voz. Acompanhas-me os passos, os gestos, pertences ao coro dos meus dias, vais tecendo os teus comentários e não te coíbes de me criticar, dizes que estou no mau caminho, que ando a dançar demais, (também bebo muito?), que combino mal os vestidos, a pintura não condiz com a cor das meias, descuro a educação dos miúdos e, muitas vezes, até, me acusas de me colocar em primeiro lugar, repetes à exaustão que grito como o diabo. Dizes tu! Esta voz que me acompanha não é a voz de um anjo da guarda, tenho de  dizer-te, aliás, que, ontem tropecei nos pés, ou numa pedra mais levantada, espalhei as fatias de fiambre e os bifes pelo lajedo do pátio e o meu anjo da guarda - sempre ele - impediu-me de desfazer uma dúzia de ovos, amolgar um par de óculos e o nariz. E, lá vieste tu - voz embirrante - dizer que ando com a cabeça nas nuvens, que não sei onde ponho os pés e o blá, blá, blá do costume. Desculpa, estou a ficar sem paciência. Ouvi dizer que há (quase) um programa de televisão onde também aparece uma voz, assim. Irritante. Como tu. Se insistes em dizer que durmo pouco e me alimento mal, mando-te, ‘sem dó nem piedade’, fazer companhia à Dª Teresa Guilherme. Tens de perceber que não ajudas nada e estás a tornar-te uma moralista irritante e beata. Percebe, lá de uma vez por todas que tenho uma vida para viver, um caminho de pedras para saltar, tropeçar, ou dar um pontapé. E lá estás tu… insistes na ideia absurda de procurar alguém que me faça companhia, que me ajude a arrumar os papéis do IRS, colocar os discos por géneros musicais, que me leve ao cinema, à praia, essas coisas. Chega! Cala-te, tenta entender, estou bem assim e tu sabes muito bem que as minhas lágrimas não são solidão, camas frias, ombro para descansar a cabeça… Cala-te voz. Deixa-me em paz. As minhas lágrimas têm outra cor, outro gosto, outro nome. E, se voltares a dizer-me que choro muito, vais de um pulo só fazer companhia a alguém numa qualquer estação de televisão. Não tenho, garanto-te, muitas dúvidas quanto à escolha a fazer. Ah! Agora, falas do meu roupeiro, cheio de vestidos, camisas, sapatos, da imoralidade que é a quantidade de lenços e écharpes que coleciono. Talvez não tenha tempo para as usar todas, talvez, mas a tua constante insistência em chamar-me perdulária não é muito encorajadora. Desde que me acompanhas que não oiço um elogio, uma piada de muitas gargalhadas, um afago. Voz. Vai-te embora. Procura outra cabeça, outra alma, outra pessoa. Alguém que ainda acredite no ‘poder da voz interior’, na vida além da morte, no ‘poder transformador do amor’ - essas merdas todas que me sussurras ao ouvido, quando os meus dias são mais longos, as noites sem sono e a pensar em cigarros.

Sai da minha cabeça, voz. Sai de uma vez. Desaparece. Não acredito nas tuas boas intenções. Procura à tua volta. Procura bem, não faltará quem queira seguir as tuas palavras como uma bússola. Sem pisar o risco. Eu já não te oiço: ensurdeceste a minha razão.

Adeus

 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Vamos falar de Amor





Vamos falar de Amor.

O jantar está ao lume, cozo os legumes que serão uma sopa que tu não provarás. Arrumei os congelados como tu me ensinaste: a carne e o peixe em gavetas separadas, os legumes por ordem de validade e cores, as caixinhas e as respetivas tampas com os restos que trouxemos do almoço de domingo em casa da tua mãe, os cubos de gelo, o pão fatiado. Tudo como tu gostas. Tanto que tenho aprendido contigo, meu amor! O guisado está quase pronto, temperei-o com um cubinho Knorr. Não notarás o gosto e dirás cozinhas quase tão bem como a minha mãe, o tempero está parecido, a tua mão para o sal melhora de dia para dia, devíamos convidá-la mais vezes, sempre aprenderias alguma coisa. Começo a sonhar, férias à beira-mar, sexo numa cabana, o fato de saia e casaco igual ao da Dª Teresinha do andar de cima, o emprego de secretária, os exames do décimo segundo ano que não fiz, porque, entretanto, nasceu o Vasquinho. Provo  a magia do cubinho dourado com a colher de pau a escorrer o molho grosso na palma da minha mão, continuo a sonhar, mexo devagar para que o jantar fique apurado cheira bem, volto para os sonhos,  o óbvio, os miúdos a aprender línguas, o funeral da tua mãe, abafo uma gargalhada e sinto-me corar, a sair pela janela da cozinha, nas avenidas de uma grande cidade, ou numa sala de cinema, a ver uma história com aquela atriz de cabelo loiro, que vimos num filme fingir um orgasmo e tu chamaste-lhe  porca. Nunca mais me deixaste ir ao cinema, nem ao clube de video e contas essa história, quando bebes um copinho a mais. Saio da avenida, abandono o cinema, volto para o fogão, mexo, mais uma vez, o molho e jogo, para dentro do tacho, as batatas partidas aos cubos, todos do mesmo tamanho, como tu me ensinaste, meu amor. Temos de ser impecáveis, até, a cortar as batatas. Tens razão. Vou agora para mais longe, arrumo os peúgos, os teus e os dos miúdos, imagino-te a cantar as canções dos Bee Gees ao ouvido, recordo a tua mão a tirar-me as cuecas no alpendre da vizinha Rosa, a vergonha na rua, a barriga a crescer e, de repente, sai-me uma gargalhada, vejo o caos nas caixas do supermercado, o responsável de olhar louco sem saber o que fazer – um supermercado às escuras, os cartões multibanco encravados, as pessoas a correrem como loucas para as prateleiras dos chocolates, continuo a rir, gargalhadas soltas, à toa, pela cozinha.  Gritas de dentro do sofá florido, forrado a plástico: OH! Mulher, endoideceste? Estás maluca, agora ris sozinha? És parva, ou quê? Chama os putos para a mesa, tenho fome. Onde está a Verinha? Vai chamá-la, anda, tenho fome, porra! Sim, meu amor, está quase tudo pronto. A Verinha hoje chega mais tarde, está no turno da noite. Fico com o coração mais pequeno que o bocadinho de tomate que dança ao som da colher de pau, a minha Verinha, tinha tanta felicidade para lhe ensinar…Tenho de me despachar, pôr a mesa, passar as camisas do meu amor, nem me sento , hoje atrasei-me com os sonhos e as parvoíces do costume que me passam pela cabeça. OH! Vasquinho, vem para a mesa que o jantar está pronto, acabas o jogo depois do jantar. A casa está limpa, hoje é terça-feira, aspirei e lavei a roupa e os vidros, no domingo. Amanhã, entro no turno da tarde, vou deixar-te ir para a cama primeiro que eu, adormecerás de seguida e não te apetecerá foder-me - dois dias seguidos costumam deixar-te exausto. Poderei acender o candeeiro da mesa de cabeceira, tu não acordarás, meu amor e eu posso continuar a ler o livro que trouxe do supermercado, tenho de o colocar no mesmo sítio antes que a Josefa arrume as promoções da semana, insistiram que eu trouxesse as sombras do não sei o quê, eu prefiro a prateleira dos autores portugueses, ninguém os lê, ela não perceberá que trouxe debaixo da bata o livro da Dª Lídia Jorge, gosto dela, é algarvia, de Loulé, acho eu, como o meu avô da figueira grande. Já se sentaram à mesa, cheira bem o comer, esta receita é da televisão? Não respondo, faço de conto que não ouvi. Volto para a janela, agora não vou voar para lado nenhum, posso deixar cair um peúgo dos teus preferidos, meu amor, umas cuecas do miúdo, uma mola, sei lá, qualquer coisa… Os vizinhos da frente também estão a jantar e têm a televisão da cozinha ligada no mesmo canal que nós, estão todos a ver o mesmo e a mim só me apetece saltar, fugir pela janela. Não, meu amor, não farei isso, nem por ti, nem pelos nossos meninos, estarei a teu lado para o que vida nos quiser dar, meu amor.

Amo-te, Jorge e tanto, tanto. Para onde queres que eu vá, se tu nunca sabes onde deixas as chaves do carro? Jorge, meu amor.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

( Mas isto sou eu a escrever num dia como outro qualquer.)




(Mas isto sou eu a escrever num dia como outro qualquer.)

Estavas a pensar em algo mais sério?

Trato-te por tu, sem manias, nem cumplicidade de almofada. Não te falarei de amor, nem direi que te amo, porque sobre o amor não sei falar. Acreditei que existia, pensei que era uma construção que se retocava todos os dias, uma comunhão de frases acabadas ao mesmo tempo, uma casa cheia de flores, uma gentileza, um piscar de olhos. Percebo, agora, que o amor é uma invenção literária, ou uma bênção. Falo do amor de um casal, de casa, de filhos e mesa com toalha  branca, a sopa quente e a horas. De uma vida com a mesma alegria no olhar. Como gosto de ler e de literatura não fui abençoada com esse amor. Seriam, talvez, incompatíveis. Não sei, não tenho respostas e a paciência para as perguntas vai-me faltando. Vejo o amor dos meus pais. Assisti ao amor dos meus avós, vivo-o no cinema, nos romances e quanto ao Amor - com maiúscula - assunto encerrado. Não falo de poetas – falei de Literatura que é o mesmo. Percebo o amor incondicional pelos filhos. Conheço o cheiro e o gosto. E não questiono o sentimento que me faz ter amigos há cinquenta, trinta, vinte, dez anos. Amigos que atravessam o Oceano para me abraçar, dormem ao meu lado na mesma cama de hospital, riem, choram de mão dada comigo, ou trocam um par de horas de conforto por um telefonema. Gosto das pessoas que são, não imagino a minha vida sem elas, apesar de já ter algumas na memória . No que sou, oiço e cheiro. Sou o que cada uma delas me deixou tirar-lhes.

  Está riscado, por aí,  nas paredes, desenhado nas nuvens, P. está apaixonado por C. ; L . ama T. Ou a frase mais desesperada ( é de desespero que se trata, certo?) não sei viver sem ti. Deduzo, portanto, que esta ”coisa” do Amor, a tal invenção da Literatura, a bênção, deve ser uma obsessão, um sinal dos tempos, uma necessidade dos homens e das mulheres. Uma demanda. Uma parede contra a solidão de cada um de nós. Não sei. A minha solidão está bem, muito obrigada, e faz par com a minha liberdade. Se dançarem a noite toda, entre uma piscadela de olho e uma taça de vinho, então, estão em paz.

Estavas a pensar em algo mais sério?

 Não me digas que acreditas em tudo o que está escrito na última garrafa de vinho? No fundo de alguns dos meus copos pode ler-se Ikea.

Nos teus lê-se o quê?