Conhecem-se
de noite. Tocam-se, ainda, não alvorecia. Sabem que o dia virá. Silêncio no
tempo a passar entre um rasto de sono e de sonho. Sem palavras. Um só no outro
corpo. As solidões esquecem-se e aquecem. Sem pausas. Com sede. A intimidade a
crescer. Por dentro. Na rua ficou o mundo. Miséria, pobreza, infelicidade, doença. As estrelas apagam-se. Quase. Num minuto
que passa muito depressa. Não tardarão as vozes, os gritos, o insulto. Um só no
outro corpo, enquanto as estrelas brilharem. Ficarão assim com o cheiro, com a
pele, com o beijo. O último. Percebem que a sombra entrou e desenhou mais um dia. À hora
certa. À hora que o relógio nunca atrasa. Como a água que corre, quando se abre
uma torneira. Irreversível. Impiedosa. Pontual. Partir. Ficar. Não. Porque esta
noite só a felicidade se pôde adiar.
Há sempre
uns avós que vão com os netos às consultas, uns senhores que ainda têm uns
trocos para a carcacinha com manteiga e o macinho de cigarros. Quando não estão
nos consultórios com os netos, ou à porta da escola, estão a jogar damas no
jardim do bairro onde moram, os que sobraram - os bairros, os jardins, os
velhos, as damas e as reformas, claro! No consultório onde passei a tarde a
lacrimejar estavam dois pares de avós com dois pares de netos. Os avós
compostos no seu fato completo de ir ao senhor doutor e com os peúgos de lã,
estreados no dia de ano novo, não tiravam os olhos da televisão suspensa que
vendia dinheiro e muito sucesso. Os netos, ainda de farda e a chupar com
jactância, (gosto desta palavra - é mais forte que veemência, não é?) os
pacotes de leite com chocolate, equilibravam a palhinha com as PSPs ruidosas e
pronunciavam uns gorjeios que tive dificuldade em traduzir. Num banco mais comprido,
de napa verde e gasta, um pai-engenheiro-de-fato-completo conversava com a
filha, cada um tinha o seu tablet, e, pelo, ritmo a que os dedos
deslizavam , deveriam estar a discutir a prisão do Sócrates, o comprimento da
saia da jovem ou, apenas, a decidir a hora do regresso do Urban. A
miúda era cheinha de hambugers e pastilhas elásticas,compreensível, portanto, o
desespero de ambos no acerto dos horários. Não, não estariam a falar de
Sócrates. Já não interessa a ninguém e a Edite Estrela já passou de moda. Num
momento o pai fixa os olhos na televisão e com muita atenção segue o
empreendorismo do jovem de sucesso, que investiu todas as suas economias numa
fábrica de realizar sonhos. Entre uma pergunta e outra a menina de vestido
muito justo e o seu companheiro apresentador debitavam uns números de telefone,
a medo, o avô com os tais peúgos de lã
estreados no dia de ano novo e o pai-engenheiro-de-fato-completo marcaram o número
nos seus aparelhos e esconderam-nos, à pressa, no bolso das calças,
abanavam-se com a cara da Bárbara Guimarães e da Cristina Ferreira. Para os
miúdos os pacotes de leite chupados até à última gota já eram, espalhados no chão da sala. Importante, apenas, a PSP e um ou outro macaco que tiravam, com
algum esforço, dos narizes decorados a pontos negros e borbulhas do tamanho de
pipocas. A miúda exibia umas soberbas unhas de gel e eu juraria que os ténis de
salto alto já estariam guardados em qualquer caixa à espera de ser vintage.
Doíam-me as costas, o meu olho chorava todas as dores do universo, a cor do
vestido, dois números abaixo, da menina que insistia em ser fadista agora, que o fado era a canção mais
importante da cultura do mundo inteiro e entre uma lágrima e outra percebi o
sucesso da fábrica de sonhos: todos nós
temos um sonho, sei lá conhecer o Ronaldo, dormir uma noite no Tivoli, ser perseguido
por um bando de paparazzi, saltar de para-quedas, ir de férias para Vilamoura,
sei lá, de momento, não me lembro, assim, de mais nenhum, é verdade, já me
esquecia de um jovem que quis dar de comer aos elefantes, no Jardim Zoológico e,
nós vamos conseguindo, temos tido muito sucesso. Tinha, nesse preciso
momento, os dois olhos a lacrimejar. Mal conseguia ver. A luz incomodava-me. Ardiam-me por dentro e por fora. Então os sonhos dos portugueses resumiam-se
a apertar a mão ao Ronaldo, alimentar elefantes, dormir numa suite do Tivoli?!
Então e construir uma escola sem vidros partidos, um hospital digno, a cura de uma
doença, a Paz no Mundo? (Porra, isso, até aquelas mocinhas que querem ser misses
desejam!!!!) Desesperava. Os kwatts do
aquecedor no máximo fugiam pela janela da sala de espera que estava aberta. E,
isso incomodava-me. O dia escurecia e eu só pensava numa chávena de chá. Não,
não ousava abrir a boca, não fosse o tal senhor satisfazer-me o meu mais
secreto desejo. UI! Quero ir para casa e continuar a pintar os olhos, ver o
cair da noite no rio…. a enfermeira percebeu o meu sofrimento:Tenha paciência é uma urgência, vai ter de
esperar mais um bocadinho. Eu esperava. Era uma urgência, tinha de esperar. Olhava para a televisão, já tinha ido à
casa de banho e alinhava estes disparates no meu caderninho cor-de-rosa. Perdi
de vista o pai-engenheiro com a filha feia e os avós e os netos já tinham ido
fazer os trabalhos de casa. Restava eu, a árvore de natal que piscava umas
irritantes luzes verdes, um monte de revistas velhas e o programa da tarde que
continuava a dar dinheiro e vendia cebolas para emagrecer. Anoiteceu. As minhas
costas eram uma massa de lágrimas que eu não conseguia controlar. Não conseguia
ler. Afastei-me um pouco da televisão, procurei um ângulo menos doloroso e aprendi
um novo conceito de cozinha de fusão: sushi
e comida alentejana. Por exemplo, farinheira com sashimi suzuki, haru-maki com
grelos salteados e uma tempura ika com
yasai cozidos com arroz especial japonês. A dificuldade está na cozedura e na qualidade dos ingredientes, os
cogumelos, por exemplo, nãoprestam,
os cogumelos portugueses não prestam. Repetia o senhor da cozinha de fusão japonesa.Fiquei esclarecida–sou uma incompetente
cozinheira de fusão. E, no momento em que, Povo que Lavas no Rio se ouviu, na sala
que, entretanto, ficou vazia, entrei no consultório do médico… Duas seringas,
canais desentupidos, trinta e dois euros, uma tarde muito bem passada, dezanove
euros de gotas, uma chávena de chá de hortelã, ao lado da farmácia, e nem uma única
montra lambida. Nada. Cheguei a casa eram nove horas da noite, os miúdos estavam
a ler e já tinham jantado.
Eu fiquei,
por aqui. A televisão muda e cega, a rádio sintonizada na M80, não me perguntem
porquê...
Já não
consigo responder a perguntas difíceis.
Amanhã,
já conseguirei pôr o eye-liner, o rimmel e tudo a que tiver direito.
Ao telemóvel entre o Cais do Sodré e
o Marquês de Pombal.
O rapaz da
tatuagem.
Os rapazes, quando são rapazes são todos
iguais, bem, iguais, iguaizinhos, não serão, mas até ao momento em que mudam a primeira
fralda, choram a primeira alegria da vitória de um filho, ou soluçam, estiolados,
a morte da mãe, são sempre rapazes iguais, ainda que iguaizinhos, iguazinhos não possam
ser, porque há uma “coisa”, descoberta há pouco tempo, chamada genética, com
muitos cromossomas herdados do pai e da mãe, que os distingue na cor do cabelo,
tamanho das mãos, lisura da pele, o tamanho do dito. Acrescente-se, além, da
rua onde crescem, a escola onde aprendem a ler, a preferência ou a repulsa pelo
Nestum, o uso da Mustela ou do sabão azul e branco. Os rapazes - louvemos algumas
excepções – como diria a minha tia Rosinha que morreu solteira, mas que conheceu
muito bem o género masculino, “os rapazes, quer dizer, os homens é tudo farinha
do mesmo saco”. Quando era miúda e ouvia a voz sábia desta minha tia muito
vaidosa, sempre na rua e de livro na mão, achava que a ciência acabava ali. Com
esta minha tia aprendi quase tudo o que havia a aprender sobre o sexo
masculino, em teoria. Como é óbvio. À medida que fui crescendo, não só fui
constatando que ela era uma mulher sapientíssima sobre o género humano, em
geral, e, sobre rapazes, em particular. Na época, devorava com ela tudo o que aparecia
da Corin Tellado e do Max du Veuzit, o sonoro também ajudava e os admiradores
que lhe elogiavam o baton da Thaber também devem ter sido grandes inspiradores.
Falo de rapazes do “mesmo saco de farinha” e desta minha tia que não saía à
rua sem pintar os lábios e pentear com mil cuidados o cabelo que usava muito curto, porque, apesar de durante algum
tempo, ter acreditado que “os homens mudaram” e que “as mulheres se emanciparam”,
tenho de concordar que, apesar de se mudarem os tempos e as vontades (terão
mudado? até pareço a minha avó a falar) mudou, sobretudo a variedade da cor dos
batons e a possibilidade de os rapazes, os tais, “da farinha do mesmo saco”, poderem,
se assim o entenderem, pintar os lábios, as unhas, as costas, as costelas,
furar as orelhas, alargar o furo das orelhas, depilar o peito e outras zonas
mais sensíveis, não porque a moda seja ditadora, mas porque a imagem que gostam
de ver refletida no espelho, deve ser muito idêntica à da minha maravilhosa
tia. Perfeita… À medida de cada um. Pois, claro - uma figura esbelta, cintura
fina, pele agradável ao tacto, colorida sem o incómodo do pó de arroz que
obrigava aplicações frequentes, o cabelo com um bom corte, a calça
a condizer com a camisa, ou com a saia, o sapato engraxado, se for o caso, ou
de tecido, de marca, muito caros e apetecíveis, à venda, em qualquer site online.
Nesta comparação a minha tia está em desvantagem, porque morreu muito antes da
La Redoute, do ebay e do Facebook. Dizem os entendidos que a estes rapazes que
continuam a ser “farinha do mesmo saco” se dá a classificação de metrossexuais,
o epíteto não deixa de ter a sua graça, mas ainda não consegui descodificá-lo,
no entanto, consta que uma nova tendência dita agora o modelo lenhador de
camisa aos quadrados e machado na mão, não sei que nome se lhes dá e, de
momento, parece-me irrelevante. De volta ao espelho, que é sempre onde tudo
começa, tive há dias a sorte de conhecer um jovem rapaz, no sentido bíblico do
termo, passo a falta de originalidade e a heresia da expressão, da tal “farinha
do mesmo saco” dos outros todos, que entremeando elogios à doçura da minha boca
e à elegância do meu pescoço me fez lembrar a minha Tia Rosinha, sempre que num
gesto mais ousado me exibia as cores da bela
tatuagem-carregada-de-energia-positiva e se esforçava por aplicar, num frémito
de desejo, ensinamentos, atrás de ensinamentos estudados nesse Kamasutra do século XXI, chamado As
Cinquenta Sombras de Grey. Não fiquei convencida – a tatuagem perdeu a cor no
primeiro arroto, depois da cerveja da ressaca e resumir o encontro entre dois
corpos a uma série de exercícios, quiçá, copiados de uma qualquer lição da Jane
Fonda!? Não, me parece. No entanto, o que me faz pensar cada vez mais nesta
minha tia de lábios cor de carmim é a falta de originalidade na sedução. Na composição da personagem. Nas
primeiras palavras que se trocam, nas promessas de ver a lua cheia, ou
na constante utilização do mais belo sorriso do balcão e os mais belos olhos
que aqui estão… Minha querida Tia, ainda bem que lemos todos aqueles
livros, mas deixa-me discordar: as raparigas também não pertencem a “sacos de
farinha” assim tão diferentes. A vida está mal para todos!!! Um dia destes
apresento-te umas quantas, está prometido! A este propósito e, porque eras uma senhora
com muito mundo acrescentarias, como Vieira que tanto apreciavas, “tudo isto é
matéria para muita doutrina”, terias razão. Só um pequeno pormenor me confunde -
o gosto pelas tatuagens, o culto religioso, sim religioso, do corpo, estará
ligada à leitura dos clássicos, ao bairro onde se mora, ou será apenas uma
maneira de estar na vida?
Diferentes tons de cinzento, viagens a Las
Vegas, muito sexo ensaiado no ginásio e um corpo que se exibe em todos os
espelhos em que se tropeça serão as fórmulas para uma nova ideia de felicidade?
Então, Tia Rosinha, que me dizes? Tens alguma
ideia sobre o assunto?
Eu estou sem cor…. (Para descanso e tranquilidade dos meus amigos defensores da moral e dos bons costumes este texto é só isso - mais um texto, uma brincadeira, ficção e, pronto!)