Dia de chuva ou como um
dia escuro pode ser um dia bom.
Entro na manhã ainda a querer ficar com a cabeça tapada e o corpo
enrolado no calor da cama. O sono foi muito leve e escasso. Doeu-me a cabeça e
a existência. A alma também não ajudou. Desligo o despertador e acompanho a luz
que entra transparente. Pálida. Não me apetece o dia, as salas frias,
degradadas, os miúdos barulhentos a conversa de sempre, as metas, as metáforas,
as visitas de estudo e os encarregados de educação. Deixo-me levar. Encolhida e
cansada. Adormeço. Um sono profundo. Em duas horas recupero a insónia. As dores
desaparecem. Respiro fundo. Penso em ti.
Na canção, no beijo. Estou atrasada. Pego no telefone e consigo adiar, quarenta e cinco minutos a
correção dos trabalhos de casa e o grupo verbal.Quinta-feira a
compor-se. Despacho a rotina. Esqueço-me da noite mal dormida. Quando atravesso
a avenida não chove, evito as poças de água. Sigo a vida. Começo a cumprir o
horário. O dia e o percurso como tem de ser. A vidinha, tu sabes como é! Desculpa, mas não conseguirei pensar em ti.
A gramática escreve-se no quadro branco e passa para os cadernos diários.
Recebo as perguntas. Retribuo o sorriso da minha colega. Agradeço. O coração sossega.
Não ouvimos a chuva, trabalhamos em paz. Não falta ninguém, menos mal: não há
miúdos doentes. Damos uma gargalhada – “Professora, está na hora há dez
minutos.” E, como se a noite tivesse sido de um sono só, entro na sala que cheira
a sopa, massada de peixe, perfumes e roupa molhada. A promiscuidade abençoada
pela crise e por escolas sem refeitórios: os almoços, agora vêm em sacos,
térmicos, coloridos e saem fumegantes ao lado dos livros de ponto.
Entremeiam-se com o Descartes, o Eça, as equações ‘os ácidos e as bases’. Não me queres convidar para almoçar? Leva-me
para o rio, dá-me um abraço. Sim, a canção - traz também. Aceito a sopa, a
fruta. A tarde será longa, tenho de seguir. Os olhos da diretora de turma
brilham, toldam-se de ternura, diz de um menino que está diferente, mais
sossegado. «Estou tão feliz! Vamos conseguir que o miúdo passe o ano.» Sei que a
visita de estudo foi aprovada. Rio. Que trabalho tão bem feito! Que sorte! Ao
balcão aprecio a competência de quem me tira um café. O senhor M. olha-nos,
assegura-se que tudo está em ordem, pergunta-me se preciso de alguma coisa.
«Sempre às ordens, senhora professora. Se quiser levo os seus livros para a
Biblioteca.» As escolas são as pessoas. Pronto. Ignoro o simpático
elogio: «Pois, a magreza traz muitas rugas. Esse vestido é novo?» Não respondo.
Não quero conversa de saias. Não preciso de livro de ponto. Subo as escadas. A
lírica camoniana, a métrica, o amor e o desconcerto do mundo. Tão desconcertado
que o mundo está! Outro dia e ficaria a divagar sobre a mudança - ‘não muda
como soía’. Hoje, já, não me apetece. O puto veio para escola sem a chave. Mais
tarde não estarei em casa. «Não se preocupe senhora professora eu dou a chave
ao menino. Não a vi a chegar. Está tudo bem com a senhora? E a chuva que não
pára! Fique descansada.» O coração solta-se. Estou quase a agradecer a chuva, o
frio e a primavera distante… Vamos tratar de papeladas, eu e o miúdo mais velho.
Caí o céu em cima de nós. Conversamos. «Tenho de estudar três horas, mãe, não
posso ir contigo às compras.» O meu coração não aguenta. Tratamos dos papéis.
Uma senhora muito simpática resolve tudo muito bem. Uma instituição pública e
mais uma profissional competente. Bem-haja. Sinto-me em falta. Agradecida. O
miúdo concordou. «Europa, mãe. Estamos na Europa e deixa de dizer que o nosso
país é atrasado, se faz favor.» Às vezes esqueço-me e irrito-me. Compro pão
para uma semana ainda a pensar na senhora simpática. «Deixas-me em casa e vais
à tua vida.» Sim. À minha vida. Seguimos de táxi. O pão apetece com manteiga. Mais conversa. Chegamos. O céu continua a cair-nos em cima. O miúdo fica em casa.
Leva o pão, protege os papéis da água. Larga-me um sorriso, perco-o quando
entra no prédio. É nesse momento que
penso em ti, já olhaste bem para mim? À luz do sol, quero eu dizer.
Escrevo, numa factura apagada a lista das compras. Não me esqueço de nada,
porque escrevo tudo. Agora, tenho de escrever tudo. Tudo: uma lista para o
supermercado, anoto ao lado o total que posso gastar; a ordem de trabalhos da
reunião de amanhã; os livros que tenho de ler; os números de telefone, de todos os dias; a prioridade
das arrumações; as coisas da vidinha para o fim-de-semana. Ando pelo centro
comercial com um sorriso idiota e a falar sozinha. Vou beber um café e comer um pastel de nata, queres vir? Claro que não
virias, não terias paciência e a nossa ‘coisa’- como tu dizes - não conhece o
tapete rolante de uma caixa de supermercado. Estaladiço o pastel de nata, o
café sabe a fim de tarde com rio ao fundo. Coração, coração, coração! O sorriso
idiota insiste. Não me importo. A livraria está vazia, as lojas estão vazias,
nos corredores, homens e mulheres carregam os ovos, o leite, os detergentes. És tu que fazes as compras? Fazes uma
lista? Nunca te esqueces de nada? Compras a comida já feita? Um dia destes
cozinho para ti, queres? Não há
muita gente, vejo as horas, ainda posso deambular pelas prateleiras da
livraria. Os livros estão com desconto. A música está em saldo. Não é bom de
ver. O livro mais vendido não me interessa. Se
tivesse dinheiro comprava um cd de Jazz para te oferecer. Música que não
costumas ouvir. Saio. Resisto a um livro. Não compro. Não está na lista. Devo
ter falado muito alto, porque uma miúda sardenta parou e mostrou-me o aparelho
com elásticos pretos. Primeiro o talho, depois os congelados. Estava a olhar
para os queijos quando o telefone tocou. Era a minha amiga I. A chuva e o trabalho.
Desistimos do teatro. Marcamos para outro dia. Um filme. Queremos ir ao cinema.
Desabafamos mágoas antigas, dizemos disparates. Fazemos projectos. O Cesário, o
Pessoa… Mordo uma pele, mas não falo de
ti. Ninguém sabe. Prefiro assim. Despedimo-nos a rir. Como uma irmã mais
velha diz-me: «Oh, mulher, pela tua rica saúde não te olhes ao espelho. Eu já
não olho. E também sou gira. Porra, sou mais velha do que tu. Adeus, miúda.
Escolhe o filme.» Apresso-me. Caixa vazia. Gastei menos do que tinha anotado,
ao lado, na lista. Estou bem. Os sacos não estão muito pesados.
Saio devagar.
A chuva parou. Estou em paz. Penso na I. e na professora que conseguiu
pôr um miúdo a trabalhar. A ternura do olhar da professora de cabelos
grisalhos, a senhora simpática e prestável, o senhor M. e a Dª C. saem comigo. O
céu está cinzento, sem frio e, ainda, com luz. Os dias alongam-se, a felicidade também.
E é quanto baste.