sábado, 22 de abril de 2017

Nem todo o lixo é reciclável.


https://youtu.be/--DbgPXwLlM





Nem todo o lixo é reciclável.


À direita, as manchas castanhas de um lodo que, ainda, não espelha o céu. Sopra um vento frio e ao sol, por enquanto, não lhe interessa celebrar a primavera – a natureza tem destas coisas: o sol não aquece como soía. Encolho-me num  banco de veludo azul muito coçado. Gosto muito de andar de comboio - «Prefiro rosas, meu amor, à pátria», dizia o poeta. Eu prefiro comboios. Encosto-me e sinto a cabeça a latejar. Um latejar sem fim. Quando olho o meu reflexo no vidro da janela vejo um rosto esverdeado de óculos escuros e, se olhar bem, ainda decifro as rugas de tristeza e de inquietação que se vão acumulando. Através deste reflexo consigo ver o mar. Oiço o alegre vozear de quem vai eufórico para mais um fim de semana. A meu lado, sentam-se homens que falam com aprumo o linguajar do sul, têm o rosto queimado pela luz das marés, à minha frente, um grupo de adolescentes, desses que são iguais em todo o lado.
Tudo comum, banal e corrente.

O tempo passa e nós permitimos a sua passagem

Às 16h15m, comi dois rissóis (as empadas eram da véspera, obrigada, menina, foi muito gentil),e meio litro de sumo de frutos vermelhos. Talvez fumasse um cigarro. Às 16h24m partimos para a última estação desta linha de comboio, a essa hora começará doer-me a cabeça. Sinto a cabeça e os olhos não me pertencem. O corpo reage a este frio, o cansaço não pediu licença e sentou-se. Não é hábito conversarmos: gostamos de não ter assunto. O caminho demorará pouco mais de 1h30m. É nestes momentos que penso no silêncio, ou em ti, por exemplo,

Venho das casas da cidade um emaranhado de ruas e avenidas largas organizadas por rotundas. Oh! Gloriosas e redondas rotundas. (os espanhóis chamam-lhes glorietas – é mais bonito!) Escondido, imponente e doentio, arruma-se o hospital. Um grande e feio hospital, não sei se o hospital é feio, porque é um hospital ou porque o arquiteto não gosta de desenhar hospitais.

Penso na palavra envelhecimento e nem me vem à memória «nenhuma frase batida», apesar de saber que hoje é o resto da minha vida.
Insisto em envelhecer : as marcas que a inevitabilidade do tempo, deixa nas mãos, nas pernas, na cabeça, na pele.

(Afinal, o casal francês era muito antipático, ensinei-lhes na sua língua nativa o nome da estação onde deveriam descer, expliquei-lhes que as praias de Sotavento eram muito bonitas e calmas...areias brancas, mar azul, um barquinho para mostrar recantos mágicos da Ilha Formosa, falámos de política da Senhora Le pen, também não gostavam dela, ainda referi chocada o tiroteio aux Champs Elysées, não conheciam, não sabiam de nada, estavam de vacances à cause de notre retraite e quando se apearam na Fuzeta eu já não existia – quand on est con, on est con, voilà!)

Volto ao pautado do meu caderninho azul. Escrevo ‘Felizmente, está a envelhecer bem.’ - uma daquelas frases que não fazem sentido. Ninguém é feliz, porque envelhece. Ninguém envelhece felizmente. Envelhecer é uma merda – o corpo trai-nos: perdemos a vontade, o desejo, os sonhos, as pessoas, algumas palavras.
Adoecemos; precisamos dos hospitais. O hospital que ficou para trás e onde se adoece e se envelhece e se vive... Talvez devêssemos ficar por aqui: antes do tremor nas mãos e dos pulmões mirrarem. Não me lembro de ver crianças. Não havia crianças nas salas por onde passei. Quase irónico o sorriso a que me agarro. Salas enormes onde uma velhice assexuada mal respira. Há dor, gemidos, sangue, batas de várias cores, estetoscópios (obrigada, Priberam) e o lixo – farrapos de pessoas que já não prestam – e do outro. Ali, estendida e sem veias imagino que esteve uma bonita mulher, uma cabeleireira, uma secretária, uma boa mãe, ao lado, e debaixo de um lençol imaculado, está um professor, talvez, um hábil carpinteiro, percebem-se os ossos sem pele através dos tubos, das máscaras. Um senhor desequilibra-se, ajudo-o com o urinol de cartão pardo:« - Deixe estar, menina, o resto faço eu.», ri-se, eu não tenho essa coragem. Olho, mais uma vez, - macas alinhadas contra uma parede, cortinados azuis, mãos diligentes, gestos profissionais, alguma ternura, agulhas e luvas descartáveis. Não tarda virá, antes da próxima ampola de antibiótico, o suspiro que os levará para outra cama qualquer. Não gosto desta sala. Não gosto destes farrapos, assim, farrapos humanos. Não gosto do que resta das mãos que faziam a melhor compota de laranja do mundo, não gosto do que resta do riso fácil.

A dor de cabeça ficou, fazem-me companhia as laranjeiras, vários apeadeiros e um casal de holandeses, não nos é indiferente o volume obsceno do toque dos telemóveis “ultima geração”.
Regresso à sala das muitas camas e despeço-me - «Felicidades, menina. Que Deus Nosso Senhor nunca lhe falte. Vá com Deus, deixe estar a sua mãezinha adormeceu, estava cansada, coitadinha. » Agradeço os votos. Agradeço a dignidade e a luta desigual. «Olhe, menina, pode ser que nos encontremos, por aí. Quando for a Albufeira, não se esqueça: é a velhota da casa amarela. Que nada falte aos seus meninos. » Não esquecerei. Não me esquecerei da casa amarela, dos velhos, nem daquela sala de doença e lixo.

Faro/Vila Real de Santo António, 21 de Abril de 2017.

(Releio o que escrevi e páro na palavra lixo, penso em apagá-la, não a apago: não posso deitar fora a miséria, a doença, o abandono, a morte. Na capa deste caderno onde escrevo pode ler-se apalavra VIVER.)


Envelhecer é uma Merda!