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Andrew Wieth |
A porta mais
feia da casa.
Regresso à casa, à primeira porta, do lado
direito da rua, de costas para o rio. A primeira porta sem enfeites, nem
postigos de vidro rugoso. Uma porta e duas tábuas de madeira pintadas de
tinta castanha pesada e escura, sem graça e sem brilho. Uma argola em ferro,
redonda e imperfeita compunha uma fechadura que respondia com dificuldade a uma
chave preta e grande. Era a porta do quintal. Não tinha número, nem moldura. Era
a porta mais feia de toda a casa. Cada uma das tábuas estava presa ao chão por
um trinco cilíndrico, que encaixava num buraco sem grande mistério que não
fosse a força de um homem, ou os braços habituados a esfregar roupa, e a
bater, sem pausas, uma dúzia de claras em castelo. Estava sempre fechada e, por ela, depois de um degrau a que eu não ficava indiferente e ensaiando
vários passos e saltos entrava num longo
corredor de teto azul, com ou sem nuvens, sol a brilhar, chuva torrencial,
estrelas, frio de inverno húmido, ou o calor mudo que vinha do Norte de África.
No tempo em que vivi na casa, a única magia destas lajes de tijolo coladas uma
às outras era o céu que as cobria. Uma porta castanha e feia a abrir um longo e
estreito caminho de paredes caiadas de branco. No verão, o branco da cal das
paredes brilhava e feria os olhos mais sensíveis. Imaculadas no calor não
resistiam à humidade da chuva e do Guadiana. Criavam umas bolhas de ar, que uns
dedos, pequeninos e atrevidos, insistiam em fazer estalar. E, se o corredor da
casa guardava mistérios e contava muitas histórias, este outro, exterior e de
paredes caiadas, podia pertencer a uma qualquer história, de junho a setembro,
ser ringue de patinagem e a rua estreita que servia os interesses de quem
morava na casa. Pela porta mais feia da casa entravam as garrafas de gás, as
sacas de carvão e as caixas de madeira com batatas, abóboras e cenouras. As
galinhas vivas e a cacarejar deixavam-se arrastar, pelas asas, com as patas
atadas, por esse caminho, até ao momento que um golpe certeiro, no pescoço, as
sangrava e transformava em canja. Eu olhava para aquele sangue todo muito
encolhida e espantada. Como não gostava de comer, a infeliz criatura, degolada
e depenada, naquele ritual de final de semana, já não assombrava os meus
pensamentos, quando, tostada e muito arrumada, no tabuleiro aparecia na mesa do
almoço de domingo. Ao fundo, crescera um enorme tanque de lavar roupa e um
alegrete por onde subia uma trepadeira de folhas a imitar cabelos, com bagas
vermelhas. Este caminho aberto ao céu, um tanque de lavar roupa e o alegrete
desenhavam o quintal da casa. Nos dias mais chuvosos, quem viesse de galochas
teria de entrar por essa primeira porta, percorrer o caminho até ao tanque,
sacudir o guarda chuva, abrindo-o e fechando-o, várias vezes e deixá-lo a pingar
num ângulo, mais ou menos abrigado, entre o tanque e o alegrete. Só depois e,
pela porta da cozinha, podia entrar em casa. A passagem pelo corredor dependia
das estações do ano, dos rituais católicos, dos almoços de domingo e dias de
festa. Havia, ainda, neste corredor, por onde, se entrava pela porta mais feia, um buraco escuro e fundo tapado com uma grade de ferro, para esse
buraco despejava-se o balde de latão com a água suja de lavar o chão, os caldos
que azedavam e, claro, o sangue da galinha de domingo e do peru do Natal. Era
um buraco muito feio, eu deveria manter distância, mas para onde não
resistia e, lúcida pecadora, jogava, botões, bichos-de-conta, alfinetes, lagartixas, baratas, lápis
sem ponta, bocados de pano e de papel, apenas, porque naquele buraco, tão
encostado ao tanque, no corredor de céu azul, me parecia estar a entrada
para um qualquer inferno, abismo, ou caminho secreto. Quando regresso à
casa, consigo ver esta primeira porta castanha, áspera e pesada a abrir para um
corredor de lajes castanho-tijolo, mas é o buraco negro que vejo
com maior nitidez e inquietação. O inferno deverá ser assim - um buraco
de água suja, apelativo e sem regresso,
ao fundo de um longo corredor.
(continua)