
José de Guimarães, Camões e D.Sebastião.
Regresso à casa.
As tardes de verão sem praia. Parte I
Nos dias sem sol, quando o vento norte trazia a água
fria e não deixava entrar o levante,
ficávamos em casa. As horas passavam devagar sem gente, nem correrias ou cuidados
com a digestão. A leitura ainda estava longe, as bonecas não falavam e as mulheres
da casa arrumavam o dia entre a açorda, as limpezas e as costuras. Sobravam-me
as paredes brancas e os lápis de carvão. Ensaiava na cal que não conseguia
descascar os números, gostava muito do dois: parece um cisne, mas também pode ser um pato desenhava-os grandes
com o pescoço muito longo e um bico mais pequeno ou ensaiava uma família
numerosa com pai, mãe e filhos, fazia linhas de números dois - com traço grosso
- a passear ao longo do rodapé que rematava as lajes do chão, geométricas e enceradas
a encarnado de tingir os joelhos, as rendas do vestido e os pés descalços. Era o quarto dos baús enormes, protegidos do pó e do tempo por uma capa de tecido que fechava com botões
de vários tamanhos, nunca percebi o desenho da chita que forrava esses baús,
quando os botões começaram a não
resistir às investidas dos meus dedos a cor já tinha desaparecido. Eu gostava
daqueles botões, dos buraquinhos que
mostravam a cor dos baús e das linhas que se soltavam, sabia que porque não brincas com bonecas? e o já te disse que os baús te podem cair em
cima eram a legenda de mais uma tarde sem sol e sem calor passada naquele
quarto de paredes brancas. Bastava um dia sem verão para o quarto com uma
janela de fecho ferrugento se transformar num exercício de matemática, já então
indecifrável, ou numa roda de conversa com pessoas que vinham da rua, das
conversas dos crescidos e das notícias
do jornal que eu ouvia ler. Esta miúda
não se cala. Olha o que fizeste às paredes, têm de ser caiadas, outra vez. Eu
sabia de cor as frases zangadas, mas também percebia o olhar tranquilo das
mulheres da casa porque a menina depois de dormir a folga tem de
fazer alguma coisa, coitadinha, e a tarde passeava-se tranquila,
indiferente ao frio do vento norte e à praia deserta.