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Andrew Wieth
O corredor.
Regresso à
casa. Entro pela porta principal de madeira, ferro e postigo de vidro rugoso.
Os pés saltam o degrau de pedra e, um atrás do outro, desenham triângulos,
quadrados e retângulos nos mosaicos pretos, brancos, cinzentos. A mancha
regular desenhada com mestria era o longo corredor. Teria sete ou oito metros de
comprimento, mais ou menos dois de largura e era por ele que a vida passava, entrava
e se instalava. Eu e os meus pés pequeninos inventávamos mil histórias, viagens,
partidas para destinos desenhados ao milímetro, impostos pelas dimensões de cada
um dos mosaicos. De joelhos, contava as esquinas, as vezes que a cor preta se
repetia, em que quadrado surgia a cor branca, abria as mãos e media os palmos
que separavam a porta da rua, da porta do escritório, imaginava o que mais
tarde percebi serem linhas diagonais, e corria os indicadores
pelo rodapé, moldura suave, lisa e fria fita cinzenta, que separava a mancha escura do chão,
do tecido claro esbranquiçado da escaiola da parede, rematado com os laços
encarniçados, iguais, em todas as outras paredes da casa. Aquele longo corredor mudava de cor ao longo do dia. Ao
longo do ano. Quem entrava na casa, nos
dias frios e chuvosos, de inverno, sentia o conforto de um horizonte seco,
quente e confortável de luz filtrada pelos vidros coloridos do postigo, que
desenhava formas no preto mais sombrio e no branco mais frágil, dos mosaicos do
chão. À direita, um bengaleiro com um espelho oval e ganchos de metal permitia
pendurar, sem pressas, os casacos e os guarda-chuvas. Nos dias menos luminosos,
aquela armação de madeira, espelho e ferro era a personagem principal das
minhas histórias de fantasmas e lobisomens. Encostava-me à porta de madeira-mel
do escritório e via criaturas enormes,
braços a agarrar seres sem forma, gotas de água do tamanho de lagos. Ficava
quieta, calada e muda a admirar aquela
gente extraordinária. Eu era a menina, única criança da casa, não apreciava bonecas, nem
tachinhos, nem panelinhas entretinha-me a falar com tudo que em meu redor pudesse
transformar em histórias com fadas, gigantes, e outras pessoas que só eu tinha o privilégio de ver e ouvir. O corredor não
era o meu lugar da casa, mas era o sítio, que pelas suas dimensões, mais voltas ao
mundo me permitia dar. Nos dias mais quentes de verão, aquele corredor era fresco,
arejado e brilhante. As sombras eram substituídas por manchas coloridas que
desfaziam o calor e o bafo quente do Suão. Nesses dias, sentava-me num banquinho
a ver o chão mudar de cor, abrigada do calor, sem tempo e no silêncio, apenas,
interrompido pelo ritmo das tarefas domésticas. Mas esta criança não se cansa de estar e falar sozinha? De facto, eu
não estava só e não percebia a estranheza de falar sozinha. Se, mais tarde, os livros do escritório me salvaram
e mantinham comigo conversas intermináveis, neste tempo, o corredor que mudava
de cor e luz foi uma das minhas melhores companhias. A porta guarda-vento de
vidros coloridos em semicírculo, as portas dos quartos, do escritório e da sala
de jantar, de madeira mel, os vasos de ferro que escondiam o barro e as raízes
dos fetos, das sempre-vivas e dos cartuchos, as floreiras de pé alto e uma
cadeira de braços estofada compunham o corredor. Quem entrasse na casa não ficava indiferente às simetrias
desenhadas no chão e nas paredes, ao viço das plantas, nem às cores dos vidros, que nos empurravam para a sala de estar, grande e solar a
completar a harmonia que se adivinhava, quando a porta número sessenta e seis,
na rua Conselheiro Frederico Ramirez, se fechava.
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sábado, 16 de agosto de 2014
Resgresso à casa - o corredor (continuação)
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A tua imaginação era bem mais fértil que a minha. Eu só pensava em fazer tropelias.
ResponderEliminarOs textos sobre a casa do n.º 66 da Rua Conselheiro Frederico Ramirez são fabulosos. Quando é que sai o romance inteiro?
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