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Pintura de Sandmann Corte-Real |
O meu natal
ou a Senhora do Chapéu.
Venho da rua, venho do centro das luzes da
confusão em sacos com embrulhos, dos flashes das selfies, dos gritos das pressas
dos encontrões. Este ano não andei à procura de presentes, não organizei lista
de compras, não comprei guardanapos de papel encarnados, não decorei a casa -
há em cima de uma prateleira, entre dois castiçais que moram neste casa o ano
todo e uma caixa chinesa, uma estrela de natal, tem umas folhas encarnadas e
uma folhas verdes a quem a resiliência não assistiu e amareleceram, acabando
por murchar e cair – não tenho uma árvore verde a acender e a apagar, não
espalhei presentes pela casa, não expus cartões de Boas Festas (ainda se recebem postais com sininhos e trenós?) tirando
a mancha encarnada, pode dizer-se que cá em casa não entrou o natal. Estarei
doida? Demente? Descrente? Indiferente? Infeliz? Farei parte daquele grupo que
não festeja o natal, porque o mundo se tornou um lugar horrível e eu tenho de
ser solidária e sofrer até todas as peles do polegar sangrarem? Ter-me-ei
tornado uma pessoa (ainda mais) cínica? Não sei. Vivo o natal desde que
respondo pelo nome que vem no Cartão de Cidadão. Ainda oiço as gargalhadas à mesa
na noite da consoada. Nunca comi muito, mas ficava eufórica com a mesa a cheirar
a fritos, lambia nos dedos a calda que
escorria das filhós, depenicava a posta de bacalhau e sempre me foi permitido
comer - “deixem lá a miúda comer o que quiser!” - uma transparente posta de bacalhau
pingada com azeite e sem couves e outras tradições. No meu natal – o que guardo
e me aquece – havia tudo: árvore com bolas de vidro, luzes, presépio com musgo
e a esperança de que mesmo que tivéssemos tido muitos erros no ditado ou
pronunciado o“tal” nome feio, o Menino Jesus não se esqueceria do nosso
sapatinho à chaminé. E se era grande a chaminé! Havia sempre o que eu tinha
pedido, muitos abraços, muito colo, muito rir, muito vinho, gente, burburinho
e fantasia. Durante algum tempo, fui a única menina a pôr o sapatinho à chaminé.
Depois vieram outros meninos. A mesa aumentou e os preparativos começavam mais
cedo, tornei-me cúmplice da surpresa que
o Menino Jesus traria para os primos, continuámos a estrear todos uma roupa
melhorzinha (malditos sapatos que apertavam os pés, já, chatos, e educados
pelas botas horrorosas da Lisbonense!), as mulheres iam ao cabeleireiro e na
cozinha a mesa estava sempre posta. Passei um Natal num hotel em Sevilha,
coisas da política que eu só percebi com 15 anos. E, mesmo já mulher independente
e petulante continuei a celebrar o Natal. Atravessei várias águas para comer o
peru recheado pela minha mãe e passei aos meus filhos a euforia do feliz
encontro de uma família divertida, unida, comilona e muito generosa.
Ensinei-lhes, sem missa do galo, que o natal era encontro, abraços apertados,
surpresas e cumplicidade. E foi assim até…até há dois, três anos. O ano passado
foi quase igual – quase – igual aos outros natais de gargalhadas e luzes a
piscar.
Este ano despejei 8 euros na mão da florista
trouxe a tal estrela para casa: “Pronto, meninos, aqui está o nosso ‘apontamento’
de Natal”, “ É de plástico?”, “Não, não é de plástico. E ficará viçosa até Junho. “ Enganei-me, mas isso também não tem importância. Este ano, teremos um
natal diferente. Ou a festa será, apenas, diferente. Fui à Baixa, vi as luzes,
comprei um presente e daqui a pouco vou guardar numa mala de viagem uma escova
de dentes e umas camisolas quentinhas. Vou para sul. Vou receber o meu abraço.
Não estou infeliz, não sinto o vazio de não
ter natal com 20 pessoas à mesa, nem choro lágrimas saudosas e sofridas. Estou
em paz. O natal mudou: morreram-me avô, avó, primos e tios, morreram-me amigos e na
mesa de jantar dos meus pais mal cabem cinco pessoas. Irei à terra como tantos
outros lisboetas que não nasceram na Maternidade Alfredo da Costa. Encontrarei
os meus amigos. Daremos gargalhadas à beira-rio. Comeremos bacalhau, Bolo Rei,
broas e chocolates. Somos poucos, por isso, em vez de peru haverá um capão
recheado.
Vim da rua, dos atropelos. Na Praça de
Comércio há uma árvore gigante, olhei-a de soslaio. Vinha a pensar numa miúda,
muito jovem, pintora, que espalhou pela Rua do Carmo a sua arte. Comprei-lhe
uma tela pequena, uma mancha de azul Klein e uma cabeça feminina com um chapéu.
Chamámos-lhe A Senhora do Chapéu. Nos
momentos que conversei com ela, percebi-lhe a força e a vontade. A miúda tem um
bom traço. E tem. Gostei dela e do seus dezoito anos de verdade e vaidade. (Tenho
esta mania de comprar coisas na rua, quadros, fotografias, bijutaria e de ficar
à conversa com quem vende o melhor que tem.)
Chego
a casa, ligo o rádio, chegam a música e as vozes preparo um Gin Tónico – em balão,
como deve ser – e ponho-me a escrever. Afinal, o natal, não, não é quando um
homem quiser o natal é o que um homem quiser que ele seja. Nos corações.
Na esperança.
Como poderei estar infeliz ou sentir-me sozinha?
Como poderei estar infeliz ou sentir-me sozinha?
Árvore de natal para quê? Tenho o coração
quente e memórias sorridentes, sem rabanadas, nem broas.
É a vida - a minha vida e gosto dela assim.
É a vida - a minha vida e gosto dela assim.
(confesso que com o entusiasmo da Senhora do
Chapéu, esqueci-me do gin, do gelo e da água tónica, a base do balão é uma poça
de gelo derretido azul e redonda)
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