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António Palolo, Sem título, 1966 |
Ricardo, meu amigo
Penso em ti e apetece-me
fumar.Um cigarro. Contigo, de preferência ao fim do dia, numa esplanada. Comer
um prato de caracóis. Um prego e uma imperial, depois uma lambreta. Um café a
seguir. Sempre com palavras e histórias. As tuas viagens. A fortuna que “fodeste em três tempos,” como costumavas dizer. “ Se
fosse hoje, teria sido tudo tão diferente! Mas acho que é sempre assim, não é?” Fumavas muito e
tinhas os dedos das tuas mãos, quadradas e fortes, manchados de nicotina. Roías
as unhas até ao fim. “Sabes,Betinha,
fumar é o meu maior vício, sempre foi, experimentei as drogas todas, bebi quase tudo que há para beber, mas é do cigarro
que eu gosto, devo morrer com os pulmões encarnados. Sim, encarnados. O maço de SG gigante não é encarnado?” E
soltavas uma gargalhada sonora, contagiante. Insultuosa. Falavas mal. Vernáculo
apurado. Muito alto. Careca e narigudo. Um metro e sessenta e oito de ternura e
bondade. Genuíno. Nunca tinhas dinheiro. Nunca estiveste num emprego mais do
que um mês. Recebias o ordenado e despedias-te. Voltavas à mesada da tua mãe. “ Não tenho remorsos, os bens também são meus. Eu gastei muito, mas a Flausina ainda tem muito e eu sou herdeiro. Vou morrer cedo, ainda lhe sobrarão alguns trocos”. A Betinha era eu, Flausina era a mãe,
Princesa de Oiro, a filha (longe e distante que ele não via muitas vezes.” A mãe diz que eu sou má influência, deve
ter razão. Talvez quando vierem para
Cascais…talvez.” E era a única sombra que, por momentos, lhe parava o olhar
e os gestos. Gesticulava. Corria. Andava muito depressa. “ Não sei, parece-me
que estou sempre atrasado, gosto de ser pontual.” E eras muito pontual. Eu
também. Nunca esperámos um pelo outro. Conhecemo-nos numa noite de muitos copos
e dança. Começámos a conversar ao balcão do lugar da moda, setembro de noventa
e dois, talvez uma quinta-feira. Já não me lembro. Banalidades, a música, o
tempo, o ambiente “Costuma vir aqui?
Cerimonioso. Comigo. Sempre. “Se costumo
vir aqui? Não estávamos bem a falar
do ambiente?” respondi-lhe e ficámos amigos. Irmãos. Amizade. Fraternidade.
Muita cumplicidade, companheirismo e partilha. Habituámo-nos a partilhar tudo.
O pouco quando havia pouco o muito quando havia um pouco mais. “ Gostas daquele
casaco? Saiu um livro de poesia, deves gostar, queres?” Mimava-me com palavras,
livros, flores, a mão dele na minha do Cais do Sodré até ao Castelo de São Jorge,
uma noite quente de junho - o que tínhamos para contar um ao outro não se
calara com o Lou Reed e o seu’ Good night, ladies. Good night.’Passeámos noites inteiras
por Lisboa, apanhámos muitas manhãs de verão, o primeiro Cacilheiro para ir à
praia. Ficavas sentado ao meu lado, quando eu tinha de trabalhar. “Vou fazer-te uma sopa de legumes e uma salada de frutas, tens de te alimentar,
estás a trabalhar há muitas horas”. Gostávamos de ir à ópera e ao ballet “Ainda tenho um fato em bom estado, mas não
te posso pagar a entrada”. Íamos na mesma. Éramos inseparáveis. Um ano,
dois anos, três anos. Que interessa isso agora? Às vezes, namorávamos, afastávamo-nos um do outro, mas por pouco tempo. Precisávamos de dizer tudo. “Parecemos umas pitas adolescentes. Queres ir
ao cinema? Compra uns bifes que eu cozinho-te o melhor bife do mundo. Vou à adega
e roubo uma garrafa à Flausina. Sete,
sete e meia. Até logo, Betinha” Abraçávamo-nos quando nos encontrávamos,
onde quer que estivéssemos. “São pai e
filha?” Perguntavam com frequência, respondíamos como nos apetecia. E
ríamos. “ Eu podia ser teu pai, nasci em
47 e tu em 59, podia ser teu pai. “Pois “. Respondia-lhe. Um dia chegaste com
uma caixa grande, muito grande. Cheia de fotografias. “ Olha este é o Palolo, nunca ouviste falar? Não conheces? Grande
pintor, não tenho notícias dele há muito tempo, deve andar pelo mundo, como eu.
Olha esta foi tirada em Paris, estás a ver este puto a tocar? É o Jorge Palma?
Havemos de ir a casa dele um dia destes, tenho o número apontado numa agenda, logo procuro.” Passámos uma
tarde a passear pela América, pela Austrália, pela Europa. “ É como o teu poeta: ‘viajar é perder países’ e eu podia tê-los perdido todos contigo. Então
não chores, não te pedi em casamento. Chiça, deves ser ‘muita’ má de aturar.” E, foram assim muitas tardes,
muitas noites, uma amizade como deve ser o Amor.
Um dia. Uma ninharia, uma troca de palavras
enviesada e zangámo-nos. Todas as pessoas se zangam. Mas nós sabíamos que se
alguma vez nos zangássemos uma zanga feia, ficaríamos sem concerto.
O coração desarranjado. Separámo-nos. “ Sem mágoas?” “Sem mágoas.” Mas nunca
mais nos vimos.
Morreste-me, para sempre,
uns meses antes de eu fazer cinquenta anos. Não conheceste os meus filhos e não
te devolvi o livro do Jack Kerouac, sublinhado e anotado, por ti, com a tua
letra miudinha e perfeita. Morreste-me e eu não te perdoo. Fizeste-me muita
falta. Fazes-me falta. Eras meu amigo. Generoso. Um coração inteiro e cheio.
Inteligente. Muito atrevido. O mundo inteiro cabia dentro de ti. Gostavas das
mulheres. Ouvias jazz e Mahler. Não te cansavas de me dizer “As pessoas bonitas como tu têm a obrigação
de ser felizes. És a princesa da história do colchão e da ervilha. Não te rales. A puta da vida?
Betinha, tu és maior que ela.” Eras meu amigo. Meu amigo.
Verdadeiro
Morreste-me. E eu todos os
dias tenho histórias novas para te contar.
Uma vez, ríamos e dançávamos
e tu disseste” Esta gaja tem uma voz do caraças (talvez não tenhas usado estas
palavras). Gosto desta canção. Betinha, hoje dançamos a noite toda!”
Ricardo, What’s love got do to with it? - (Tina Turner)
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