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sexta-feira, 23 de agosto de 2013
sábado, 17 de agosto de 2013
Um café e uma garrafa de água, se faz favor.
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Foto de Xavier Madeira, Pôr de sol em Vila Real de Santo António (via Zezinha Caldeira)
A mesa do café são muitas mesas e cadeiras. À volta de um
café. Uma água sem gás. Natural. Fresca. Uma água das pedras. Um descafeinado...
Um bafo de calor deixa no ar as conversas. Uma esplanada. As cadeiras a puxar um design sofisticado.
Sentam-se. Pessoas. Amigos de sempre. Estão juntos uma vez por ano. Quando
voltam à terra: todos temos uma terra,
dizia a Irene Lisboa. Alguns não se viam há trinta anos. Perderam-se em bons empregos.
Cresceram em empregos medíocres. Fizeram de empregos muito pequeninos, boas
carreiras. Outros voltaram sem emprego. Sem par. Sem família. São muitos e dão
conta do que a infância lhes deixou. Têm histórias do tamanho das vidas que viveram.
Contam bocados de felicidade. Esquecem o inverno frio e já sabem de cor as
tristezas que lhes turvaram os caminhos. São histórias banais. Histórias que se
leem nos jornais. Que se percebem no eco das palavras sobre o melhor lugar ao
sol, o melhor livro, as piadas dos filhos, o sucesso, as apreensões, o mais
desgraçado dos políticos. Nem sempre estão de acordo. Mas riem em coro.
Soltam-se. Gostam de estar juntos. Alguns, ainda, guardam zangas antigas,
despeitos, rancores. Sentam-se, com delicadeza, nos lugares mais distantes da
mesa grande com muitas mesas. Percebem-se na cumplicidade de que é feita a
amizade. A tagarelice é um bem, que gastam com prazer. Há algures, as festas da
moda, as festas brancas e de todas as cores, os lugares de sonho, os festivais, os recantos do país real e dos bolos
de canela acabados de cozer. As cascatas. As viagens. Os cruzeiros. Não estão interessados.
Não foram. Não prestaram atenção. Não comeram. Não se importam. Estão entre os
seus. A família dos filmes de aventuras, das correntes do pelourinho, da praia.
O tempo passou por todos. Deixou um espaço que lhes pertence, por direito e por
amor. Do outro lado, o rio que corre na sua aldeia. Os que voltam todos os
anos, os que vivem neste rio, os que já não voltavam, os que não voltarão e os
que cresceram a seu lado. Antes de se sentarem, cumprimentam-se. Beijam-se nas
faces. Abraçam-se. Dão as mãos. Tocam-se. Olham-se. E mais um abraço. Estão bem.
Têm os olhos a brilhar. Entendem-se. Estão felizes. Às vezes, o suão leva a
tristeza para muito longe. Mas só a tristeza.
É verão. Está muito calor. Ao céu deste mês de encontros não
faltará a lua cheia.
Quase cheia. Ficaremos à sua espera.
(- Um café e uma
garrafa de água. Sim. Fresca e sem gás. Se faz favor. Alguém quer mais alguma
coisa?)
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terça-feira, 13 de agosto de 2013
De pele e areia.
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Areia da praia (setembro de 2012) |
Chegaste, lento e esquivo. Mas insinuaste o corpo bronzeado. O perfume caro e persistente. O sorriso pendurado num cigarro. Ainda era entardecer e ninguém te esperava àquela hora. Não sei que maré, nem as conchas muito gastas. Das gaivotas não recordo a cor. A mesa ficou com uma cadeira ocupada e os miúdos pediram água, um refrigerante, gelados. Como sempre. O brilho da areia ecoou. E de mim soube apenas o meu lugar a teu lado. "Não tardes. Em breve, será noite, a lua cresce e eu não sei regressar sozinha". Vi, ao longe, uma onda, uma espuma do prateado levante. Um bafo quente. Demos as mãos. Mais ninguém. E do meu corpo a raspar, ao de leve, a areia no teu. Só nos sentimos." Espera mais um pouco. Ainda é tempo". Se me esticares contra a tua pele, sentirás o sal. O sol e o arrepio. Tenho sede. Solta as palavras. Fiquemos, um só, a olhar. As gotas de suor e a vontade. Um perfil de um traço só. A latejar. E o sol a morrer. Desejo, espuma e água. Agora na areia. "Fiquemos mais um pouco". Sussurraste tu, na madeixa de cabelo que se soltou. "Sim, ficaremos mais um pouco. A olhar o mar"
sábado, 10 de agosto de 2013
A casa - a sala de jantar
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Andrew Wyeth (1917- 2009) Renfield
Venho da rua onde era a casa. Está muito calor e um vento
quente amolece a melhor das intenções. O passeio da frente de pedra irregular ainda lá está. As sarjetas continuam a escoar as águas da chuva e
deixam circular, em liberdade, as baratas. Nos dias quentes. Se olharmos para o
chão, vemos o calor tremer e desmanchar o ângulo recto das pedras e a mancha
negra do alcatrão. Os prédios de dois andares de traço muito arrojado para a
década de sessenta estão no mesmo sítio. A porta cinzenta, encarnado escuro e
vidro fosco é igual à que eu via, quando espreitava o mundo através do postigo.
A rua é movimentada e a casa é agora
um prédio de betão, cinzento e feio. Dois andares, janelas com sacada, portas
de alumínio, dois cabeleireiros, uma loja de roupa para criança, que já foi
café, que já foi escritório de contabilidade, que já foi salão de chá, que já
foi pastelaria e um dia destes há de ser outro negócio qualquer… As paredes
amareladas, as janelas com portadas de madeira, a porta com a maçaneta prateada
e o portão do corredor que entrava no quintal desapareceram.
Vista da rua, a casa, para além da porta de postigos de vidro rugoso, mostrava uma
porta do quintal e duas janelas. A janela do escritório e a janela da sala de
jantar para os convidados, o almoço de dia de Natal e Ano Novo, conversas
secretas e sérias entre as mulheres da família. Os homens iam conversar para o escritório, na porta em frente. No início de Dezembro,
à esquerda da porta sala de jantar, montávamos a árvore de Natal. Um pinheiro, à
revelia de uma qualquer autoridade, era cortado no pinhal cerrado que une Vila
Real a Monte Gordo. Partíamos cedo, o meu avô e eu, procurávamos uma clareira.
Estacionava o carro, andávamos alguns minutos às voltas e escolhíamos o pinheirinho
sacrificado. Um serrote, o gesto certeiro, ritmado, o pinheiro tombava e o meu
avô era o primeiro herói do Natal. Não era um pinheiro muito grande, nem muito
frondoso, mas ficava carregado de luzes, bolas de vidro de todas as cores, fitas
douradas e prateadas e sombrinhas de chocolate. Em Dezembro, o canto, à
esquerda de quem entrava na sala, era uma mancha de luz colorida. Não podíamos
lá entrar para brincar às escondidas. As cadeiras de braços, onde me sentava
com as pernas a baloiçar, era um santuário de embrulhos, laços e papel celofane.
A mesa ia-se enchendo de travessas com filhós e bolos, enquanto, muito frio e,
às vezes sem sol, os dias de Dezembro demoravam. A porta mantinha-se quase
fechada e eu, muito sossegada, adivinhava o movimento. Em silêncio. Nada do que
ali se passava eram contas do meu
rosário. Assim se mantinha até à manhã do dia vinte e cinco de Dezembro,
assim se manteve até eu aprender a ler. A sala de jantar era uma sala de vidros,
portas, móveis, cadeiras e um quadro, grande orgulho da minha avó, valia um “AH! Que bonito”, exclamado pelas pessoas importantes, convidadas a entrar. O
quadro representava a última ceia de Jesus, era de prata e madeira brilhante. O
papel de jornal e um algodão guardado numa lata redonda, fora das minhas
brincadeiras, limpavam todas as primaveras a cara a Jesus e aos seus apóstolos.
Eu não percebia o fascínio de tal quadro, nem compreendia o orgulho da minha
avó. A parede mais larga da sala emoldurava, em tons de rosa, essa maravilha,
que não deixava ninguém indiferente. Eu não gostava. Uma fotografia da Marisol
ou do Joselito fariam muito mais sentido. Mas como esta sala era para as
ocasiões e brincadeiras proibidas, nunca me importei muito com esta Última Ceia
de Jesus. O mais tentador era a mesa quadrada de tampo muito liso. Umas veias irregulares
convergiam para o centro e pintavam-na com diferentes sombras de castanho baço
e castanho brilhante. A mesa escondia umas tábuas e ficava do tamanho da família, primos
afastados e padrinhos. Uma elipse assente em quatro pés quadrados e suportada pelo
tampo de veias irregulares era um dos meus lugares favoritos da casa. Encolhia-me debaixo da mesa,
olhava para a parte debaixo do tampo e descobria armadilhas, passagens
secretas, labirintos, onde só cabiam as minhas mãos. No chão uma carpete de
flores garridas e áspera esfolava-me os joelhos. Cobria quase todo o chão
encerado e não deixava as tábuas rangerem. As flores partilhavam com os
cortinados e as paredes a mesma cor. Do tecto um candeeiro de loiça e vidrinhos iluminava
os fins de tarde e os jantares demorados.
A mesa, as cadeiras de
braços e a cristaleira eram as jóias desta sala. Nos dias quentes como o de
hoje esta sala de jantar e brincadeiras, que ninguém desconfiava, era uma das
divisões mais frescas da casa. Nos
dias muito quentes as portadas de madeira da janela não se abriam. O calor
ficava de fora.
O terramoto de 1969 rachou-lhe as paredes cor de rosa e eu nunca mais lá entrei. Não se partiu um único copo, chávena, ou vidro. Mas a sala de jantar para os dias de festa desapareceu para sempre . Não resistiu.
Um dia, dois dias, talvez, deixámos a casa.
O cheiro a cera amarela e o brilho da árvore de Natal ainda lá estão.
(continua)
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sexta-feira, 2 de agosto de 2013
A casa - a cozinha.
A cozinha
Gosto de cozinhas,
gosto de cozinhas grandes. Nas cozinhas pode fazer-se tudo, mesmo tudo,
pensamentos mais picantes e vamos para uma das cenas mais fortes de Nove
Semanas e Meia. Nas cozinhas aprende-se a cozinhar, conversa-se e com uma boa
janela, pode-se fumar, ver quem passa e entrar na vidinha dos vizinhos. Todas as
casas em que vivi tinham boas cozinhas, umas grandes, outras mais apertadas,
cozinhas onde se podia beber um copo de vinho, decidir o futuro da nação, fazer
teoria geral sobre o comportamento masculino. Gosto de conversar, enquanto faço
a salada. Um copo de vinho tinto, uma mesa e as relações humanas a fazerem
sentido. O tempero fica sempre bem q.b. Talvez o gosto pelas cozinhas esteja
ligado ao tempo em que vivi na casa. Sentava-me
numa cadeira baixinha de fundo de palhinha e ficava a olhar para o movimento
das mãos que cortavam as batatas, tiravam a cabeça e as tripas ao peixe, batiam
o bolo de chocolate, as claras em castelo, mexiam com uma colher de pau o sabão
azul e branco, que se desfazia na panela e deixava no ar o cheiro a roupa
lavada. A cozinha era comprida, tinha uma mesa larga de madeira com um estrado,
a pia era de pedra encarnada, torneiras douradas por baixo de um suporte de
madeira, que na casa se chamava
espeteira e arrumava as tampas dos tachos e das panelas. A pedra encarnada
tinha uns sulcos por onde a água da loiça e dos legumes lavados escorria. Com o
indicador eu conduzia estes ribeirinhos e furava as barras de sabão. As mãos
enxaguavam os rolos de esparto e de espuma. Ficava em pé em cima de um banco,
num equilíbrio, que assustava os adultos. A pia, os alguidares e a tábua de
cortar os legumes eram um universo de histórias e conversas com quem na minha
imaginação aparecesse. Não podia aproximar-me do fogão, um enorme papão, que me
assustava e vivia nos piores pesadelos da minha avó. Em cima do banco, a
molhar-me, a chapinhar, a fazer uma sopa com os nomes esquisitos, que ouvia ler
no Pantagruel, ou sentada na minha cadeirinha de palhinha, era na cozinha que
eu gostava de passar as tardes de verão, as manhãs de um almoço para as visitas
e as sextas de barrela. Cuidado com a
menina, diziam quando um movimento maior tornava a cozinha a divisão mais
importante da casa. Numa das paredes,
uma janela de vidro branco e translúcido, um vaso com uma trepadeira de folha
curta, impedia que a janela se fechasse, durante o dia. Ao lado, uma porta
branca e grande e entrava-se na casa de banho. Outro lugar mágico de luz,
azulejos brancos, uma banheira com pés e um espelho que o vapor quente foi
gastando. Ao lado do fogão proibido, havia um buraco escuro e sem ar. Um
armário com chão e teto, onde dois grandes alguidares de barro curavam a carne
do porco e o toucinho. Cheirava, quase sempre, a chouriço e azeitonas. Duas
prateleiras compridas serviam a cozinha. Umas latas de alumínio guardavam o assucar, o arroz, a massa e a farinha.
Os ovos, o saco do pão e o ramo dos orégãos, protegidos da luz e do calor,
também se guardavam no buraco. Gostava daquele buraco e de enterrar as mãos no
sal. O vão entre as prateleiras e a parede caiada era o esconderijo dos ladrões
de Ali-Babá. Quando o inverno era mais rigoroso e chuvoso era preciso cuidar do
buraco, umas telhas partidas numa zaragata de gatos deixavam entrar a chuva.
Ainda oiço o barulho das gotas grossas da chuva a cair na bacia de esmalte e sinto o
cheiro mais agressivo a bafio. O buraco era o fim do mundo na cozinha. Não era
medrosa, mas aquele fim de tudo, nos dias mais curtos, de frio e vento, era o
castigo certo para os ladrões, bruxas e fantasmas das histórias que me contavam
e inventava. Muitos dias, antes de me encantar com os livros, fiquei sentada,
muito calada a ouvir o cozer da sopa e o estalar das brasas no ferro de aço e
pega de madeira. Às vezes, fecho os olhos e consigo ver a mesa de madeira, a pedra
encarnada, a travessa da fruta, o saco bordado do pão, a cadeira de palhinha, a
loiça de cores alegres a escorrer, o pote de barro vidrado das azeitonas e o
fogão proibido. Uma outra porta, branca do lado de dentro e verde escuro, do lado de fora, um trinco rijo, que
eu não conseguia abrir, separavam a cozinha do quintal.
(continua)
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