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Andrew Wyeth (1917- 2009) Renfield
Venho da rua onde era a casa. Está muito calor e um vento
quente amolece a melhor das intenções. O passeio da frente de pedra irregular ainda lá está. As sarjetas continuam a escoar as águas da chuva e
deixam circular, em liberdade, as baratas. Nos dias quentes. Se olharmos para o
chão, vemos o calor tremer e desmanchar o ângulo recto das pedras e a mancha
negra do alcatrão. Os prédios de dois andares de traço muito arrojado para a
década de sessenta estão no mesmo sítio. A porta cinzenta, encarnado escuro e
vidro fosco é igual à que eu via, quando espreitava o mundo através do postigo.
A rua é movimentada e a casa é agora
um prédio de betão, cinzento e feio. Dois andares, janelas com sacada, portas
de alumínio, dois cabeleireiros, uma loja de roupa para criança, que já foi
café, que já foi escritório de contabilidade, que já foi salão de chá, que já
foi pastelaria e um dia destes há de ser outro negócio qualquer… As paredes
amareladas, as janelas com portadas de madeira, a porta com a maçaneta prateada
e o portão do corredor que entrava no quintal desapareceram.
Vista da rua, a casa, para além da porta de postigos de vidro rugoso, mostrava uma
porta do quintal e duas janelas. A janela do escritório e a janela da sala de
jantar para os convidados, o almoço de dia de Natal e Ano Novo, conversas
secretas e sérias entre as mulheres da família. Os homens iam conversar para o escritório, na porta em frente. No início de Dezembro,
à esquerda da porta sala de jantar, montávamos a árvore de Natal. Um pinheiro, à
revelia de uma qualquer autoridade, era cortado no pinhal cerrado que une Vila
Real a Monte Gordo. Partíamos cedo, o meu avô e eu, procurávamos uma clareira.
Estacionava o carro, andávamos alguns minutos às voltas e escolhíamos o pinheirinho
sacrificado. Um serrote, o gesto certeiro, ritmado, o pinheiro tombava e o meu
avô era o primeiro herói do Natal. Não era um pinheiro muito grande, nem muito
frondoso, mas ficava carregado de luzes, bolas de vidro de todas as cores, fitas
douradas e prateadas e sombrinhas de chocolate. Em Dezembro, o canto, à
esquerda de quem entrava na sala, era uma mancha de luz colorida. Não podíamos
lá entrar para brincar às escondidas. As cadeiras de braços, onde me sentava
com as pernas a baloiçar, era um santuário de embrulhos, laços e papel celofane.
A mesa ia-se enchendo de travessas com filhós e bolos, enquanto, muito frio e,
às vezes sem sol, os dias de Dezembro demoravam. A porta mantinha-se quase
fechada e eu, muito sossegada, adivinhava o movimento. Em silêncio. Nada do que
ali se passava eram contas do meu
rosário. Assim se mantinha até à manhã do dia vinte e cinco de Dezembro,
assim se manteve até eu aprender a ler. A sala de jantar era uma sala de vidros,
portas, móveis, cadeiras e um quadro, grande orgulho da minha avó, valia um “AH! Que bonito”, exclamado pelas pessoas importantes, convidadas a entrar. O
quadro representava a última ceia de Jesus, era de prata e madeira brilhante. O
papel de jornal e um algodão guardado numa lata redonda, fora das minhas
brincadeiras, limpavam todas as primaveras a cara a Jesus e aos seus apóstolos.
Eu não percebia o fascínio de tal quadro, nem compreendia o orgulho da minha
avó. A parede mais larga da sala emoldurava, em tons de rosa, essa maravilha,
que não deixava ninguém indiferente. Eu não gostava. Uma fotografia da Marisol
ou do Joselito fariam muito mais sentido. Mas como esta sala era para as
ocasiões e brincadeiras proibidas, nunca me importei muito com esta Última Ceia
de Jesus. O mais tentador era a mesa quadrada de tampo muito liso. Umas veias irregulares
convergiam para o centro e pintavam-na com diferentes sombras de castanho baço
e castanho brilhante. A mesa escondia umas tábuas e ficava do tamanho da família, primos
afastados e padrinhos. Uma elipse assente em quatro pés quadrados e suportada pelo
tampo de veias irregulares era um dos meus lugares favoritos da casa. Encolhia-me debaixo da mesa,
olhava para a parte debaixo do tampo e descobria armadilhas, passagens
secretas, labirintos, onde só cabiam as minhas mãos. No chão uma carpete de
flores garridas e áspera esfolava-me os joelhos. Cobria quase todo o chão
encerado e não deixava as tábuas rangerem. As flores partilhavam com os
cortinados e as paredes a mesma cor. Do tecto um candeeiro de loiça e vidrinhos iluminava
os fins de tarde e os jantares demorados.
A mesa, as cadeiras de
braços e a cristaleira eram as jóias desta sala. Nos dias quentes como o de
hoje esta sala de jantar e brincadeiras, que ninguém desconfiava, era uma das
divisões mais frescas da casa. Nos
dias muito quentes as portadas de madeira da janela não se abriam. O calor
ficava de fora.
O terramoto de 1969 rachou-lhe as paredes cor de rosa e eu nunca mais lá entrei. Não se partiu um único copo, chávena, ou vidro. Mas a sala de jantar para os dias de festa desapareceu para sempre . Não resistiu.
Um dia, dois dias, talvez, deixámos a casa.
O cheiro a cera amarela e o brilho da árvore de Natal ainda lá estão.
(continua)
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sábado, 10 de agosto de 2013
A casa - a sala de jantar
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Dom de pormenorização, conhecimento pelo filtro da memória. Mesmo muito bom.
ResponderEliminarObrigada, querida Paula.
ResponderEliminarQue bonito texto e que rigor descritivo também. O que eu chamaria as «geografias afectivas»
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