Baseado em casos reais
- Miguelito
Miguelito,
Miguelito,
(não te importes que te
trate assim, ninguém nos ouve, portanto o teu 1,85m não ficará arranhado),
hoje, meu filho, falo-te por esta via. Os teus irmãos monopolizaram o Skipe, o
teu pai está fechado no escritório, e eu tenho saudades das nossas conversas.
Imagina, Miguelito, lá estou eu outra vez, que desde que te foste embora nunca
mais tive licença para ver um
daqueles documentários no Canal História, nem tenho com quem fazer teorias gerais por tudo e por nada. Não tenho grandes notícias para te
dar, tu tens lido os jornais e vês os noticiários, estamos preocupados, já
estávamos quando decidiste ir mudar de
ares e fazer-te à vida, noutro sítio. Pensaste bem. Sou egoísta quando tenho
saudades tuas. Tu estás bem. O resto foi o que deixaste – um país triste, pobre
e desesperançado. Os sacrifícios são cada vez maiores, os ordenados mais escortinhados, há pouco ouvi as
explicações de mais cortes nas pensões de sobrevivência, se não fosse o nosso país
diria que é humor negro, o dinheiro está
cada vez mais caro, diz a tua avó, o avô
vocifera quando falamos ao telefone, continua a clamar, isso mesmo, adivinhaste, fui eu um oficial de abril, para ver esta cambada e por aí adiante, vocês falam quase todos dias, deves
estar a par das suas queixas, temos sorte - os avós estão bem e de boa cabeça.
Não queria que esta minha carta, já ninguém escreve cartas, fosse um rol de
lamentações, não meu filho-mais-velho, mas está perto, olha, o nosso prédio,
está tão animado que até dói, o filho do senhor Amadeu está desempregado, não
pode pagar a creche, por isso, os miúdos passam o dia com os avós, ouvem-se,
outra vez, crianças no prédio, a Dª Fátima é que não se conforma, depois de
tantas privações e trabalhos tem os dois filhos em casa, tudo isto deixa o teu
pai muito acabrunhado e dedica-se, cada vez mais, ao trabalho, compreendo-o, não tenho é ninguém para conversar, não quer sair de casa, e há meses
que não vamos ao teatro…enfim, nada que tu não conheças. O teu irmão Paulo
passeia a tua Tata, trata-lhe do pelo e é ele que se ocupa da ração, assim tenho menos saudades do mano, é o
que ele diz, mas no outro dia tive de esconder a chave do teu quarto, porque
andava a tirar fotografias à tua bateria, estás a ver para quê? Não estás? O
inter-rail, o inter-rail e não se cala com os itinerários, abre mapas,
espalha-os no chão, e passa mais horas no Google do que a estudar. Ele e a
Tata, a Tata e ele, parecem-me felizes, divertem-se e a tua Tata ladra quando
ele imita as gaivotas. A Teresa enche a sala de amigas e roupa fashion (será
uma boa economista, apesar do corte na semanada, o quarto dela continua ser uma
sucursal da Bershka), o pai diz que quando ela não está a dormir, passeia as minissaias e fala ao
telemóvel. A menina do papá continua
muito engraçada, alegre, está fazer-se uma bonita mulher, nos dias mais felizes
o teu pai diz que ela é parecida comigo, mas
a tua cabeça era melhor e gostavas de ler, ela toda caracóis, olhos e
gloss, vai para a escola passear, sem
azia, mãe, os stôres ainda não marcaram os testes, tomara já que o mano venha
de férias, porque não vou a Santos desde o verão. Estamos todos nas nossas
vidas e só esta semana as temperaturas começaram a baixar, tu sabes como eu
odeio o calor… As flores murcham numa semana. Tenho muitas turmas, muitos
alunos, horas intermináveis na escola, reuniões, papéis, decretos-lei,
diretores, matérias para preparar, testes, metas curriculares, coisas
que não te interessam, sabes que não sou de me queixar, mas estou, ou melhor,
estamos todos fartos do Crato, ainda há horários sem professores e professores
sem horário. Triste, muito triste. Tenho medo de não me reconhecer. Os miúdos
são o reflexo do que se passa em casa, os dias para eles são sempre iguais e a
escansão das sílabas métricas ou o estudo dos advérbios de predicado é-lhes tão
estrangeiro e distante como Harare ou Vancouver (lembraste quando jogávamos
scrabble e às cidades desconhecidas?). O tempo passa tão depressa, eu para aqui
a falar, a falar, como é meu hábito, eu sei, não me ouvem, à terceira frase já
desligaram, ou interromperam a perguntar o que era o jantar, o significado de
uma palavra difícil, o paradeiro dos ténis (como se os ténis andassem
sozinhos!). Talvez esta conversa te inspire e me escrevas uma carta, destas,
sem selo, a contar de ti, dos teus amigos, do teu dia, das namoradas???? Tens
comido bem? Andas bem agasalhado? Tens ido ao cinema? Precisas de dinheiro?
Como tens de gerir muito bem o teu dinheiro….Continuas a gostar do trabalho?
Organizas-te com as aulas na Faculdade? Tanta
pergunta, mãe! O coração tão apertado de mãe é assim para o secante e nós não são somos nenhuns bebés. Para mim,
serão sempre! É a minha condição –
tiveram azar, para além de mãe sou um ser humano e mulher. Pois, como tu
costumas dizer se um elefante incomoda
muita gente, uma mãe incomoda muito mais. Não gosto da comparação, mas talvez
tenhas razão. Adoro-te meu príncipe-mais-velho.
Juízo, ouviste?
Beijos meus. O pai
pede-te que lhe telefones, (a pagar no destino, sim, claro), os teus irmãos pensam muito em ti e a Tata já está menos chorosa – pudera, o teu irmão não lhe dá
paz .
Mais beijos da mãe,
daqueles repenicados à tia Custódia, ela gostava tanto de ti.
Beijos. Beijos
Os teus irmãos
fartam-se de gozar comigo, porque entre um livro e outro passeio no FaceBook,
mas não somos amigos – era só o que faltava!
(Gostaste da música que
escolhi?)
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