
Andrew Wyeth, Open and Closed
O Escritório (continuação)
Era eu a menina da casa. Nas tardes mais longas,
escondia-me no escritório que ficara resguardado do sol, durante a manhã, e sentava-me
na cadeira da secretária. As pernas penduradas, a rodar um círculo
perfeito, desenhado pelo balanço da minha força naquele engenho de madeira e mola de ferro rangente e gasto. Ao lado da secretária, a
janela e uns cortinados transparentes que deixavam entrar a luz do sol, ou da
sombra ocupavam metade da parede cor-de-rosa, adivinhava-se o laço encarnado na
esquadria, por trás da estante dos livros. Um móvel de madeira brilhante e sedosa, com riscas de vários castanhos, igual à secretária
e às cadeiras de braços, duas portas, prateleiras ao meio e três gavetas na
parte de baixo. Uns pés pesados e dourados rematavam as linhas direitas e suportavam o peso. Nunca lhe faltou o brilho, nem a limpeza. Não são contas do teu
rosário e eu, antes de saber ler, olhava-o de longe, encolhida de medo e
timidez, via os livros de lombadas largas azuis, verdes e castanhas, amparados
por umas cabeças assustadoras esculpidas em pau-preto, os bonecos de porcelana,
os rostos de crianças dentro de molduras prateadas e as caixas de várias cores, que não me pertenciam. Mas no silêncio que me acompanhava e, sob o olhar
atento do menino Jesus, eu atrevia-me, aproximava-me da estante e mexia nas
prateleiras que conseguia alcançar, pegava nos livros, sentia o papel rugoso
que os forrava, cheirava-os, abria as gavetas sem chave, espalhava as caixas no chão
encerado a alfazema. As mãos eram pequeninas, os livros escorregavam, caiam e
abriam-se, as caixas perdiam a compostura. Um dia, com um gesto mais rápido e medroso, desfiz
uma pastorinha, um patinho branco de bico dourado e o vidro que protegia do pó
a cara de uma criança sorridente. Um avô complacente salvou-me de uns açoites e
o escritório, depois de varridos os cacos, continuou a pertencer-me, desde que
a porta permanecesse aberta. Nos dias seguintes, não saí da cadeira que girava e chiava, observava as paisagens penduradas na parede, do outro lado da secretária, o
cinzeiro que combinava com o isqueiro, muito alinhados, em cima da mesa de
latão, os dois sofás estofados a brocado grosso de cor indefinida, cor de sujo,
e partia para as minhas histórias, sempre a imaginar conversas e pessoas. Os
brinquedos da secretária também me acompanhavam. No entanto, a estante,
imperturbável, com os seus tesouros, era o meu território proibido. A curiosidade era um tormento, entre uma
história inventada e uma piscadela de olho para as prateleiras cheias de
livros, eu pensava na maçã envenenada da Branca de Neve e na abóbora da Gata
Borralheira. A estante crescia, ocupava o espaço todo, os Reis Magos já não se mexiam e a tapeçaria deixou de me amedrontar, o mundo estava, agora, naqueles livros inteiros e quietos, que eu mal podia tocar. Não passaram muitas tardes até eu saltar da cadeira que rodava,
para A Guerra e Paz e O Crime do Padre Amaro. Quando aprendi a ler, enrolava-me
num daqueles sofás pardos, de orelhas salientes e decifrava os mistérios há
tanto tempo, ali, arrumados. Esquecia-me das outras histórias e brinquedos, o
tempo passava e sem perceber o escritório ia escurecendo. Ficava suspensa parágrafos, capítulos inteiros. Às vezes, da rua por
raros e descompassados momentos, ouvia o barulho mais rouco de um carro, a
campainha de uma bicicleta, o pregão do amolador, vozes, uma gargalhada, um
grito, o ladrar de um cão vadio, o rolar de uma carroça. A casa ficava
numa rua sossegada. O escritório era meu, o papel pardo que escondia alguns títulos era o meu único desafio. A maçã e a abóbora.
(continua)
Escritório-omphalos na infância, uma alfaia que fez abrir caminhos da vida. Excelente viagem arqueológica às entranhas cénicas do crescimento. É tão forte que dói. (Também me lembro da tontura infantil na cadeira rotativa, num escritório paterno rente ao Tejo.)
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