O exame de Ciências
Naturais
O calor
batia-lhe nas costas, conseguia ver a sua sombra desenhada no chão, a ponta do
pé direito encostada à cabeça, o ombro esquerdo colado a um dos lados da laje
rosada. Em redor, as vitrinas, as escadas, as paredes verdes. Uma janela com o
vidro cortado ao meio por um fio de telhas, a desafiar o céu, à sua frente. Esperava.
A sua ansiedade, uma vez, a salvar o miúdo. Chegar quarenta e cinco minutos
antes do exame foi quanto bastou para não o perder. A campainha tocara há
instantes e, naquele momento, precisou de uma fé, de acreditar num deus, uma
divindade que soprasse aos ouvidos do miúdo as respostas certas ao questionário
de muitas páginas. Sabia que o miúdo tinha um anjo da guarda. Como toda a
gente. Olhamos para o céu, gostamos de uma nuvem e escolhemos o anjo que nos
acompanhará a vida inteira. Sabia que os seus miúdos já tinham olhado para o
céu. Ciências Naturais, três anos de Terra, pedras, meio ambiente, cadeia
alimentar, corpo humano, doenças sexualmente transmissíveis. O miúdo esforçou-se.
Ela sentia-lhe o frio no estômago, a transpiração nas mãos. No caminho desejou
que o dia de hoje fosse feriado, nem lhe explicou que os santos e as revoluções
não apagam as responsabilidades. Ontem, antes de adormecer, disse-lhe que
estava nervoso, não te vou dizer se me
correu bem ou mal, não me perguntes nada, esqueceu-se de acrescentar é a vida que escolhemos. Esperava. Fugia
do sol, apoiou-se no pilar cinzento de pedra, reparou que o Scarlett das unhas
começava a estalar, desejou ter um computador, um ipad. Poderia trabalhar. Escrever
é tão difícil. Admirava os escritores, os músicos, os pintores. O trabalho
salva-nos, a arte também. Na tarde parada no seu tempo de mãe não passava
ninguém. Nada acontecia. Conseguia ouvir as conversas das funcionárias, a
telenovela, a receita de uma sobremesa rápida, uma irmã que morava em França
que não viera de férias. Esperava. Apareceu um miúdo muito bronzeado, perdido,
a perguntar pela professora com quem combinara encontrar-se, pode dizer-me as horas? Sabe onde é a sala
vinte? Uma miúda muito loira de minissaia de ganga pegou-lhe no braço e
levou-o. O director já chegou, vamos. Ouvia
pela terceira vez, dia doze, as aulas
começam dia doze, a funcionária que respondia tinha voz de locutora de televisão, uma permanente
apertada mostrava que estava preparada para o início do ano lectivo. Pensou no
miúdo, fazia hoje dezasseis anos, estava a enfrentar uma prova de fogo. Talvez,
a primeira. Os sentimentos confundiam-se.Tristeza, orgulho, alegria. Benvindo
ao mundo para maiores de dezasseis anos. Está a crescer. O miúdo, trinta
centímetros mais alto, aprendia as primeiras palavras. O telefone continuava a
tocar. O sol afastou-se um bocadinho, poderia sentar-se no muro mais fresco,
ver o movimento da cidade, ao fundo do átrio, num rectângulo estreito e alto.
Não percebia os contornos, mas via passar o ruído, homens, mulheres, crianças,
autocarros, automóveis. Na tarde quente o vento que mal levantava os vestidos e
os cabelos refrescava a ansiedade e a espera. Olhou para os quadrados perfeitos
do chão, a sua sombra tinha desaparecido. Um homem e uma mulher conversavam à
sua frente, olharam para ela, encolheram os ombros, franziram a testa. Não lhes
explicou nada. Começava a doer-lhe a mão. E a esferográfica? Teria o miúdo
trazido esferográfica? Com os dentes puxou as peles do polegar direito. Arrancou
uma pele mais a jeito e o sangue apareceu da cor da unha. As vozes eram barulho.
Incomodavam-na. Esperava.
Quando se
acorda com dezasseis anos, um exame numa tarde quente de Setembro é uma lição.
Ela esperava.
Excelente, excelente texto. "Na tarde parada no seu tempo de mãe não passava ninguém". Perdoe o comentário a frase tão ímpar, que me apetece tanto fazer : sim, não passava ninguém mas, na hipótese de Ele existir, passou por ali Deus certamente, e ali esteve. Parou por um pouco com os pés alinhados nos quadrados perfeitos e na sua invisibilidade acarinhou a espera e a ideia de escrita deste texto.
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