terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lugar número três.





Lugar número três.

    Marcou o livro na página cento e vinte e dois, “ Wallander sentiu-se irritado por ela se meter na conversa”, mais tarde perceberia a irritação de Wallander. Encostou a cabeça ao vidro e deixou-se ir, percebeu o calor que seria o dia seguinte, o céu tinha as marcas do sol e ao longo da estrada, desprendia-se da terra o castanho desbotado, o verde salpicado de azul anil e o  laranja aceso. Um Alentejo longo desviava-se do mar e roçava, sem pudor, aquele céu quente de um domingo de Agosto. Para trás, ficou o mar prateado, luminoso, as casas desordenadas, o areal estendido na preguiça da tarde de verão. As cores do fim de tarde confundiam-se com as luzes que se acendiam e os faróis que riscavam de encarnado a estrada cinzenta. O azul do céu escurecia a noite não tardava, o fogo do entardecer esmorecia no horizonte. Insistentes. As luzes da cidade aproximavam-se. O Tejo não tardaria. A sua rua viria em seguida. A casa abriria o silêncio, o cheiro leve a sândalo, as sombras desapareceriam, quando rodasse a chave na fechadura. A dor no peito continuava a fazer-lhe companhia, abrandou na estrada, diluiu-se no entardecer, mas voltou com o silêncio e o sândalo. Perdera a conta aos sonhos, às esperas, às expectativas. Fininhas. As dores perseguiam-na mais que a sombra, mais que o amor. Não percebia, não adiantaria cruzar os braços, fechar os olhos, encolher os olhos, esconder-se no fundo de uma gaveta. Não era estar só. Ser só. Arrumar a solidão. Não. Explica-se uma dor de cabeça com Paracetamol, como se resolve a dor de todos os dias? O peso? O medo? O que fazer a seguir? Pensas demais, dir-me-ias, se tivesses nascido inseto a tua vida seria breve, sem emoções, sem alegrias. Segue o teu caminho, lembra-te da poesia, dos dias de sol, das tuas vitórias, insistirias. Não te daria ouvidos. Nunca o fiz. Ergueu a cabeça, arrastou as malas para o canto da sala, aqueceu o jantar do miúdo. Abriu o correio. Nada de novo, também não estou à espera de notícias. Sim, chegámos bem e fizemos boa viagem. Não, não havia muito calor, sim… Ar condicionado, gente bem-educada. O miúdo dormiu tranquilo, recomeça a estudar amanhã. Claro, continuarei a telefonar todos os dias. Uma noite descansada. Até amanhã. Sentou-se a olhar para as mãos manchadas pelo tempo. Afastou a passagem do tempo, respirou fundo… amanhã, terça-feira, quarta-feira, acabar o trabalho, a vidinha marcada no calendário, encetar outra rotina. Aprenderia a respirar, cortaria o cabelo, veria os episódios gravados de True Detective, um filme ou outro, aguardaria o resultado dos exames. Que farei a seguir? Insolente, a dor voltava. Perfeita e redonda. Incómoda. Já é muito tarde, vai dormir. Não te esqueças de lavar os dentes.

Quando adormeceu ouviu o vento arrastar os contentores do lixo, ventoso, mas muito quente, o dia, amanhã, ainda é agosto, verão…

sábado, 16 de agosto de 2014

Resgresso à casa - o corredor (continuação)

Andrew Wieth




O corredor.

Regresso à casa. Entro pela porta principal de madeira, ferro e postigo de vidro rugoso. Os pés saltam o degrau de pedra e, um atrás do outro, desenham triângulos, quadrados e retângulos nos mosaicos pretos, brancos, cinzentos. A mancha regular desenhada com mestria era o longo corredor. Teria sete ou oito metros de comprimento, mais ou menos dois de largura e era por ele que a vida passava, entrava e se instalava. Eu e os meus pés pequeninos inventávamos mil histórias, viagens, partidas para destinos desenhados ao milímetro, impostos pelas dimensões de cada um dos mosaicos. De joelhos, contava as esquinas, as vezes que a cor preta se repetia, em que quadrado surgia a cor branca, abria as mãos e media os palmos que separavam a porta da rua, da porta do escritório, imaginava o que mais tarde percebi serem linhas diagonais, e corria  os indicadores pelo  rodapé, moldura  suave, lisa e fria fita cinzenta, que  separava a mancha escura do chão, do tecido claro esbranquiçado da escaiola da parede, rematado com os laços encarniçados, iguais, em todas as outras paredes da casa. Aquele longo corredor mudava de cor ao longo do dia. Ao longo do ano. Quem entrava na casa, nos dias frios e chuvosos, de inverno, sentia o conforto de um horizonte seco, quente e confortável de luz filtrada pelos vidros coloridos do postigo, que desenhava formas no preto mais sombrio e no branco mais frágil, dos mosaicos do chão. À direita, um bengaleiro com um espelho oval e ganchos de metal permitia pendurar, sem pressas, os casacos e os guarda-chuvas. Nos dias menos luminosos, aquela armação de madeira, espelho e ferro era a personagem principal das minhas histórias de fantasmas e lobisomens. Encostava-me à porta de madeira-mel  do escritório e via criaturas enormes, braços a agarrar seres sem forma, gotas de água do tamanho de lagos. Ficava quieta, calada e muda a admirar aquela gente extraordinária. Eu era a menina, única criança da casa, não apreciava bonecas, nem tachinhos, nem panelinhas entretinha-me a falar com tudo que em meu redor pudesse transformar em histórias com fadas, gigantes, e outras pessoas que só eu tinha o privilégio de ver e ouvir. O corredor não era o meu lugar da casa, mas era o sítio, que pelas suas dimensões, mais voltas ao mundo me permitia dar. Nos dias mais quentes de verão, aquele corredor era fresco, arejado e brilhante. As sombras eram substituídas por manchas coloridas que desfaziam o calor e o bafo quente do Suão. Nesses dias, sentava-me num banquinho a ver o chão mudar de cor, abrigada do calor, sem tempo e no silêncio, apenas, interrompido pelo ritmo das tarefas domésticas. Mas esta criança não se cansa de estar e falar sozinha? De facto, eu não estava só e não percebia a estranheza de falar sozinha. Se, mais tarde, os livros do escritório me salvaram e mantinham comigo conversas intermináveis, neste tempo, o corredor que mudava de cor e luz foi uma das minhas melhores companhias. A porta guarda-vento de vidros coloridos em semicírculo, as portas dos quartos, do escritório e da sala de jantar, de madeira mel, os vasos de ferro que escondiam o barro e as raízes dos fetos, das sempre-vivas e dos cartuchos, as floreiras de pé alto e uma cadeira de braços estofada compunham o corredor. Quem entrasse na casa não ficava indiferente às simetrias desenhadas no chão e nas paredes, ao viço das plantas, nem às cores dos vidros, que nos empurravam para a sala de estar, grande e solar  a completar a harmonia que se adivinhava, quando a porta número sessenta e seis, na rua Conselheiro Frederico Ramirez, se fechava.





 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Na esplanada





Na esplanada.

 Este ano o vento varre mais depressa as palavras, as gargalhadas diluem-se e as razões que, por vezes, se desencontram, desaparecem na temperatura que este ano desceu nas mesas e cadeiras onde todos os anos sentam o inverno e as dores que viveram. Todos os anos, há histórias diferentes, um elemento novo, um amigo acabado de chegar, uma sombra para contar, o peso de uma morte. Celebra-se um ciclo que acaba e fazem-se planos para o ciclo que virá no primeiro dia de setembro. Ela gostava daqueles encontros, com mais ou menos vento, as noites cálidas do Suão que tudo arrastava eram as suas preferidas. Não se expunha, contava histórias, nunca as suas, ria e fazia rir. Bebia um copo de vinho. Ajudava às gargalhadas e ouvia as gargalhadas dos outros. Este ano vem mais séria, mais fechada, mais triste. Ouve as histórias, partilha as gargalhadas, conta um, ou outro dia mais longo, esconde as lágrimas e senta-se no lugar mais afastado da mesa, numa ponta, numa cadeira que procura na esplanada cheia, é a última a chegar, às vezes, nem chega, olha em redor: tudo igual, repetido e igual. Resta-lhe o grande amor e respeito pelos amigos - não consegue esquecer o inverno longo, a espera interminável, as dores, a expectativa do que há de vir. Assusta-a  o início do mês que mais aprecia, o mês que sempre foi seu, as manhãs mais cinzentas, o sol mais pálido, aquela luz - o brilho mais tímido daquele mês sempre celebrado pelas suas  escolhas. Pensa no regresso, as rotinas que se inauguram - nunca são iguais - os exames do filho, o afastamento dos pais e a partida do homem, que no lugar de um gesto gentil,  lhe deixara um enorme vazio. Ela já sabia, adivinhara o fim, nas primeiras palavras, no primeiro toque, no primeiro entusiasmo. Acreditara na pele a entender-se com a sua pele, a novidade do desejo que vira nascer num corpo ainda tão cheio de alegrias, histórias e promessas. Encantara-se com o tempo que parecia que a tinha esquecido, o corpo de menina que despertara na roupa mais justa, no esquecimento da traição, na doença a partir, sem rasto. Deixara-se ir. Ela tão cética, tão segura, tão guerreira, lutadora, a melhor aluna, a amiga compreensiva, a menina das roupas arrumadas e de bom gosto. Deixara-se ir. Ele, mais tarde, quando ela lhe dissera que as suas noites nas férias eram conversas a fechar esplanadas, não acreditou, pensou no ritmo frenético que os tinha empurrado para a mesma cama, na primeira vez que se tocaram, ao de leve, no rodar da cadeira da discoteca onde tinham dançado a noite toda. Ela não sentiu a necessidade de lhe explicar nada, mas explicou. Num momento, naquele momento, nas dúvidas, na boçalidade da sua observação percebeu o mundo diferente em que viviam, a indiferença dele, a falta de mundo (perdoou-lhe e entendeu), não se tratava de falta de paixão, que nunca pensei em paixões, não estava nos meus planos uma alteração no meu quotidiano, uma quebra no meu dia organizado, um pouco frívolo e vulgar, mas disciplinado, conquistado com os meus dois pulsos. Sorria, a sua ingenuidade, a banalidade dos seus sonhos, da sua vida. Nas conversas, nenhuma das suas fraquezas ela lhes contaria. Temia o mês de setembro, este ano, partiria para a cidade mais cedo. Sabia que o verão lhe tinha sido leve e que a sua atitude de homem comum, o copo de gin tónico, a vitória do Benfica, uma noite como DJ lhe tinham bastado. Teriam? Como seria quando se encontrassem? Se encontrassem? Outra vez? Improvável! Talvez não. Num mês acontece uma vida, não tenho tempo, nem espaço para mais inseguranças. Os miúdos estão em primeiro lugar, vou voltar à escola, preciso de separar o lixo (metafórico, não é?), um livro para organizar, sonhos para alinhar. Não, tenho uma vida para viver - um projeto de vida para ordenar por ordem alfabética. Estou proibida de beber gin, por isso, não serei boa companhia. O que resta então? Não sei, talvez nada. Hoje, agora, nada. Prezo esta liberdade de mulher sem macho. Esta liberdade de poder escolher entre um bom livro e uma noite a dançar, sou a mulherzinha “chata”, gira, às vezes, mas tão vulgar, que no meu lugar do balcão, onde costumo estar, se eu lá não estiver, estará uma outra. Mais gira. Mais jovem. Menos complicada e que mora. Logo ali, ao virar da esquina. Talvez menos vulgar no seu top Zara e sandálias Seaside. Cabeça mais simples, menos, que não telefonará a desoras e que da vida terá as expectativas normais das mulheres normais,  apenas, uma vida normal. Como é costume, como as amigas. As primas. Eu sou uma mulher banal. Igual a todas as mulheres banais da minha geração. É claro, que nada disto é objeto de conversa na esplanada. Por pudor. Por amor. Por não ter interesse nenhum. Iremos ver a chuva de meteoritos, rir dos disparates que fazíamos, tentarei ficar mais alegre e esquecer que entre o inverno que passou e o que há de vir houve um verão ventoso. Nada de especial. Tudo igual. Banal. Como eu – uma mulher banal.

Daqui a pouco, a esplanada estará cheia de  amigos, fará um esforço para ser mais alegre, mais tolerante….Como sempre foi.

(Eu disse-te, talvez, tenha sido a primeira coisa que de mim fiz questão de dizer, que não tinha graça nenhuma. E é só. Talvez. Quanto baste.)
O telefone não para de tocar, sim, iremos todos para a esplanada, depois do jantar. Ah! Hoje é a minha vez de pagar os cafés? ‘Tá-se bem, lá estarei. Sim, correu bem, trabalhei a tarde toda. Até logo.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

E, no entanto, penso em ti.





E, no entanto, penso em ti.

Venho da praia, estou cansado, trago o sol vivo na pele, o desejo serenou. Tiro o sal num duche muito demorado, gosto da água a desfazer o gel de banho, rolos de espuma a percorrer-me o corpo. Aos poucos, o bronzeado aparece. O sol não me escalda a pele. Seco-me bem com o turco grosso. Cheira a lavado. Não me esqueço da loção après soleil. O desodorizante. Deixarei a barba para amanhã. Um dia de praia e umas amigas. Soltámos gargalhadas, passeámos pelo areal, uma amiga de cada lado, os meus olhos desviavam-se para os biquínis coloridos. Sou um homem temporariamente só, hoje, à beira-mar, não estive só. Fiz o que quis. Engulo um prato cheio de  um caldo de galinha, enrolo uma lâmina de queijo numa fatia de pão e deito-me. Ainda passo pelo espelho e gosto do que vejo. Gosto sempre. A cor da pele contrasta com o azul dos olhos. Um homem elegante, enfim, alguns vestígios do gin tónico, mas a pose um ângulo recto perfeito. Ajeito a almofada, estico as pernas e o lençol. Talvez a noite arrefeça. Acendo um cigarro, experimento um zapping, deixo-me levar pela música e as imagens de um filme antigo. Inclino a cabeça, jogo os olhos pela sombras do quarto arrumado, páro na janela, a persiana fechada, o vidro a deixar entrar o ar, as espirais do fumo dos meus cigarros a saírem. Sem destino. Baixo os olhos, e apesar da penumbra, consigo distinguir a enorme mancha de humidade. Muito escura. Muito espessa. Feia. É apenas uma mancha de humidade. Uma mancha negra num quarto de um prédio de apartamentos, vulgar, inócuo, no subúrbio. No subúrbio cinzento que cresceu, sem beleza, junto ao emaranhado de estradas. Longe da cidade. De repente, esqueço a praia, a cor dos biquínis, a cor da minha pele bronzeada. E vejo a minha vida parada, muito quieta, muito só, escorreita, naquela horrível mancha. Uma vida cinzenta num bairro de subúrbio. Estou desempregado, sim,  sei que foi uma opção, em breve voltarei a fazer o que sempre gostei de fazer. Em breve. Olho para trás, nunca o faço, evito o passado, mas a mancha empurrou-me para a realidade. A realidade?! Uma vida. Um emprego. Uma mulher, de vez em quando, nesta cama. Eu, de vez em quando, noutra cama qualquer. Um filho que mal conheço. O buraco no peito desde que a minha mãe partiu. A última, ou talvez tenha sido a penúltima mulher, que se deitou nesta cama disse-me que os homens só crescem, só se tornam adultos, depois de as  mães morrerem. Não achei graça nenhuma. Não ri. Continuo como sempre fui. Único. Senhor da minha vontade. Agora. Mais livre. Não gosto de prestar contas a ninguém e a minha mãe faz-me falta.Todos os dias. Penso nela. Sou o centro da minha própria saudade. E ela faz parte desse mundo. És um bom menino, ouvi-a dizer enternecida. Era um só. Sim, sou um bom homem. Acho que sou. O meu umbigo. Um homem adulto, temporariamente só, com síndrome de filho único, disseram-me. Nem sei o que isso significa. Não me interessa. O amor incondicional das mães tornam-nos egoístas? O sol e a lua no mesmo peito? As ideias feitas, prontas e inalteráveis. Intolerante. Ávido. Curioso. Palavras que conheço. De cor. Par coeur. Em francês soa melhor. Vaidoso. Um homem Incapaz da entrega total? Incapaz de amar? De se apaixonar? Mãe, tenho saudades tuas, serei, por isso, um homem adulto? Serei, agora, um homem adulto? Terei crescido? Já não caibo na moldura, mãe. Li, algures, num poema. A mancha de humidade é o quarto sombrio e abafado. Um quarto. Uma mancha escura. Irregular. Talvez a lixívia consiga apagar a mancha. Apagar esta vida mais cinzenta. Se esfregar com muita força, o branco da parede aparece e a vida voltará. Igual. Repetida em vinte e oito anos de noites loukas (com K, não há outra forma de escrever louka), balões de gin, água tónica, morangos. Muitos cigarros. Muitos amigos. Jantares, festas. Só amizade. De todas as cores. Mulheres diferentes em intervalos de tempo, mais ou menos, longos, a música no ar, o Benfica campeão, a pose de cavalheiro, a atitude de um gentleman, o espelho a dizer-lhe  que sim. Livre, sem compromissos, sem tristezas, sem mágoas. Pois é, a  solução é lavar a maldita mancha com muita lixívia. Amanhã, trato disso. Será a primeira coisa a fazer. Vou acender outro cigarro. Já perdi meia hora de filme. Comprarei um garrafão de lixívia, uma  escova rija, não me posso esquecer das luvas. Depois, passarei uma boa camada de creme pelas mãos. 

E, no entanto, penso em ti.