sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A casa - a cozinha.




A cozinha



Gosto de cozinhas, gosto de cozinhas grandes. Nas cozinhas pode fazer-se tudo, mesmo tudo, pensamentos mais picantes e vamos para uma das cenas mais fortes de Nove Semanas e Meia. Nas cozinhas aprende-se a cozinhar, conversa-se e com uma boa janela, pode-se fumar, ver quem passa e entrar na vidinha dos vizinhos. Todas as casas em que vivi tinham boas cozinhas, umas grandes, outras mais apertadas, cozinhas onde se podia beber um copo de vinho, decidir o futuro da nação, fazer teoria geral sobre o comportamento masculino. Gosto de conversar, enquanto faço a salada. Um copo de vinho tinto, uma mesa e as relações humanas a fazerem sentido. O tempero fica sempre bem q.b. Talvez o gosto pelas cozinhas esteja ligado ao tempo em que vivi na casa. Sentava-me numa cadeira baixinha de fundo de palhinha e ficava a olhar para o movimento das mãos que cortavam as batatas, tiravam a cabeça e as tripas ao peixe, batiam o bolo de chocolate, as claras em castelo, mexiam com uma colher de pau o sabão azul e branco, que se desfazia na panela e deixava no ar o cheiro a roupa lavada. A cozinha era comprida, tinha uma mesa larga de madeira com um estrado, a pia era de pedra encarnada, torneiras douradas por baixo de um suporte de madeira, que na casa se chamava espeteira e arrumava as tampas dos tachos e das panelas. A pedra encarnada tinha uns sulcos por onde a água da loiça e dos legumes lavados escorria. Com o indicador eu conduzia estes ribeirinhos e furava as barras de sabão. As mãos enxaguavam os rolos de esparto e de espuma. Ficava em pé em cima de um banco, num equilíbrio, que assustava os adultos. A pia, os alguidares e a tábua de cortar os legumes eram um universo de histórias e conversas com quem na minha imaginação aparecesse. Não podia aproximar-me do fogão, um enorme papão, que me assustava e vivia nos piores pesadelos da minha avó. Em cima do banco, a molhar-me, a chapinhar, a fazer uma sopa com os nomes esquisitos, que ouvia ler no Pantagruel, ou sentada na minha cadeirinha de palhinha, era na cozinha que eu gostava de passar as tardes de verão, as manhãs de um almoço para as visitas e as sextas de barrela. Cuidado com a menina, diziam quando um movimento maior tornava a cozinha a divisão mais importante da casa. Numa das paredes, uma janela de vidro branco e translúcido, um vaso com uma trepadeira de folha curta, impedia que a janela se fechasse, durante o dia. Ao lado, uma porta branca e grande e entrava-se na casa de banho. Outro lugar mágico de luz, azulejos brancos, uma banheira com pés e um espelho que o vapor quente foi gastando. Ao lado do fogão proibido, havia um buraco escuro e sem ar. Um armário com chão e teto, onde dois grandes alguidares de barro curavam a carne do porco e o toucinho. Cheirava, quase sempre, a chouriço e azeitonas. Duas prateleiras compridas serviam a cozinha. Umas latas de alumínio guardavam o assucar, o arroz, a massa e a farinha. Os ovos, o saco do pão e o ramo dos orégãos, protegidos da luz e do calor, também se guardavam no buraco. Gostava daquele buraco e de enterrar as mãos no sal. O vão entre as prateleiras e a parede caiada era o esconderijo dos ladrões de Ali-Babá. Quando o inverno era mais rigoroso e chuvoso era preciso cuidar do buraco, umas telhas partidas numa zaragata de gatos deixavam entrar a chuva. Ainda oiço o barulho das gotas grossas da chuva  a cair na bacia de esmalte e sinto o cheiro mais agressivo a bafio. O buraco era o fim do mundo na cozinha. Não era medrosa, mas aquele fim de tudo, nos dias mais curtos, de frio e vento, era o castigo certo para os ladrões, bruxas e fantasmas das histórias que me contavam e inventava. Muitos dias, antes de me encantar com os livros, fiquei sentada, muito calada a ouvir o cozer da sopa e o estalar das brasas no ferro de aço e pega de madeira. Às vezes, fecho os olhos e consigo ver a mesa de madeira, a pedra encarnada, a travessa da fruta, o saco bordado do pão, a cadeira de palhinha, a loiça de cores alegres a escorrer, o pote de barro vidrado das azeitonas e o fogão proibido. Uma outra porta, branca do lado de dentro e verde  escuro, do lado de fora, um trinco rijo, que eu não conseguia abrir, separavam a cozinha do quintal.

(continua)



5 comentários:

  1. Tão bonito. Que portento descritivo. Pede-se mais!

    ResponderEliminar
  2. Até eu estava nessa cozinha, contigo. Beijo grande. Excelente texto.

    ResponderEliminar
  3. A escrita é o encanto de sempre, agora essa tua memória é algo do outro mundo. Aguardo a continuação

    ResponderEliminar
  4. A escrita é o encanto de sempre, agora essa tua memória é algo do outro mundo. Aguardo a continuação

    ResponderEliminar