A cozinha
Gosto de cozinhas,
gosto de cozinhas grandes. Nas cozinhas pode fazer-se tudo, mesmo tudo,
pensamentos mais picantes e vamos para uma das cenas mais fortes de Nove
Semanas e Meia. Nas cozinhas aprende-se a cozinhar, conversa-se e com uma boa
janela, pode-se fumar, ver quem passa e entrar na vidinha dos vizinhos. Todas as
casas em que vivi tinham boas cozinhas, umas grandes, outras mais apertadas,
cozinhas onde se podia beber um copo de vinho, decidir o futuro da nação, fazer
teoria geral sobre o comportamento masculino. Gosto de conversar, enquanto faço
a salada. Um copo de vinho tinto, uma mesa e as relações humanas a fazerem
sentido. O tempero fica sempre bem q.b. Talvez o gosto pelas cozinhas esteja
ligado ao tempo em que vivi na casa. Sentava-me
numa cadeira baixinha de fundo de palhinha e ficava a olhar para o movimento
das mãos que cortavam as batatas, tiravam a cabeça e as tripas ao peixe, batiam
o bolo de chocolate, as claras em castelo, mexiam com uma colher de pau o sabão
azul e branco, que se desfazia na panela e deixava no ar o cheiro a roupa
lavada. A cozinha era comprida, tinha uma mesa larga de madeira com um estrado,
a pia era de pedra encarnada, torneiras douradas por baixo de um suporte de
madeira, que na casa se chamava
espeteira e arrumava as tampas dos tachos e das panelas. A pedra encarnada
tinha uns sulcos por onde a água da loiça e dos legumes lavados escorria. Com o
indicador eu conduzia estes ribeirinhos e furava as barras de sabão. As mãos
enxaguavam os rolos de esparto e de espuma. Ficava em pé em cima de um banco,
num equilíbrio, que assustava os adultos. A pia, os alguidares e a tábua de
cortar os legumes eram um universo de histórias e conversas com quem na minha
imaginação aparecesse. Não podia aproximar-me do fogão, um enorme papão, que me
assustava e vivia nos piores pesadelos da minha avó. Em cima do banco, a
molhar-me, a chapinhar, a fazer uma sopa com os nomes esquisitos, que ouvia ler
no Pantagruel, ou sentada na minha cadeirinha de palhinha, era na cozinha que
eu gostava de passar as tardes de verão, as manhãs de um almoço para as visitas
e as sextas de barrela. Cuidado com a
menina, diziam quando um movimento maior tornava a cozinha a divisão mais
importante da casa. Numa das paredes,
uma janela de vidro branco e translúcido, um vaso com uma trepadeira de folha
curta, impedia que a janela se fechasse, durante o dia. Ao lado, uma porta
branca e grande e entrava-se na casa de banho. Outro lugar mágico de luz,
azulejos brancos, uma banheira com pés e um espelho que o vapor quente foi
gastando. Ao lado do fogão proibido, havia um buraco escuro e sem ar. Um
armário com chão e teto, onde dois grandes alguidares de barro curavam a carne
do porco e o toucinho. Cheirava, quase sempre, a chouriço e azeitonas. Duas
prateleiras compridas serviam a cozinha. Umas latas de alumínio guardavam o assucar, o arroz, a massa e a farinha.
Os ovos, o saco do pão e o ramo dos orégãos, protegidos da luz e do calor,
também se guardavam no buraco. Gostava daquele buraco e de enterrar as mãos no
sal. O vão entre as prateleiras e a parede caiada era o esconderijo dos ladrões
de Ali-Babá. Quando o inverno era mais rigoroso e chuvoso era preciso cuidar do
buraco, umas telhas partidas numa zaragata de gatos deixavam entrar a chuva.
Ainda oiço o barulho das gotas grossas da chuva a cair na bacia de esmalte e sinto o
cheiro mais agressivo a bafio. O buraco era o fim do mundo na cozinha. Não era
medrosa, mas aquele fim de tudo, nos dias mais curtos, de frio e vento, era o
castigo certo para os ladrões, bruxas e fantasmas das histórias que me contavam
e inventava. Muitos dias, antes de me encantar com os livros, fiquei sentada,
muito calada a ouvir o cozer da sopa e o estalar das brasas no ferro de aço e
pega de madeira. Às vezes, fecho os olhos e consigo ver a mesa de madeira, a pedra
encarnada, a travessa da fruta, o saco bordado do pão, a cadeira de palhinha, a
loiça de cores alegres a escorrer, o pote de barro vidrado das azeitonas e o
fogão proibido. Uma outra porta, branca do lado de dentro e verde escuro, do lado de fora, um trinco rijo, que
eu não conseguia abrir, separavam a cozinha do quintal.
(continua)
Tão bonito. Que portento descritivo. Pede-se mais!
ResponderEliminarMuito obrigada, minha amiga.
ResponderEliminarAté eu estava nessa cozinha, contigo. Beijo grande. Excelente texto.
ResponderEliminarA escrita é o encanto de sempre, agora essa tua memória é algo do outro mundo. Aguardo a continuação
ResponderEliminarA escrita é o encanto de sempre, agora essa tua memória é algo do outro mundo. Aguardo a continuação
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