quarta-feira, 31 de julho de 2013

A casa





                                      A casa

(O quintal)

        A porta de madeira tinha dois enormes postigos de ferro e vidro. Olhava através deles o mundo da rua pouco movimentada e o corredor de mosaicos, pretos, brancos e cinzentos, luzidios e alinhados. A porta tinha uma mão e uma esfera de ferro. A mão era muito feia e ao longo dos anos aguentou várias camadas de tinta prateada. A tinta não podia estalar, nem acastanhar-se de ferrugem. Uma mão e um mundo sempre bem pintados, cor de chumbo, que anunciavam as visitas e o carteiro. Os postigos eram de vidro rugoso azul-escuro e verde-garrafa e protegiam do frio e dos olhos que se atreviam. Castanha e maciça, a porta da casa sessenta e seis, na rua Conselheiro Frederico Ramirez. Uma porta, dois retângulos de vidro, uma maçaneta, um número a preto e branco e entrava-se nesta casa. Era a casa dos tempos de bibe, brincadeiras, histórias, fantasmas, flores, colo e, mais tarde, livros. Cheirava a alfazema e açúcar queimado. A  casa dos meus avós. Era uma casa feliz, movimentada e fresca. Quando se entrava e pisava os mosaicos do corredor, admiravam-se as plantas em vasos de faiança com desenhos de flores e pessoas e uma porta de vidros coloridos que abria a sala principal. No corredor comprido,  de um lado e de outro, as portas sempre fechadas dos quartos, da sala de jantar que só se abria para as visitas muito importantes e do escritório. As fechaduras e os puxadores das portas eram de ouro polido e brilhante. Um líquido cor-de-rosa e as páginas d’ O Século faziam magia, eu só percebia as mãos tisnadas. Paredes rosadas, pintadas com mestria. Um traço vermelho sangue, quase castanho, atava as pontas de um laço a meio das paredes da sala maior. Uma sala de luz, mesas, uma telefonia, cadeiras de fundo de palhinha e cabedal, aparadores, uma coluna de madeira que suportava um feto, jarras com flores, um armário de portas de arame a proteger o pão-de-ló e a marmelada, uma estante pintada de castanho e forrada a papel. Tudo acontecia nesta sala. Uma das paredes era de vidro e abria-se para o quintal, para o alegrete: uma trepadeira de cabelos verdes sem pente e bagas vermelhas, roseiras, catos e bichos-de-conta. No verão, num mês como este, o quintal era muito fresco - limonada, pêssegos, pão caseiro com manteiga, o colo do meu avô, o jornal aberto no chão, os gatos que se passeavam nos muros e um vestido de bordado inglês. O fim das tardes de verão, no quintal da sala onde tudo acontecia. À noite acendia-se a luz de fora e jantava-se na penumbra, fugíamos dos mosquitos e do calor do suão. Na mesa redonda, encostada a uma das ‘folhas’ de vidro da porta principal, esticava-se uma toalha branca, arrumavam-se as travessas com os carapaus fritos, o arroz de tomate e a salada, uma garrafa de vinho, um jarro de água e a cesta do pão. Eu não comia, mas via o reflexo do vinho a manchar a toalha branca e ouvia as conversas dos adultos, havia muita gente à volta da mesa e antes de anoitecer já se descava a fruta e arrumava a loiça na cozinha. A noite começava ainda de dia e as conversas arrastavam-se até à chegada do céu enluarado.
Nos meses de inverno, quando chovia e fazia muito frio eu encostava a cara aos vidros, com a respiração  desenhava o sol e barcos à vela, durante horas via o ping-ping da chuva. O inverno trazia o arco-íris, a roupa secar nas costas das cadeiras à roda das mesas e a braseira do fogo aos bocadinhos. Nos dias mais sombrios, a luz dos candeeiros iluminava as lajes molhadas do quintal da sala principal da casa.
(continua)

1 comentário:

  1. Ai, aquela mão de ferro a agarrar o mundo...
    Escrito com os olhos da alma. Lindíssimo, excelente texto.

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