terça-feira, 6 de maio de 2014

Pensar. Impensável




289. De vez em quando o espírito retira-se-nos do corpo e deixa-nos apenas com a sua carcaça. É o ensaio para quando o deixar de vez. Retira-se e leva consigo interesses, projectos, convicções. E entusiasmos. Hábitos. Gosto pelo estudo, leituras, o simples interesse na compra de um fato novo para render o que já está no fio, uma ida ao cinema que exige sair-se de casa e do sítio em que se está acomodado, de ir dar uma volta para desentorpecer, de telefonar a alguém para apenas conversar. O computador programado e progressista diz coisas horríveis dessa apatia e vencidismo. Mas quem tem culpa disso não somo nós e é a própria vida. Ela abastece-nos do que nos é preciso quando é a hora do viver a tempo inteiro. E ela retira-nos  tudo quanto nos deu, quando é a hora de já não servirmos. Quanta coisa não utilizamos e pomos um dia de parte, quando já não tem préstimo. Uma máquina, um martelo, uma ideia. A vida serviu-se de nós para sermos em actividade útil, põe-nos de parte quando já não. Seria justo que a morte viesse interromper o que em nós fosse ainda vivente e praticável? Preparação para grande hora. É isso. Esgotar tudo o que em nós ainda houver para que reste apenas o despojo para a morte levar. De vez em quando o espírito retira-se. E é então que se torna viável ou compreensível que o destino nos retire o resto.

 

(Vergílio Ferreira, Pensar,1ªedição Quetzal 2013,pgs. 164/165)

 




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