289. De vez em quando o espírito
retira-se-nos do corpo e deixa-nos apenas com a sua carcaça. É o ensaio para
quando o deixar de vez. Retira-se e leva consigo interesses, projectos,
convicções. E entusiasmos. Hábitos. Gosto pelo estudo, leituras, o simples
interesse na compra de um fato novo para render o que já está no fio, uma ida
ao cinema que exige sair-se de casa e do sítio em que se está acomodado, de ir
dar uma volta para desentorpecer, de telefonar a alguém para apenas conversar.
O computador programado e progressista diz coisas horríveis dessa apatia e
vencidismo. Mas quem tem culpa disso não somo nós e é a própria vida. Ela
abastece-nos do que nos é preciso quando é a hora do viver a tempo inteiro. E
ela retira-nos tudo quanto nos deu, quando
é a hora de já não servirmos. Quanta coisa não utilizamos e pomos um dia de
parte, quando já não tem préstimo. Uma máquina, um martelo, uma ideia. A vida
serviu-se de nós para sermos em actividade útil, põe-nos de parte quando já
não. Seria justo que a morte viesse interromper o que em nós fosse ainda
vivente e praticável? Preparação para grande hora. É isso. Esgotar tudo o que em
nós ainda houver para que reste apenas o despojo para a morte levar. De vez em
quando o espírito retira-se. E é então que se torna viável ou compreensível que
o destino nos retire o resto.
(Vergílio Ferreira,
Pensar,1ªedição Quetzal 2013,pgs.
164/165)
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