sexta-feira, 2 de maio de 2014

O calor a descer a avenida




 

 
 
O calor a descer a avenida.
Uma avenida a descer, os carros a apitar, o semáforo a mudar e no chão aquela névoa, indefinida, que desfaz as linhas e os ângulos  da cidade aprumada, muito quente e soalheira, a pedir sombra e fresco. Ao rio. Lá em baixo. Tranquilo. Uma faixa de um azul de muitos azuis. Sequiosa, a cidade que  pede água, uma sombra mais serena. Ao longo da avenida já balançam ancas vestidas com sedas leves, camisas brancas desengravatadas e casacos presos no polegar em gancho. O sol a mostrar-se nas lentes espelhadas, as cabeças mais pequenas protegidas - pontos azuis, amarelos, encarnados. Descem a avenida muito depressa, mais devagar, passo curto, passo mais largo. Sentam-se os rostos mais crestados, enrugados, olhares, sem viço, perdidos num qualquer horizonte, pés perdidos, cansados, braços caídos, as costas dobradas. O cansaço, o calor, a fome, parados nos bancos da avenida que desce. Ao lado, um linguajar, as palmas das mãos a alisar um mapa. À frente, no chão, um casal, ganha balanço, as mãos entrelaçadas, o desejo desenhado nos olhares que se tocam, mais um beijo e a avenida para descer. Flores nos vestidos decotados. Os homens que param, latejam-lhes as têmporas nas pregas das saias coloridas, que não lhes pertencem. Assobios, um ou outro. As árvores recortadas no céu. Uma cabeça de cavalo na nuvem mais larga, uma mão estendida, pequenina, num traço de vapor mais distante. Mais alto. Não há uma brisa, um hálito fresco de mentol, um arrepio na pele, de uma mão a acariciar um pescoço, uma ponta de ar mais fino a entrar pelo buraco da camisa. A descer a avenida. Uma voz mais irritada, um carro mais veloz. O autocarro que não parou, cabeças diferentes, muitas, anónimas a partilhar o varão metálico e a sexta-feira. Querem chegar a casa. Descem a avenida. Atravessam um largo, talvez o rio, ou uma rua. Umas escadas de madeira já gastas a deixar passar o ar quente, as baratas, o cheiro do jantar. Desço, por fim, a avenida, deixo para trás uma tarde muito quente. Fica lá atrás, apenas, mais uma tarde, muito quente. Nada muito importante, nem precioso.
Só o calor, o calor a descer a avenida.
 

 

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