O calor a descer a avenida.
Uma avenida a descer, os carros a apitar, o semáforo a mudar
e no chão aquela névoa, indefinida, que desfaz as linhas e os ângulos da cidade aprumada, muito quente e soalheira,
a pedir sombra e fresco. Ao rio. Lá em baixo. Tranquilo. Uma faixa de um azul de
muitos azuis. Sequiosa, a cidade que pede água, uma sombra mais serena. Ao longo da avenida
já balançam ancas vestidas com sedas leves, camisas brancas desengravatadas e
casacos presos no polegar em gancho. O sol a mostrar-se nas lentes espelhadas,
as cabeças mais pequenas protegidas - pontos azuis, amarelos, encarnados.
Descem a avenida muito depressa, mais devagar, passo curto, passo mais largo. Sentam-se
os rostos mais crestados, enrugados, olhares, sem viço, perdidos num qualquer
horizonte, pés perdidos, cansados, braços caídos, as costas dobradas. O
cansaço, o calor, a fome, parados nos bancos da avenida que desce. Ao lado, um linguajar,
as palmas das mãos a alisar um mapa. À frente, no chão, um casal, ganha balanço, as
mãos entrelaçadas, o desejo desenhado nos olhares que se tocam, mais um beijo e
a avenida para descer. Flores nos vestidos decotados. Os homens que param,
latejam-lhes as têmporas nas pregas das saias coloridas, que não lhes pertencem.
Assobios, um ou outro. As árvores recortadas no céu. Uma cabeça de cavalo na
nuvem mais larga, uma mão estendida, pequenina, num traço de vapor mais
distante. Mais alto. Não há uma brisa, um hálito fresco de mentol, um arrepio
na pele, de uma mão a acariciar um pescoço, uma ponta de ar mais fino a entrar
pelo buraco da camisa. A descer a avenida. Uma voz mais irritada, um carro mais
veloz. O autocarro que não parou, cabeças diferentes, muitas, anónimas a partilhar
o varão metálico e a sexta-feira. Querem chegar a casa. Descem a avenida. Atravessam um largo, talvez o rio, ou uma rua. Umas escadas de madeira
já gastas a deixar passar o ar quente, as baratas, o cheiro do jantar. Desço,
por fim, a avenida, deixo para trás uma tarde muito quente. Fica lá atrás,
apenas, mais uma tarde, muito quente. Nada muito importante, nem precioso.
Só o calor, o calor a descer a avenida.
Sem comentários:
Enviar um comentário