E, no
entanto, penso em ti.
Venho da
praia, estou cansado, trago o sol vivo na pele, o desejo serenou. Tiro o sal num
duche muito demorado, gosto da água a desfazer o gel de banho, rolos de espuma
a percorrer-me o corpo. Aos poucos, o bronzeado aparece. O sol não me escalda a
pele. Seco-me bem com o turco grosso. Cheira a lavado. Não me esqueço da loção après soleil. O desodorizante. Deixarei
a barba para amanhã. Um dia de praia e umas amigas. Soltámos
gargalhadas, passeámos pelo areal, uma amiga de cada lado, os meus olhos
desviavam-se para os biquínis coloridos. Sou um homem temporariamente só, hoje,
à beira-mar, não estive só. Fiz o que quis. Engulo um prato cheio de um caldo de galinha, enrolo uma lâmina de
queijo numa fatia de pão e deito-me. Ainda passo pelo espelho e gosto do que
vejo. Gosto sempre. A cor da pele contrasta com o azul dos olhos. Um homem
elegante, enfim, alguns vestígios do gin tónico, mas a pose um ângulo recto
perfeito. Ajeito a almofada, estico as pernas e o lençol. Talvez a noite
arrefeça. Acendo um cigarro, experimento um zapping, deixo-me
levar pela música e as imagens de um filme antigo. Inclino a cabeça, jogo os
olhos pela sombras do quarto arrumado, páro na janela, a persiana fechada, o
vidro a deixar entrar o ar, as espirais do fumo dos meus cigarros a saírem. Sem
destino. Baixo os olhos, e apesar da penumbra, consigo distinguir a enorme mancha
de humidade. Muito escura. Muito espessa. Feia. É apenas uma mancha de
humidade. Uma mancha negra num quarto de um prédio de apartamentos,
vulgar, inócuo, no subúrbio. No subúrbio cinzento que cresceu, sem beleza,
junto ao emaranhado de estradas. Longe da cidade. De repente, esqueço a praia,
a cor dos biquínis, a cor da minha pele bronzeada. E vejo a minha vida parada,
muito quieta, muito só, escorreita, naquela horrível mancha. Uma
vida cinzenta num bairro de subúrbio. Estou desempregado, sim, sei que foi
uma opção, em breve voltarei a fazer o que sempre gostei de fazer. Em breve.
Olho para trás, nunca o faço, evito o passado, mas a mancha
empurrou-me para a realidade. A realidade?! Uma vida. Um emprego. Uma mulher, de
vez em quando, nesta cama. Eu, de vez em quando, noutra cama qualquer. Um filho
que mal conheço. O buraco no peito desde que a minha mãe partiu. A última, ou
talvez tenha sido a penúltima mulher, que se deitou nesta cama disse-me que os
homens só crescem, só se tornam adultos, depois de as mães morrerem. Não achei
graça nenhuma. Não ri. Continuo como sempre fui. Único. Senhor da
minha vontade. Agora. Mais livre. Não gosto de prestar contas a ninguém e a
minha mãe faz-me falta.Todos os dias. Penso nela. Sou o centro da minha
própria saudade. E ela faz parte desse mundo. És um bom menino, ouvi-a dizer enternecida. Era um só. Sim, sou um
bom homem. Acho que sou. O meu umbigo. Um homem adulto,
temporariamente só, com síndrome de filho único, disseram-me. Nem sei o
que isso significa. Não me interessa. O amor incondicional das mães tornam-nos
egoístas? O sol e a lua no mesmo peito? As ideias feitas, prontas e inalteráveis. Intolerante.
Ávido. Curioso. Palavras que conheço. De cor. Par coeur. Em francês soa
melhor. Vaidoso. Um homem Incapaz da entrega total? Incapaz de amar? De se
apaixonar? Mãe, tenho saudades tuas, serei, por isso, um homem adulto? Serei,
agora, um homem adulto? Terei crescido? Já
não caibo na moldura, mãe. Li, algures, num poema. A mancha de humidade é o quarto sombrio e abafado. Um quarto. Uma mancha
escura. Irregular. Talvez a lixívia consiga apagar a mancha. Apagar esta vida
mais cinzenta. Se esfregar com muita força, o branco da parede aparece e a vida
voltará. Igual. Repetida em vinte e oito anos de noites loukas (com K, não há
outra forma de escrever louka), balões de gin, água tónica, morangos. Muitos
cigarros. Muitos amigos. Jantares, festas. Só amizade. De todas as cores. Mulheres
diferentes em intervalos de tempo, mais ou menos, longos, a música no ar, o
Benfica campeão, a pose de cavalheiro, a atitude de um gentleman, o espelho a
dizer-lhe que sim. Livre, sem compromissos, sem tristezas, sem mágoas. Pois é, a solução é lavar a maldita mancha com muita lixívia. Amanhã, trato
disso. Será a primeira coisa a fazer. Vou acender outro cigarro. Já perdi meia
hora de filme. Comprarei um garrafão de lixívia, uma escova rija, não me posso
esquecer das luvas. Depois, passarei uma boa camada de creme pelas mãos.
E, no
entanto, penso em ti.
Retrato bem conseguido do latino. O Édipo a espreitar e o espelho a dizer que sim, tudo manchado pela humidade e pelo quotidiano desencorajador. Gostei!...
ResponderEliminarBelíssimo, como sempre gostei dos teus retratos realistas, a bordar o expressionismo!
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