terça-feira, 12 de agosto de 2014

Na esplanada





Na esplanada.

 Este ano o vento varre mais depressa as palavras, as gargalhadas diluem-se e as razões que, por vezes, se desencontram, desaparecem na temperatura que este ano desceu nas mesas e cadeiras onde todos os anos sentam o inverno e as dores que viveram. Todos os anos, há histórias diferentes, um elemento novo, um amigo acabado de chegar, uma sombra para contar, o peso de uma morte. Celebra-se um ciclo que acaba e fazem-se planos para o ciclo que virá no primeiro dia de setembro. Ela gostava daqueles encontros, com mais ou menos vento, as noites cálidas do Suão que tudo arrastava eram as suas preferidas. Não se expunha, contava histórias, nunca as suas, ria e fazia rir. Bebia um copo de vinho. Ajudava às gargalhadas e ouvia as gargalhadas dos outros. Este ano vem mais séria, mais fechada, mais triste. Ouve as histórias, partilha as gargalhadas, conta um, ou outro dia mais longo, esconde as lágrimas e senta-se no lugar mais afastado da mesa, numa ponta, numa cadeira que procura na esplanada cheia, é a última a chegar, às vezes, nem chega, olha em redor: tudo igual, repetido e igual. Resta-lhe o grande amor e respeito pelos amigos - não consegue esquecer o inverno longo, a espera interminável, as dores, a expectativa do que há de vir. Assusta-a  o início do mês que mais aprecia, o mês que sempre foi seu, as manhãs mais cinzentas, o sol mais pálido, aquela luz - o brilho mais tímido daquele mês sempre celebrado pelas suas  escolhas. Pensa no regresso, as rotinas que se inauguram - nunca são iguais - os exames do filho, o afastamento dos pais e a partida do homem, que no lugar de um gesto gentil,  lhe deixara um enorme vazio. Ela já sabia, adivinhara o fim, nas primeiras palavras, no primeiro toque, no primeiro entusiasmo. Acreditara na pele a entender-se com a sua pele, a novidade do desejo que vira nascer num corpo ainda tão cheio de alegrias, histórias e promessas. Encantara-se com o tempo que parecia que a tinha esquecido, o corpo de menina que despertara na roupa mais justa, no esquecimento da traição, na doença a partir, sem rasto. Deixara-se ir. Ela tão cética, tão segura, tão guerreira, lutadora, a melhor aluna, a amiga compreensiva, a menina das roupas arrumadas e de bom gosto. Deixara-se ir. Ele, mais tarde, quando ela lhe dissera que as suas noites nas férias eram conversas a fechar esplanadas, não acreditou, pensou no ritmo frenético que os tinha empurrado para a mesma cama, na primeira vez que se tocaram, ao de leve, no rodar da cadeira da discoteca onde tinham dançado a noite toda. Ela não sentiu a necessidade de lhe explicar nada, mas explicou. Num momento, naquele momento, nas dúvidas, na boçalidade da sua observação percebeu o mundo diferente em que viviam, a indiferença dele, a falta de mundo (perdoou-lhe e entendeu), não se tratava de falta de paixão, que nunca pensei em paixões, não estava nos meus planos uma alteração no meu quotidiano, uma quebra no meu dia organizado, um pouco frívolo e vulgar, mas disciplinado, conquistado com os meus dois pulsos. Sorria, a sua ingenuidade, a banalidade dos seus sonhos, da sua vida. Nas conversas, nenhuma das suas fraquezas ela lhes contaria. Temia o mês de setembro, este ano, partiria para a cidade mais cedo. Sabia que o verão lhe tinha sido leve e que a sua atitude de homem comum, o copo de gin tónico, a vitória do Benfica, uma noite como DJ lhe tinham bastado. Teriam? Como seria quando se encontrassem? Se encontrassem? Outra vez? Improvável! Talvez não. Num mês acontece uma vida, não tenho tempo, nem espaço para mais inseguranças. Os miúdos estão em primeiro lugar, vou voltar à escola, preciso de separar o lixo (metafórico, não é?), um livro para organizar, sonhos para alinhar. Não, tenho uma vida para viver - um projeto de vida para ordenar por ordem alfabética. Estou proibida de beber gin, por isso, não serei boa companhia. O que resta então? Não sei, talvez nada. Hoje, agora, nada. Prezo esta liberdade de mulher sem macho. Esta liberdade de poder escolher entre um bom livro e uma noite a dançar, sou a mulherzinha “chata”, gira, às vezes, mas tão vulgar, que no meu lugar do balcão, onde costumo estar, se eu lá não estiver, estará uma outra. Mais gira. Mais jovem. Menos complicada e que mora. Logo ali, ao virar da esquina. Talvez menos vulgar no seu top Zara e sandálias Seaside. Cabeça mais simples, menos, que não telefonará a desoras e que da vida terá as expectativas normais das mulheres normais,  apenas, uma vida normal. Como é costume, como as amigas. As primas. Eu sou uma mulher banal. Igual a todas as mulheres banais da minha geração. É claro, que nada disto é objeto de conversa na esplanada. Por pudor. Por amor. Por não ter interesse nenhum. Iremos ver a chuva de meteoritos, rir dos disparates que fazíamos, tentarei ficar mais alegre e esquecer que entre o inverno que passou e o que há de vir houve um verão ventoso. Nada de especial. Tudo igual. Banal. Como eu – uma mulher banal.

Daqui a pouco, a esplanada estará cheia de  amigos, fará um esforço para ser mais alegre, mais tolerante….Como sempre foi.

(Eu disse-te, talvez, tenha sido a primeira coisa que de mim fiz questão de dizer, que não tinha graça nenhuma. E é só. Talvez. Quanto baste.)
O telefone não para de tocar, sim, iremos todos para a esplanada, depois do jantar. Ah! Hoje é a minha vez de pagar os cafés? ‘Tá-se bem, lá estarei. Sim, correu bem, trabalhei a tarde toda. Até logo.

3 comentários:

  1. Gosto!!!! Gosto de teu 'ar leve' nessa profunda introspectiva. A banalidade como encaras a tua força que de banal nada tem. Sim! Força Linda, não imaginas quantas mulheres conheço que se aniquilam no esforço de manter o homem que em nada as faz feliz, muito antes pelo contrário, mas que lhes fica bem socialmente. É outro esforço, sem dúvida, mas ao qual não consigo dar valor.

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  2. Fez-me lembrar que, na visita habitual para levar flores à minha mãe, me deparei com duas sepulturas lado a lado. Uma dizia "F..... Professor Catedrático" e a outra "F..., mulher, corajosa, mãe, avó doce, amiga e confidente única". Não fosse o contraste e nem teria reparado na ironia da situação, nem nos atributos da senhora. Mas é esse o curriculum das mulheres banais. Que seria do mundo sem elas? No entanto, cumpre-me informá-la de que a banalidade que refere como algo pejorativo, mimetizando gerações mais viçosas: é uma característica que não lhe "assiste"! Pode mesmo ser que o encanto da sua escrita seja o de conseguir um todo, um tecido impressionista de pequenos e banais momentos que nos dão a entender uma personalidade viva e atenta, capaz de alguma ironia perante os dissabores. Palavras simples, construções singelas, mas extremamente expressivas, e muito, muito recheio que nos obriga a revisitar os meandros cinzentos e indefinidos da nossa própria banalidade.
    Palavras para quê? Já sabe que a sigo com prazer!...

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  3. As vossas palavras são sempe tão generosas!
    Muito obrigada e bem-hajam.

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