domingo, 16 de novembro de 2014

O complemento oblíquo e o crochet de Joana Vasconcelos



                                                                                                             Joana Vasconcelos


            O complemento oblíquo e o crochet de Joana Vasconcelos.

Acompanho o percurso da sonda espacial Philae; estou à espera da cura para o cancro; tenho esperança que a ciência consiga dar conta das doenças autoimunes; vejo com interesse as coleções primavera-verão do Tenente, da Chanel e da Fátima Lopes; oiço os grupos que os meus filhos ouvem - quer goste ou não -; percebo “o encanto” de Santos à noite; visito e consumo Zara, de acordo com as minhas possibilidades; assisto extasiada às conversas dos miúdos num linguajar a precisar de dicionário; não me parece que a juventude de hoje seja tão ignorante quanto  a “pintam”; percebi com facilidade que um Visto Gold era qualquer coisa parecida com o passe de um futebolista com pés de ouro, mas em bom, com mais políticos e o meu dinheiro à mistura; a cozinha gourmet não me traz saudades do arroz de favas do Jacinto; a Noiva e a Cinderela da Joana Vasconcelos não me deixaram indiferente (deixaram – pretérito perfeito simples do Modo Indicativo, na terceira pessoa do plural, certo?); uso artigos descartáveis, porque são confortáveis ( e quem disser que não usa está a mentir); reciclo o lixo e ensinei a reciclá-lo; mastigo pastilha elástica; vou a concertos; saio à noite para dançar; não sou contra a interrupção voluntária da gravidez; não me incomoda que duas pessoas do mesmo sexo  se casem e adotem as crianças que quiserem e puderem, aliás, esta questão nunca foi, para mim, uma questão; os graffiti nas paredes são uma legítima forma de contestação; não vejo a Casa dos Segredos, mas sei que existe; leio, sempre que posso, autores novos (desculpa lá, Pacheco Pereira); rendi-me à rapidez do Google; faço compras on-line,  tenho uma madeixa colorida no cabelo e, até, tenho conta no feicebuque e endereço eletrónico….bem, a lista já vai longa e ficou bem claro que o “meu tempo” não era melhor do que este, porque o “meu tempo” é este em que vivo e vejo crescer os meus filhos. Vamos, então, à gramática, digo, Dicionário Terminológico, vamos lá:“ O Complemento oblíquo é a função sintática desempenhada por um constituinte selecionado pelo verbo e realizado por um grupo preposicional ou por um grupo adverbial, podendo estes dois grupos constituintes ocorrer coordenados numa mesma frase. (….) Alguns complementos oblíquos são obrigatórios, não podendo ser omitidos; outros nem sempre estão realizados, mas são selecionados pelo verbo, estando implícitos (….) Verbos que selecionam complemento oblíquo (…) 1) verbos locativos,2)verbos de movimento, 3) verbos com o significado de duração, 4) verbos com significado  de necessidade ou carência (…) “ Perceberam? Conseguiram perceber  a função sintática que desempenha? Ficará  mais clara a interpretação de um texto com a explicação do que é um Complemento Oblíquo? Eu ajudo, este complemento, com nome, desde logo, enviesado, é o equivalente aos Complementos Circunstanciais – complemento circunstancial de modo, de fim, de lugar e por aí fora…. Já estou a ouvir os autores do Dicionário Terminológico a chamar-me nomes mais feios do  que oblíquo, o pior que me pode acontecer é bloquearem -me a conta no feicebuque e inviabilizar o blog. Percebíamos que a análise sintática, atividade, aliás, muito “secante”, nos ajudava a perceber, por exemplo, os versos de Os Lusíadas. Bem explicadinha, muito bem explicadinha, a divisão e classificação de orações funcionava como um  útil exercício para uma melhor compreensão e utilização da Língua Portuguesa. Não estou a dizer que a análise sintática e a divisão e clssificação de orações serviam para analisar e interpretar Os Lusíadas. Nada disso. Escreveríamos mal se não tivéssemos aprendido os complementos circunstanciais e a dividir e classificar orações? Não sei, não tenho respostas. Tenho perguntas,  muitas perguntas – ficaremos a escrever e a falar bem, se soubermos o que é um Complemento Oblíquo e um Modificador? Mudar, alterar e modificar a terminologia daquilo a que chamamos Gramática torna-nos mais modernos, mais avançados, mais deste tempo, mais capazes ?
Não sei.

Consigo perceber a intenção do Dicionário Terminológico, pelo menos,  quem não é leigo na matéria entende que o dito pretende de forma abrangente – que bela palavra! - fazer uma tão completa, quanto  possível,  descrição da língua.

E agora, como explico tudo isto a um adolescente que não tira os auscultadores, porque está a ouvir os Imagine Dragons? Se ele estivesse a ouvir As Variações de Goldberg de Bach a minha dificuldade seria idêntica.

Se calhar ainda não pertenço, por inteiro, a este tempo.

 

(citações retiradas  de Domínios, Gramática da Língua Portuguesa da autoria de Zacarias Santos Nascimento e Maria do Céu Vieira Lopes – esta gramática é uma das várias que consulto para descodificar o Dicionário Terminológio)



6 comentários:

  1. Gostei muito do texto e detesto o complemento oblíquo, que tb não pode ser substituído por pronomes pessoais. Preferia os circunstanciais, sem dúvida. Os miúdos também. Beijinho e continua a deliciar-nos com as tuas crónicas. :)

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  2. Sempre tu, Linda. Escrita escorreita e quente para tantas obliquidades. Gostei muito, claro está!

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  3. Excelente texto. Ele confirma que a genuína humildade é sedimento da maturidade, da plasticidade da inteligência, de muito ver o mundo. Agradeço uma vez mais, cara L. David, a lucidez desse olhar que me ajuda a saber ver.

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  4. Relativamente ao Dicionário Terminológico (1) : tenha-se em conta que ele deve servir sobretudo o discurso docente, como referência terminológico-conceptual - e não ser apresentado a alunos na sua nudez formal como “a gramática”. Fraca, inútil ressalva, pois, na prática lectiva, somos constrangidos, enquanto docentes, a fazer uso instrumental dele. (Faz remotamente lembrar o velho problema (?) corpo-alma, afinal inseparáveis). Não digo que muito do conceituário nele contido não seja válido, reflicta o desejável avanço da disciplina linguística, e seja até iluminador. É-o, pois. A distinção entre complemento e modificador que o DT veio possibilitar é fundamental, por exemplo - mesmo se a designação “modificador” não seja óbvia-transparente para conceptualizar informação acessória que não pertence obrigatoriamente ao esquema argumentativo do predicado; essa distinção não era realmente operável através dos conceitos “complemento circunstancial de …”. Quanto ao complemento oblíquo, ele dá de facto muito jeito, é uma alegria, aplaude-se sem reservas: é complemento e é preposicionado? Ora toma, que é oblíquo, e uma singeleza de ensino-aprendizagem!

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  5. Relativamente ao Dicionário Terminológico (2): por outro lado, outras inovações que o DT veio fazer imperar parecem-me absolutamente escusadas e causadoras, até, de “ruído” na compreensão dos factos da língua. Por que carga de água o advento da etiqueta “sujeito nulo” a cobrir diferentes tipos de sujeito ausentes em superfície e também o real sujeito nulo agora cognominado expletivo? Que nóia. É o reino da confusão. E para quê a insistência na lapidação de actos ilocutórios e suas intrincadíssimas variantes, numa complexidade discursiva de grau universitário, tão desajustada à capacidade de abstração de adolescentes de quinze anos, dezasseis anos? É um formalismo nebuloso, deveras nebuloso. E, entre Juno e a nuvem, agarre-se Juno.

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  6. Relativamente ao Dicionário Terminológico (3): Sim, entre Juno e a nuvem, agarre-se Juno. Agarre-se Juno! No ensino do Português, agarre-se mais o latim, o grego. Diz-me a experiência: os putos vibram com isso, quando percebem o valor da raiz. É um ganho incalculável. Dê-se a equilibrada e justa importância a discursos descritivos de ponta de nível universitário (e hegemonicamente anglo-saxónicos) quando absolutamente necessário. No básico e secundário, que vigore sobretudo a componente normativa, e menos a teorização descritiva. Tenho dito.

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