quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Escrever é triste.






Escrever é triste.
É triste escrever. São as dores que se espalham na folha em branco, escritas com a ponta dos dedos de unhas muito roídas, ou muito pintadas, escorregam pelo papel as lágrimas, as faltas, os pesares, os pedidos que se intimidam e ficam calados no bolso do casaco, às vezes, caem, quando os bolsos têm buracos, estão descosidos e não aguentam o peso das moedas. Escrever é triste, mais triste do que pôr flores em jarras, como dizia o poeta. Surgem e impõem a sua vontade de ser gente a quem nada se pediu, trazem do lado de dentro o cheiro a sémen e a sangue. São gente em que não acreditamos, mas não resistimos. Os desgostos que contam, os lutos que vivem. Escrever é dizer que esta alma não nos serve assim como é, queremos outra e as mágoas ganham forma de parágrafo, de períodos, com ponto final. Saem de um sítio que nem sabemos que existe. Triste. Um buraco sem fim. Crescem pessoas, aparecem histórias, sem felicidade, sem sombra. Escrever não é dizer dia de sol, porque um dia de sol não se escreve, existe, escrevê-lo é apenas dizê-lo, ficar nas palavras que alinham um dia de sol, com letras de teclas a saltar, ou caneta de aparo que range, mesmo que lá fora esteja a chover. É na ausência que se escreve, na espera, na saudade, na vontade de um corpo que pede outro. Em vão. Triste esta existência feita de quem lê o que nunca esteve escrito - falsas as histórias, invenções súbitas, vozes que querem calar, consolar o que não tem consolo. A voz de quem escreve é uma canção triste, esta canção triste que tem de ser escrita, cantada numa gramática velha. Esta voz a entoar uma melopeia. De noite, de dia, de madrugada. Chega e não pede licença para ser. Quase uma pessoa de corpo inteiro. Uma pessoa triste. Conta as desculpas das faltas, a razão dos prantos, as mãos a desfazerem-se na folha de papel. E a dor implacável. Que se diga que viver é uma condição e uma intenção não se escreve, porque não é triste. Escrever é triste como a crueldade da esperança. Uma morte que não deixa um rasto de memória. Escrever é triste como pensar muito. Como a revolta, a dor e a fome de quem não come há muitos dias. A procura de salvação na escrita é como escrever o texto mais triste. Sem Deus, sem deuses, sem redenção. Sem paz. Sem fim. As belas histórias- lindas canções de encantar, são escritos tristes, iguais ao raio de sol que se pintou no papel, enquanto trovejava. E, por isso, escrever é triste. É uma resposta à pergunta triste: e, agora, meu amor? Um romance, uma novela, um conto e teríamos a resposta intacta. Vidas inteirinhas arrumadas, junto às paredes, vestidas como hussardos ou czares. Não mudo uma linha, não sei responder – as histórias não pintam a minha razão de que escrever é triste.     

4 comentários:

  1. Adoro tudo o que escreves. Derramas-te nas letras que compõem as palavras, que compõem as frases feitas de ti. Escrever é entrega!

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  2. Escrever é extravasar: o que não cabe mais, seja triste ou não. :)

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  3. Este texto é uma inscrição gravada no corpo, interna. "Escrever é triste como a crueldade da esperança." Tanta beleza na tristeza, L.David. Que sabedoria maior é esta de a pores assim em palavras?

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