isto sou eu a falar, não interessa nada.
….estou a precisar do mundo, entendes? sair daqui, saltar
para fora destes degraus, olhar outros rostos, outros cheiros, consegues
perceber a minha pena ao ver passar
sempre à mesma hora, à mesma luz, no mesmo banco, o mesmo comboio? para onde
irão todos os outros comboios? que haverá além, mais além, das nuvens? não consigo
perceber esta vontade súbita de fechar a porta, não olhar para trás e seguir
por aí… não procuro respostas, já sei as respostas, todas? sim, quase todas,
não será isso presunção? não, são, apenas, muitos anos a ouvir que o dia de
amanhã será outro dia, o ano tem trezentos e sessenta e cinco ou trezentos e
seis dias, que depois do verão virá o outono, que uma grávida demora nove meses
a dar à luz uma rapaz ou uma rapariga, que não vemos o nosso rosto, a ondular, duas
vezes na água do mesmo rio, que a terra é redonda e que, agora, que sou
grande não sou ‘serás o que deus nosso senhor quiser’ – sabe lá ele que eu
existo enrolada nesta saia de pregas e camisola castanha! não sei se
conseguirás entender esta ânsia de me partir, ou talvez de me ver partir, ou apenas, de partir por aí,
não consigo explicar melhor e não tenho a pretensão de achar que os teus sapatos
são melhores do que os meus, da tua janela vê-se o mar e achas isso muito bom, ainda bem,
olha, eu consigo distinguir, umas sabrinas trinta e seis
de uns sapatos trinta e sete, reconheço as botas de fim de estação, os sapatos
de saldo e os pés vaidosos de uma mulher solteira, porquê? porque moro numa cave, sim e, também, sou boa a olhar,
tão boa que percebo que o sacos das farmácias são cada mais pequenos, a fruta
que a família de cima compra no supermercado já não enche dois sacos e, agora, é o miúdo mais novo que faz as compras , preciso
abandonar este cheiro a roupa feia e pobre,
que insiste em ficar, no ar, nos dias em
que não posso abrir as janelas, não quero o algarve, nem a costa da caparica e
cresce-me um nó no estômago, cada vez, que penso que o mais longe que consigo
ir é à trafaria, não me servem as tuas palavras, não as quero para nada, pois
claro, que há muita gente que nunca viu o mar e continuo a receber o ordenado, certinho,
no dia trinta ou trinta e um de cada mês, sabes o cheiro que fica no ar quando
os cães cagam aqui, mesmo, debaixo da minha janela? o pão-de-ló continua a ter o
mesmo gosto do da tia Zulmira, mas não cheirava a caca de cão, pois não? eu já sabia tudo
isto, quando vim para Lisboa? talvez soubesse, percebi foi tarde de mais que o
cheiro a merda não melhora com o pedigree dos bichos, nem com a qualidade da
ração, quero ir-me embora, ir daqui para fora, seguir, sempre, sempre, aquelas
placas que dizem ‘Outros Destinos’ e eu a ir sem destino nenhum, entendes o que eu quero dizer, quando te digo, que já não
me apetece sentar nos bancos da estação de cascais, a ver passar os comboios? lá, ao fundo, está o
mar, e tu sabes, que eu gosto muito do mar, e do outro lado já pensaste
no que poderá estar? já alguma vez foste ao outro lado? e, neste lado, já alguma
estiveste? deixo-me destas conversas de chacha que já não me podes ouvir e queres ver o jogo
do benfica em paz?! sim, traz um frango assado com picante e muitas batatas
fritas, não gostas de picante? então traz metade com picante e outra metade com
molho de limão, ah!, só vais depois do jogo, com o frango que sobrar faço arroz
de frango, agrada-te? não, homem, com o arroz já não se sente o sabor a picante,
sim, farei, como tu gostas, o jesus é estúpido? mas tu não gostavas dele?
"Estou a precisar do mundo, entendes?". O que poderá estar do outro lado e o que está deste. Por uma seta, de repente lembraste-me mais uma vez aquele livro do F.L. "Amar não acaba"...
ResponderEliminarSeguir as placas que dizem "outros destinos"... Adoro! Tão eu!
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