sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

"Isto sou eu a falar!"






isto sou eu a falar, não interessa nada.

….estou a precisar do mundo, entendes? sair daqui, saltar para fora destes degraus, olhar outros rostos, outros cheiros, consegues perceber a  minha pena ao ver passar sempre à mesma hora, à mesma luz, no mesmo banco, o mesmo comboio? para onde irão todos os outros comboios? que  haverá além, mais além, das nuvens? não consigo perceber esta vontade súbita de fechar a porta, não olhar para trás e seguir por aí… não procuro respostas, já sei as respostas, todas? sim, quase todas, não será isso presunção? não, são, apenas, muitos anos a ouvir que o dia de amanhã será outro dia, o ano tem trezentos e sessenta e cinco ou trezentos e seis dias, que depois do verão virá o outono, que uma grávida demora nove meses a dar à luz uma rapaz ou uma rapariga, que não vemos o nosso rosto, a ondular, duas vezes na água do mesmo rio, que a terra é redonda e que, agora, que sou grande não sou ‘serás o que deus nosso senhor quiser’ – sabe lá ele que eu existo enrolada nesta saia de pregas e camisola castanha! não sei se conseguirás entender esta ânsia de me partir, ou talvez de  me ver partir, ou apenas, de partir por aí, não consigo explicar melhor e não tenho a pretensão de achar que os teus sapatos são melhores do que os meus, da tua janela  vê-se o mar e achas isso muito bom, ainda bem,  olha,  eu  consigo distinguir, umas sabrinas trinta e seis de uns sapatos trinta e sete, reconheço as botas de fim de estação, os sapatos de saldo e os pés vaidosos de uma mulher solteira, porquê? porque  moro numa cave, sim e, também, sou boa a olhar, tão boa que percebo que o sacos das farmácias são cada mais pequenos, a fruta que a família de cima compra no supermercado já não enche dois sacos e, agora,  é o miúdo mais novo que faz as compras , preciso  abandonar este cheiro a roupa feia e pobre,  que insiste em ficar, no ar, nos dias em que não posso abrir as janelas, não quero o algarve, nem a costa da caparica e cresce-me um nó no estômago, cada vez, que penso que o mais longe que consigo ir é à trafaria, não me servem as tuas palavras, não as quero para nada, pois claro, que há muita gente que nunca viu o mar e continuo a receber o ordenado, certinho, no dia trinta ou trinta e um de cada mês, sabes o cheiro que fica no ar quando os cães cagam aqui, mesmo, debaixo da minha janela? o pão-de-ló continua a ter o mesmo gosto do da tia Zulmira, mas não cheirava  a caca de cão, pois não? eu já sabia tudo isto, quando vim para Lisboa? talvez soubesse, percebi foi tarde de mais que o cheiro a merda não melhora com o pedigree dos bichos, nem com a qualidade da ração, quero ir-me embora, ir daqui para fora, seguir, sempre, sempre, aquelas placas que dizem ‘Outros Destinos’ e eu a ir sem destino nenhum, entendes o  que eu quero dizer, quando te digo, que já não me apetece  sentar nos  bancos da estação de cascais, a ver passar os comboios? lá, ao fundo, está o mar, e tu sabes, que eu  gosto muito do mar, e do outro lado já pensaste no que poderá estar? já alguma vez foste ao outro lado? e, neste lado, já alguma estiveste? deixo-me destas conversas de chacha  que já não me podes ouvir e queres ver o jogo do benfica em paz?! sim, traz um frango assado com picante e muitas batatas fritas, não gostas de picante? então traz metade com picante e outra metade com molho de limão, ah!, só vais depois do jogo, com o frango que sobrar faço arroz de frango, agrada-te? não, homem, com o arroz já não se sente o sabor a picante, sim, farei, como tu gostas, o jesus é estúpido? mas tu não gostavas dele?

2 comentários:

  1. "Estou a precisar do mundo, entendes?". O que poderá estar do outro lado e o que está deste. Por uma seta, de repente lembraste-me mais uma vez aquele livro do F.L. "Amar não acaba"...

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  2. Seguir as placas que dizem "outros destinos"... Adoro! Tão eu!

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