quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Os meus olhos são muito chorões.





Os meus olhos são muito chorões.

Há sempre uns avós que vão com os netos às consultas, uns senhores que ainda têm uns trocos para a carcacinha com manteiga e o macinho de cigarros. Quando não estão nos consultórios com os netos, ou à porta da escola, estão a jogar damas no jardim do bairro onde moram, os que sobraram - os bairros, os jardins, os velhos, as damas e as reformas, claro! No consultório onde passei a tarde a lacrimejar estavam dois pares de avós com dois pares de netos. Os avós compostos no seu fato completo de ir ao senhor doutor e com os peúgos de lã, estreados no dia de ano novo, não tiravam os olhos da televisão suspensa que vendia dinheiro e muito sucesso. Os netos, ainda de farda e a chupar com jactância, (gosto desta palavra - é mais forte que veemência, não é?) os pacotes de leite com chocolate, equilibravam a palhinha com as PSPs ruidosas e pronunciavam uns gorjeios que tive dificuldade em traduzir. Num banco mais comprido, de napa verde e gasta, um pai-engenheiro-de-fato-completo conversava com a filha,  cada um tinha  o seu tablet, e, pelo, ritmo a que os dedos deslizavam , deveriam estar a discutir a prisão do Sócrates, o comprimento da saia da jovem ou, apenas, a  decidir a hora do regresso do Urban. A miúda era cheinha de hambugers e pastilhas elásticas,compreensível, portanto, o desespero de ambos no acerto dos horários. Não, não estariam a falar de Sócrates. Já não interessa a ninguém e a Edite Estrela já passou de moda. Num momento o pai fixa os olhos na televisão e com muita atenção segue o empreendorismo do jovem de sucesso, que investiu todas as suas economias numa fábrica de realizar sonhos. Entre uma pergunta e outra a menina de vestido muito justo e o seu companheiro apresentador debitavam uns números de telefone, a medo, o avô com os tais  peúgos de lã estreados no dia de ano novo e o pai-engenheiro-de-fato-completo marcaram o número nos seus aparelhos e esconderam-nos, à pressa, no bolso das calças, abanavam-se com a cara da Bárbara Guimarães e da Cristina Ferreira. Para os miúdos os pacotes de leite chupados até à última gota já eram, espalhados no chão da sala. Importante, apenas,  a PSP e um ou outro macaco que tiravam, com algum esforço, dos narizes  decorados a pontos negros e borbulhas do tamanho de pipocas. A miúda exibia umas soberbas unhas de gel e eu juraria que os ténis de salto alto já estariam guardados em qualquer caixa à espera de ser vintage. Doíam-me as costas, o meu olho chorava todas as dores do universo, a cor do vestido, dois números abaixo, da menina que insistia em ser fadista agora, que o fado era a canção mais importante da cultura do mundo inteiro e entre uma lágrima e outra percebi o sucesso da fábrica de sonhos: todos nós temos um sonho, sei lá conhecer o Ronaldo, dormir uma noite no Tivoli, ser perseguido por um bando de paparazzi, saltar de para-quedas, ir de férias para Vilamoura, sei lá, de momento, não me lembro, assim, de mais nenhum, é verdade, já me esquecia de um jovem que quis dar de comer aos elefantes, no Jardim Zoológico e, nós vamos conseguindo, temos tido muito sucesso. Tinha, nesse preciso momento, os dois olhos a lacrimejar. Mal conseguia ver. A luz incomodava-me. Ardiam-me por dentro e por fora. Então os sonhos dos portugueses resumiam-se a apertar a mão ao Ronaldo, alimentar elefantes, dormir numa suite do Tivoli?! Então e construir uma escola sem vidros partidos, um hospital digno, a cura de uma doença, a Paz no Mundo? (Porra, isso, até aquelas mocinhas que querem ser misses desejam!!!! ) Desesperava. Os kwatts do aquecedor no máximo fugiam pela janela da sala de espera que estava aberta. E, isso incomodava-me. O dia escurecia e eu só pensava numa chávena de chá. Não, não ousava abrir a boca, não fosse o tal senhor satisfazer-me o meu mais secreto desejo. UI! Quero ir para casa e continuar a pintar os olhos, ver o cair da noite no rio…. a enfermeira percebeu o meu sofrimento:Tenha paciência é uma urgência, vai ter de esperar mais um  bocadinho. Eu esperava. Era uma urgência, tinha de esperar. Olhava para a televisão, já tinha ido à casa de banho e alinhava estes disparates no meu caderninho cor-de-rosa. Perdi de vista o pai-engenheiro com a filha feia e os avós e os netos já tinham ido fazer os trabalhos de casa. Restava eu, a árvore de natal que piscava umas irritantes luzes verdes, um monte de revistas velhas e o programa da tarde que continuava a dar dinheiro e vendia cebolas para emagrecer. Anoiteceu. As minhas costas eram uma massa de lágrimas que eu não conseguia controlar. Não conseguia ler. Afastei-me um pouco da televisão, procurei um ângulo menos doloroso e aprendi um novo  conceito de cozinha de fusão: sushi e comida alentejana. Por exemplo, farinheira com sashimi suzuki, haru-maki com grelos salteados e uma tempura ika com yasai cozidos com arroz especial japonês. A dificuldade está na cozedura e na qualidade dos ingredientes, os cogumelos, por exemplo, não prestam, os cogumelos portugueses não prestam. Repetia o senhor da cozinha de fusão japonesa. Fiquei esclarecida–sou uma incompetente cozinheira de fusão. E, no momento em que, Povo que Lavas no Rio se ouviu, na sala que, entretanto, ficou vazia, entrei no consultório do médico… Duas seringas, canais desentupidos, trinta e dois euros, uma tarde muito bem passada, dezanove euros de gotas, uma chávena de chá de hortelã, ao lado da farmácia, e nem uma única montra lambida. Nada. Cheguei a casa eram nove horas  da noite, os miúdos estavam a ler e já tinham jantado.

Eu fiquei, por aqui. A televisão muda e cega, a rádio sintonizada na  M80, não me perguntem porquê...

Já não consigo responder a perguntas difíceis.

Amanhã, já conseguirei pôr o eye-liner, o rimmel e tudo a que tiver direito.

 

Darei notícias.

2 comentários:

  1. Por tudo isto terei que partir. « Amanhã, já conseguirei pôr o eye-liner, o rimmel e tudo a que tiver direito», mas hoje não sei. Gostei do texto, do sentir e do pulsar.

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  2. Oh Linda, eu ri tanto, mas tanto que vou reler outras tantas vezes. As imagens, as fotografias, é um texto/filme. Outra preciosidade e mais um presente teu para os meus sentidos. Obrigada.

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