Os meus
olhos são muito chorões.
Há sempre
uns avós que vão com os netos às consultas, uns senhores que ainda têm uns
trocos para a carcacinha com manteiga e o macinho de cigarros. Quando não estão
nos consultórios com os netos, ou à porta da escola, estão a jogar damas no
jardim do bairro onde moram, os que sobraram - os bairros, os jardins, os
velhos, as damas e as reformas, claro! No consultório onde passei a tarde a
lacrimejar estavam dois pares de avós com dois pares de netos. Os avós
compostos no seu fato completo de ir ao senhor doutor e com os peúgos de lã,
estreados no dia de ano novo, não tiravam os olhos da televisão suspensa que
vendia dinheiro e muito sucesso. Os netos, ainda de farda e a chupar com
jactância, (gosto desta palavra - é mais forte que veemência, não é?) os
pacotes de leite com chocolate, equilibravam a palhinha com as PSPs ruidosas e
pronunciavam uns gorjeios que tive dificuldade em traduzir. Num banco mais comprido,
de napa verde e gasta, um pai-engenheiro-de-fato-completo conversava com a
filha, cada um tinha o seu tablet, e, pelo, ritmo a que os dedos
deslizavam , deveriam estar a discutir a prisão do Sócrates, o comprimento da
saia da jovem ou, apenas, a decidir a hora do regresso do Urban. A
miúda era cheinha de hambugers e pastilhas elásticas,compreensível, portanto, o
desespero de ambos no acerto dos horários. Não, não estariam a falar de
Sócrates. Já não interessa a ninguém e a Edite Estrela já passou de moda. Num
momento o pai fixa os olhos na televisão e com muita atenção segue o
empreendorismo do jovem de sucesso, que investiu todas as suas economias numa
fábrica de realizar sonhos. Entre uma pergunta e outra a menina de vestido
muito justo e o seu companheiro apresentador debitavam uns números de telefone,
a medo, o avô com os tais peúgos de lã
estreados no dia de ano novo e o pai-engenheiro-de-fato-completo marcaram o número
nos seus aparelhos e esconderam-nos, à pressa, no bolso das calças,
abanavam-se com a cara da Bárbara Guimarães e da Cristina Ferreira. Para os
miúdos os pacotes de leite chupados até à última gota já eram, espalhados no chão da sala. Importante, apenas, a PSP e um ou outro macaco que tiravam, com
algum esforço, dos narizes decorados a pontos negros e borbulhas do tamanho de
pipocas. A miúda exibia umas soberbas unhas de gel e eu juraria que os ténis de
salto alto já estariam guardados em qualquer caixa à espera de ser vintage.
Doíam-me as costas, o meu olho chorava todas as dores do universo, a cor do
vestido, dois números abaixo, da menina que insistia em ser fadista agora, que o fado era a canção mais
importante da cultura do mundo inteiro e entre uma lágrima e outra percebi o
sucesso da fábrica de sonhos: todos nós
temos um sonho, sei lá conhecer o Ronaldo, dormir uma noite no Tivoli, ser perseguido
por um bando de paparazzi, saltar de para-quedas, ir de férias para Vilamoura,
sei lá, de momento, não me lembro, assim, de mais nenhum, é verdade, já me
esquecia de um jovem que quis dar de comer aos elefantes, no Jardim Zoológico e,
nós vamos conseguindo, temos tido muito sucesso. Tinha, nesse preciso
momento, os dois olhos a lacrimejar. Mal conseguia ver. A luz incomodava-me. Ardiam-me por dentro e por fora. Então os sonhos dos portugueses resumiam-se
a apertar a mão ao Ronaldo, alimentar elefantes, dormir numa suite do Tivoli?!
Então e construir uma escola sem vidros partidos, um hospital digno, a cura de uma
doença, a Paz no Mundo? (Porra, isso, até aquelas mocinhas que querem ser misses
desejam!!!! ) Desesperava. Os kwatts do
aquecedor no máximo fugiam pela janela da sala de espera que estava aberta. E,
isso incomodava-me. O dia escurecia e eu só pensava numa chávena de chá. Não,
não ousava abrir a boca, não fosse o tal senhor satisfazer-me o meu mais
secreto desejo. UI! Quero ir para casa e continuar a pintar os olhos, ver o
cair da noite no rio…. a enfermeira percebeu o meu sofrimento:Tenha paciência é uma urgência, vai ter de
esperar mais um bocadinho. Eu esperava. Era uma urgência, tinha de esperar. Olhava para a televisão, já tinha ido à
casa de banho e alinhava estes disparates no meu caderninho cor-de-rosa. Perdi
de vista o pai-engenheiro com a filha feia e os avós e os netos já tinham ido
fazer os trabalhos de casa. Restava eu, a árvore de natal que piscava umas
irritantes luzes verdes, um monte de revistas velhas e o programa da tarde que
continuava a dar dinheiro e vendia cebolas para emagrecer. Anoiteceu. As minhas
costas eram uma massa de lágrimas que eu não conseguia controlar. Não conseguia
ler. Afastei-me um pouco da televisão, procurei um ângulo menos doloroso e aprendi
um novo conceito de cozinha de fusão: sushi
e comida alentejana. Por exemplo, farinheira com sashimi suzuki, haru-maki com
grelos salteados e uma tempura ika com
yasai cozidos com arroz especial japonês. A dificuldade está na cozedura e na qualidade dos ingredientes, os
cogumelos, por exemplo, não prestam,
os cogumelos portugueses não prestam. Repetia o senhor da cozinha de fusão japonesa. Fiquei esclarecida–sou uma incompetente
cozinheira de fusão. E, no momento em que, Povo que Lavas no Rio se ouviu, na sala
que, entretanto, ficou vazia, entrei no consultório do médico… Duas seringas,
canais desentupidos, trinta e dois euros, uma tarde muito bem passada, dezanove
euros de gotas, uma chávena de chá de hortelã, ao lado da farmácia, e nem uma única
montra lambida. Nada. Cheguei a casa eram nove horas da noite, os miúdos estavam
a ler e já tinham jantado.
Eu fiquei,
por aqui. A televisão muda e cega, a rádio sintonizada na M80, não me perguntem
porquê...
Já não
consigo responder a perguntas difíceis.
Amanhã,
já conseguirei pôr o eye-liner, o rimmel e tudo a que tiver direito.
Darei notícias.
Por tudo isto terei que partir. « Amanhã, já conseguirei pôr o eye-liner, o rimmel e tudo a que tiver direito», mas hoje não sei. Gostei do texto, do sentir e do pulsar.
ResponderEliminarOh Linda, eu ri tanto, mas tanto que vou reler outras tantas vezes. As imagens, as fotografias, é um texto/filme. Outra preciosidade e mais um presente teu para os meus sentidos. Obrigada.
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