segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O escritório - primeira parte

Andrew Wyeth, Open and closed


















O Escritório - primeira parte.

 Quando se entrava na casa e com os pés nos mosaicos preto e branco do corredor, o escritório ficava à esquerda, a primeira porta à esquerda. Uma entrada com duas folhas de madeira, vidro transparente na parte de cima e puxadores de porcelana branca, grandes e redondos. A fechadura abria com uma chave que eu nunca vi. As portas da casa não estavam fechadas, mas eu sabia que algumas não me pertenciam. A porta do escritório era a mais misteriosa de todas. O buraco da fechadura, no entanto, permitiu-me olhar, em silêncio e durante muito tempo, o que diziam os homens,  as conversas sérias dos meus avós e o namoro com mão e beijos dos meus tios.  Entrei no escritório a primeira vez, ainda não sabia ler. Uma tapeçaria com o nascimento de Jesus ocupava a parede da frente. O laço vermelho que fazia a esquadria de todas as paredes da casa desaparecia e o menino sorridente, no colo da mãe, mexia-se quando eu entrava. Só ele me via e recordo as repreensões daquele olhar. Os sorrisos das outras figuras. Bordados a ponto muito fino. Já sabia ler e escrever quando consegui tocar-lhe a primeira vez. Subi para a cadeira da secretária, equilibrei-me, estendi os braços e joguei a mão. A tremer de medo toquei nas oferendas espalhadas no chão. Eram muito macias. Suaves. Só consegui chegar aos pés de Maria, mas o que me salvava, sempre que me atrevia, era a moldura pesada e larga. Não há desenho do burro, São José, Virgem Maria e o menino sem o resguardo daquela fita de madeira brilhante. O escritório era o meu refúgio e o meu quarto de brinquedos. “Vai brincar com as tuas bonecas”, mas eu nunca gostei de brincar com bonecas. Sentava-me à secretária e imaginava homens, mulheres, sítios, futuro de livros e cadernos de linhas com muitas letras.  As molduras com as fotografias do meu tio e do casamento dos meus pais, o tinteiro com a forma de uma cabeça de cavalo, o papel mata-borrão, o tinteiro Parker, o tapete de cabedal, um rectângulo castanho e dourado, o pisa papéis de vidro grosso e frio e com bolhas de ar coloridas, a caixinha dos selos e as gavetas foram brinquedos nas tardes de calor e chuva. O tempo passava de uma vez só. E quando me esticava para o interruptor saliente na parede que amparava a sombra de uma floreira, a penumbra já me pesava.

(continua)

1 comentário:

  1. É o lugar do tesouro revisitado. Percebe-se o respeito imenso, a quase indizível intimidade que subjaz à justiça da descrição. Muito bom, também, este texto. Ficamos com vontade de não parar a leitura. Ficamos com vontade de morar nesta casa.

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