quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Não contem a vidinha", dizia o O'Neill





“Não contem a vidinha”, dizia o O’Neill (continuação).

 Ela e ele despediam-se. A mulher do quarto ao lado não gemia. Não se ouvia a chuva. Entretidos com as suas próprias vidas, deixaram que a noite passasse. O sol nasceria em seguida. Teriam de se separar e correr para o dia. A custo. Abraçaram-se. Fecharam a porta. Sorriram um para o outro, acenaram o adeus. Ela dirigiu-se para o carro, a manhã chegava. O tempo era uma falsa medida. Pensaria o tempo, quando se encontrassem. Quando se encontrassem?!

Poesia, os clássicos, os romancistas russos, o jazz, a natureza, uma receita de sopa, pintura, rádio, televisão, política, os filhos, as filhas, o desencanto, a mágoa, tudo se confundira ao longo da noite. O amor às palavras estava-lhes no sangue, na pele. Não se lembrava se ele gostava de jazz, nem nunca o ouvira falar de poesia. Cresceu. Pensou. Todos crescemos, de uma maneira ou de outra. Percebeu as diferenças: como tinham tido vidas tão desiguais, tão distantes. Da sua vida, ele contara pouco. Mas ela compreendeu o sucesso. As viagens. Os projetos. Gosta do que faz. Leu-lhe a felicidade nos olhos, quando falava. Percebeu o mundo diferente em que viviam. Ela, mais faladora, contou-lhe os nascimentos, a mágoa que lhe fazia tremer a voz, os escritos que deixara a meio. Os caminhos que os seus passos seguiram. Se calhar, é assim com todas as mulheres: trocar a sua vida pela dos outros, sem arrependimento. Sentiu o abismo. A diferença - o mundo que lhes coubera. Lembrou-se que teria de passar por casa para mudar de roupa. Abrir as janelas, arrumar a pasta. Aproximou-se de casa com o coração mudo. As mãos húmidas escorregavam no volante. Sting afinava o refrão. “The shape of my heart”. Ela sorriu. Sting tinha sempre razão! Quando entrou em casa, sentiu um cheiro a casa vazia, que se lhe colou à pele. Estranhou: a sua casa cheirava sempre. E, foi no momento em que fechou a porta, que aquela sombra lhe apertou a mão e a abraçou. Voltara, de repente. Voltara. Ajudou-a a vestir-se, a arrumar os papéis. Abriram as janelas. Começariam juntas um novo dia.

 

 





 

Sem comentários:

Enviar um comentário