quinta-feira, 13 de março de 2014

Ouvido por aí.





Ouvido por aí

“Que bom é estar dentro da minha vida”, pois dentro da minha vida, também, não se está nada mal. O dia começou radioso e animado. Não houve choros, nem gritos de gaivota enraivecida, nem tão pouco vidros partidos, ou portas esventradas a pontapé. Não, nada disso, apenas, uma garganta inflamada, uma febre que ronda os trinta e oito (à sombra); a cabeça cheia de pregos; duas contas  para pagar; a conta do supermercado de cento e vinte e cinco euros  e quarenta e dois cêntimos à qual foram retirados os supérfluos, que é como quem diz tudo o que tem 23% de IVA (tudo, tudo não, porque uma fatia de queijo amanteigado nunca fez mal a ninguém); um adolescente (essa invenção da burguesia endinheirada que não sabia como entreter os filhos durante os períodos – longos –em que a escola fechava para ir a banhos - outra invenção recente, acompanhada de  sandes de pasta de atum), dizia eu, um adolescente que odeia a escola e durante trinta e cinco minutos tentou convencer-me que estava doente; um incómodo que insiste em fazer-se sentir a meu lado; os gritos do vizinho que deixou o cão fechado em casa ( é o vizinho que grita, pois claro, porque o cão não deveria ficar tantas horas fechado em casa, oxalá fique com uma dor de garganta-arranhada-inflamada, e que não me peça uma lamela de pastilhas Mebocína, eu não lha dou, pronto! ); uma senhora simpática insiste em dizer-me que temos de ter muita paciência porque fases más todos temos na vida, precisamos de passar por elas para nos fortalecermos e tornarmos as almas mais nobres aos olhos de Deus (a tia dela também, diria alguém); um  rapaz que me oferece duas canetas e um bloco de notas, se eu deixar de pagar o contador do gás e todos os dias me bate à porta; dois senhores da política que assinaram um papel e foram exonerados, porque Caxias está transformado em hotel de charme, como agora se diz, ou estarei enganada? Se calhar o hotel de charme é noutro sítio, mas para o caso também não interessa; a água a deixar um rasto de dor quando engulo; este sol lindo e quentinho a entrar-me pela vida dentro; as pessoas todas com aquela cara de felicidade como se vivessem no melhor filme de Indiana Jones e a esquecer que à noite ainda faz muito frio e nem todos somos filhos do mesmo pai e da mesma mãe; os trabalhadores a fazer greve e o senhor na televisão a dizer que é apenas mais um momento de luta D. José Policarpo morreu e os seus pares dizem que Deus escreve direito por linhas tortas, este senhor, por acaso, não estava dentro da minha vida, mas se quando eu morrer disserem o mesmo, por favor, calem-se. Tudo isto está nesta vida onde se está bem, cá dentro, porque eu não ia no Boeing 777, nem irei A Kuala Lumpur nos próximos dias, se algum dia lá irei, não sei – tudo à minha volta é um mistério e animação constantes. E Imprevistos, porque se eu soubesse o que o futuro me reserva talvez não me levantasse da cama todos os dias, esta profunda citação não é minha, eu também não digo de quem é – não quero qualquer um dentro da minha vida. Porque se está bem cá dentro. Por agora, e porque não estão bem (nem mal) dentro da minha vida, aproveitem o sol quentinho, bebam muitas coca-colas zero, com muito gelo, dispam as camisinhas de marca, estiquem as varizes, chupitem umas jolas à beira- Tejo e façam de conta que dentro das vossas vidas está o melhor que podem ter neste país amarelinho, morninho de selfies rosadinhos, muito gloss, auto-estradas e restaurantes saudáveis.

Que bem se está dentro da minha vida!


Sem comentários:

Enviar um comentário