Ouvido por aí
“Que bom é estar dentro
da minha vida”, pois dentro da minha vida, também, não se está nada mal.
O dia começou radioso e animado. Não houve choros, nem gritos de gaivota
enraivecida, nem tão pouco vidros partidos, ou portas esventradas a pontapé.
Não, nada disso, apenas, uma garganta inflamada, uma febre que ronda os trinta e
oito (à sombra); a cabeça cheia de pregos; duas contas para pagar; a
conta do supermercado de cento e vinte e cinco euros e quarenta e dois cêntimos à qual foram
retirados os supérfluos, que é como quem diz tudo o que tem 23% de IVA (tudo,
tudo não, porque uma fatia de queijo amanteigado nunca fez mal a ninguém); um
adolescente (essa invenção da burguesia endinheirada que não sabia como entreter
os filhos durante os períodos – longos –em que a escola fechava para ir a
banhos - outra invenção recente, acompanhada de
sandes de pasta de atum), dizia eu, um adolescente que odeia a escola e
durante trinta e cinco minutos tentou convencer-me que estava doente; um
incómodo que insiste em fazer-se sentir a meu lado; os gritos do vizinho que
deixou o cão fechado em casa ( é o vizinho que grita, pois claro, porque o cão
não deveria ficar tantas horas fechado em casa, oxalá fique com uma dor de
garganta-arranhada-inflamada, e que não
me peça uma lamela de pastilhas
Mebocína, eu não lha dou, pronto! ); uma senhora simpática insiste em
dizer-me que temos de ter muita paciência
porque fases más todos temos na vida, precisamos de passar por elas para nos
fortalecermos e tornarmos as almas mais nobres aos olhos de Deus (a tia dela também, diria alguém); um rapaz que me oferece duas canetas e um bloco
de notas, se eu deixar de pagar o contador do gás e todos os dias me bate à
porta; dois senhores da política que assinaram um papel e só foram exonerados, porque Caxias está transformado em hotel de
charme, como agora se diz, ou estarei enganada? Se calhar o hotel de charme é
noutro sítio, mas para o caso também não interessa; a água a deixar um rasto de
dor quando engulo; este sol lindo e quentinho a entrar-me pela vida dentro; as
pessoas todas com aquela cara de felicidade como se vivessem no melhor filme de
Indiana Jones e a esquecer que à noite ainda faz muito frio e nem todos somos
filhos do mesmo pai e da mesma mãe; os trabalhadores a fazer greve e o senhor
na televisão a dizer que é apenas mais um
momento de luta; D. José Policarpo
morreu e os seus pares dizem que Deus escreve
direito por linhas tortas, este senhor, por acaso, não estava dentro da
minha vida, mas se quando eu morrer disserem o mesmo, por favor, calem-se. Tudo isto está nesta vida onde se está
bem, cá dentro, porque eu não ia no Boeing 777, nem irei A Kuala Lumpur nos
próximos dias, se algum dia lá irei, não sei – tudo à minha volta é um mistério
e animação constantes. E Imprevistos, porque se eu soubesse o que o futuro me
reserva talvez não me levantasse da cama todos os dias, esta profunda citação não
é minha, eu também não digo de quem é – não quero qualquer um dentro da minha
vida. Porque se está bem cá dentro. Por agora, e porque não estão bem (nem mal)
dentro da minha vida, aproveitem o sol quentinho, bebam muitas coca-colas zero,
com muito gelo, dispam as camisinhas de marca, estiquem as varizes, chupitem umas
jolas à beira- Tejo e façam de conta que dentro das vossas vidas está o melhor
que podem ter neste país amarelinho, morninho de selfies rosadinhos, muito gloss,
auto-estradas e restaurantes saudáveis.
Que bem se está dentro
da minha vida!
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