Uma aula de física numa cidade que eu não
conheço.
Deixei o miúdo entre os
ácidos e as bases, deixei-o bem. Queria uma sombra, um passeio, um caminho que
conhecesse, um lugar fresco. Esperaria que as fórmulas se organizassem e, em
paz, voltaríamos para casa. Estava num emaranhado de estradas, prédios que eu
não conhecia, não sabia aquele céu, aquelas nuvens, lá perguntei é por ali, não tem nada que enganar, vira à esquerda,
no cruzamento, na segunda à direita, e, ao lado dos prédios amarelos, encontra
o grande centro comercial. Teria preferido uma igreja, um lugar mais
fresco, um banco para me sentar e esperar. Nada mais feio e estéril que o
corredor da fruta e das latas de conserva com o talho e a peixaria ao fundo.
Lembrei-me de um abraço, um colo, um ombro. Nada, ali estava eu entre o fiambre
e as bananas importadas. Tudo igual e da mesma cor. Olhava para as prateleiras
e para a cara das pessoas. Cumpri a tarefa de esperar naquele país que eu não
conhecia. Peguei no telemóvel, que, entretanto, piscou o sinal de mensagem mãe onde estás? Não sei. Seria a
resposta mais certa. Saiu um a mãe não
demora. Não conheço estas pessoas, não sabia onde estava a prateleira dos
detergentes e já não me recordava do nome da rua das fórmulas de química, do
semáforo, ponto de referência, será que
ainda conseguirei reconhecer o cruzamento? Lembrei-me das palavras de
alguém, podemos passar muitas vezes pelo mesmo
sítio e não o conhecer. Eu não reconhecia nada, porque nunca ali estivera. Hoje, ninguém se perde e as ruas são todas iguais A cidade cresceu em
todas as direções. Só me faltava uma igreja, tinha muito calor e as igrejas
são vitrais, bancos frescos com pessoas de olhar mais sereno. E o teu abraço do
outro lado da Europa chegou a seguir. Chego
quinta-feira, o meu abraço não é elástico mas deixo-te o maior beijo que
quiseres. Sosseguei. Agora, só faltava a fruta, o pagamento no multibanco,
apanhar o miúdo e continuar com a vidinha, sem sobressaltos. O de sempre. E
o de sempre era uma esperança e um dever cumprido, ainda pensei em ligar-te
outra vez, mandar uma mensagem, pelo feicebuque e pedir-te o meu perfume, tinha
uma linha de conforto, no fundo do frasco. Tive vergonha. Regresso. Contas
pagas, o jantar quase pronto e o semáforo, ponto de referência, naquela cidade
onde eu nunca estivera. Apanhei o miúdo, voltámos para o nosso país, talvez a expressão
mais feliz da língua francesa. Mon pays. A
cidade onde se nasceu e a rua onde se vive,
que podem não coincidir, mas são,
sempre, mon pays. Chegámos. A rotina a
pôr a mesa e a aquecer a sopa E, sem
aviso. A violência da discussão, a cadeira a voar, os palavrões, o olho negro,
as lágrimas e os soluços. A briga entre os irmãos. Não percebo como começou.
Foi difícil, poderia ter pedido a ajuda ao vizinho. Acalmaram, por fim, pedi-te
outro abraço chego quinta, não te
inquietes. Lembrei-me do perfume que era uma linha de conforto no fundo do frasco.
Tive vergonha. Mas por que raio nunca
pedes ajuda, quando precisas? Aprende a pedir ajuda, já pensaste que os amigos
também poderão ter prazer em ajudar? Têm razão, eu só pensava, nas fórmulas da física, na violência, na violência,
nos gritos, nos insultos. E no sono que tardava.
(Faz
hoje, ou fez ontem, um ano que comecei a escrever este blog, fi-lo por insistência
e com ajuda de um amigo e de uma amiga, tenho publicado com alguma regularidade
e a qualidade dos textos é duvidosa. Eu sei. Mas, neste momento, já perdi a
vergonha e o pudor foi-se esboroando, escreves
com muitos pontos finais, dizes sempre o mesmo, tens textos muito mal escritos,
tem vergonha na cara e nunca publiques uma linha, porque a qualidade da tua
escrita é muito idêntica à daquela senhora de quem tu não gostas nada, tem dó,
há escritores, por aí, a pontapé e toda a gente quer publicar um livro,
portanto, deixa-te de merdas. Tenho ouvido e lido, com muita atenção, corrijo
uma ou outra palavra, chorei uma lágrima ou duas, mas cá estou. Há um ano.
Parabéns, blog. Ficaremos mais um ano, mais dois, enquanto gostarmos de estar
um com o outro, continuaremos por aqui. A quem não gosta do que escrevo, ou
acha que só escrevo tretas e merdas,
apenas, peço: não leiam, por favor, e cuidem, muito bem, da vossa vidinha. Eu
vou cuidando da minha. Muito obrigada a todos os que, pelo contrário, me têm
encorajado e gostam desta minha prosa tão desajeitada…Desculpem-me se vos desapontei.)
Pois eu continuarei a visitar-te sempre que puder. E a ler-te. Parabéns ao ano do teu blogue.
ResponderEliminarPARABÉNS, BLOGUE! PARABÉNS, AUTORA DO BLOGUE! LONGA VIDA A AMBOS! Eu quero continuar a ter radiografias escritas únicas aqui à mão, se faz favor. Venho cá muitas vezes e gosto muito do que leio. A autora é mestre nas descrições e, embora use óculos (que fazem parte integrante da sua biologia, há muito), sabe ver portentosamente. Obrigada, L.David, por nos ensinares, com as tuas crónicas, a saber ver o que interessa.
ResponderEliminarQue conte muitos mais, pois a qualidade, o domínio da palavra e a exposição de um eu com uma sensibilidade à flor da pele são sempre agradáveis Uma das coisas que admiro na sua escrita é que abre as portas do seu quotidiano a quem a lê e sem pruridos ou presunções. É uma mulher de família e de pequenas grandes coisa que assomam no seu dia a dia e é nessa qualidade que escreve. Detesto quem escreve só com palavras ou que tenta exercícios de retórica vazios. Há uma autora algarvia, cujo nome não vou dizer, porque profissionalmente me ficaria muito mal, que não consigo ler PONTO! Há cerca de 30-40 anos foi-me oferecido um livro dela e, em todo este tempo, quando estou muito bem disposta. olho para ele e penso "devia lê-lo!". Mas fatidicamente não consegui ainda passar da página 13, pois sou temperamental com a leitura: ou me traz algo de absolutamente novo ou recria algo que conheço de forma original. O seu caso é o último e sim dá-me prazer ler os seus textos. Continue por muitos e bons anos.
ResponderEliminarMuito obrigada, são as vossas palavras que me dão ânimo e sentido ao que escrevo.Escrever?! Sim, escrever, sempre, e sobre o que conhecemos muito bem, falo do meu quotidiano, das minhas banalidades, das minhas "pequenas, grandes coisas", porque as conheço, porque as vivo e sinto. Coisas minhas que passam a pertencer a quem as lê, coisas iguais a tantas outras viidinhas, outras Vidas. E, contas feitas, que é a nossa vida, afinal?
ResponderEliminarEnquanto me der prazer andarei por aqui.