Querida amiga.
Querida amiga, tenho
pressa, deixo-te este bilhete na caixa do correio, o meu avião parte, esta
noite, não sei onde te poderei encontrar.
Lavas muito bem os
legumes que tens no frigorífico, escolhes os que ainda têm viço e fazes a
melhor sopa que souberes, entretanto, lembraste que leste a Divina Comédia de
Dante de Alighieri, porque houve um senhor que a traduziu, arrumas o teu dia ao
lado dos calções do remo, apetece-te um cigarro, abres a última garrafa de Pomares, um tinto do Douro, os vinhos alentejanos nunca foram do teu agrado,
pedes ajuda à tua amiga do primeiro esquerdo, ela dir-te-á que para
fazer as salsichas com lombardo, precisas de um lombardo que não tenha as folhas
muito rijas, arrumas tudo muito bem numa panela de pressão que tiveste dificuldade em fechar, pensas
que melhor não podias ter feito e pões o
disco que hoje te ofereceste, a tocar, Stefano Bollani e Hamilton de Hollanda.
Agarraste as horas do dia que te dão mais paz e sentas-te a escrever. Para dizer
o quê? Achas que isso interessa a mais
alguém a não ser a ti? Deixa-te levar pela música, recorda que um dia te
disseram a felicidade tem um só caminho
e tu acreditaste, não te incomodes, a tua casa é um templo, cheira muito bem,
tens sempre flores amarelas e arrumas a roupa por cores. Algures, haverá alguém a pensar que
o céu tem uma só cor e que o Guincho poderia ser o caminho para partires para
outras Áfricas. Lembra-te que ainda te falta pagar a conta da luz, a Tv Cabo e as explicações
de matemática. A conta da farmácia tinha mais zeros do que tu imaginavas, mas
não te rales , não és diferente dos outros
e sentes a falta dos poetas que têm morrido, porque, se calhar, foi com
eles que aprendeste a dizer: Leva- me a dançar,/ um dia destes,/ leva-me
ao mar, /leva-me a ver as estrelas,/ desarruma-me a casa e depois esquece que eu
existo/se te perguntarem por mim,/ não respondas. Que sabemos um do outro, afinal? Ali, na janela que escolheste para olhar o rio, há
muitas manchas de humidade e, se não fores imediatamente desligar o forno, as
empadas do miúdo ficarão queimadas e ele não te perdoará - estuda com afinco, há
muitos meses. O exame de filosofia poderá ser a melhor recompensa. As miúdas
olham para ele e é só o discurso dele sobre Kant, que conseguem compreender. (Pensam
elas. Ele está noutra).Podes chorar à vontade nunca percebeste Kant e um puto
de dezasseis, que ainda, por cima (de quem?), é teu filho, só pode ser melhor que
o maravilhoso
bolo de chocolates que ofereces às visitas, deixa estar, não pediste e não escolheste nada, além de te
pores a jeito e quereres aos trinta e oito anos ter uma família. E tiveste. E
tens, são muito difíceis porque lhes deste a ouvir Erik Satie e os adormeceste
ao som de Al Di Meola, na esperança remota (no fundo era assim que pensavas), que estarias a ensinar um mundo
melhor. Olhas para ti e vês que uma estúpida doença te marcou mais do que tu
querias. Marcou-te, por dentro, por fora estás igual – talvez melhor –, ficaste apavorada,
perdeste o céu e não querias acreditar, quando, pela primeira vez, não
conseguiste abrir uma garrafa de Ermelinda, desfizeste a rolha e ficaste a
pensar que a rolha de cortiça era uma metáfora da tua vida. Deixa-te de merdas,
aproveita o vinho, decanta-o, pede ao miúdo que te explique Kant, porque em
troca tu podes ensiná-lo a ler Fernando Pessoa, como ninguém, e sabes porquê? Primeiro,
porque estudaste e achas e, com muita razão, que o Livro do Desassossego não é
o único livro que se lê e vende, algures, numa livraria europeia e, segundo não
conheço ninguém, e eu conheço, muita gente, que goste tanto de palavrar quanto tu.
O mais novo, ainda é mais a Demanda do Santo Graal, e tu foste o quê? Deixa-o,
aprender com os próprios passos e ouve-o, porque para quinze anos não gostar
de futebol e considerar que o seu herói é um tetraplégico, só te poderá fazer
pensar que quando, aos três anos trauteava a Rainha da Noite da Ópera Flauta
Mágica, já tinha percebido alguma coisinha da vida. Tu com a idade dele andavas
às voltas com o atirei o pau gato ao gato.
Imagina a tua vida, tendo como horizonte a linha mais indefinida de Ayamonte,
estarias, agora, a fazer o quê? A ouvir os discos do teus pais, a passar as
noites, por aí, à espera que uma qualquer universidade particular, que tu não
poderias pagar, daqui a una anos, te chamasse. Pois, não é como sempre dizes a sorte dá muito trabalho? Já viraste as
empadas? Ligaste a máquina da roupa? Deixa o resto para amanhã, estás doente e
precisas de descansar e, pela tua saúde, vive a tua vida e bebe o teu copo de
Ermelinda, com, ou sem, rolha. Já acabas-te o Pomares? Não te esqueças de triturar
a sopa, os putos gostam e os pratos dão menos trabalho a lavar.
Adoro-te. Passar sem
a tua amizade é uma noite de trovões.
Um beijo.
A tua amiga de sempre Paula B.
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