sexta-feira, 4 de julho de 2014

Mulheres temporariamente acompanhadas.





Uma mulher temporariamente acompanhada.

A mulher é muito gira, tem graça, dizem que tem estilo. Gosta de dançar e de sair à noite. Conquistou a pulso, com os dois pulsos, o seu lugar no mundo, cumpriu as obrigações todas com as Finanças, sai  sem medo, vai aos concertos que ela própria escolhe, compra  os sapatos, os perfumes, as saias e os livros sozinha, construiu a sua liberdade, reconciliou-se com a sua pele. Organiza com o tempo da pontualidade de um relógio, os trabalhos de casa, as consultas de oftalmologia, escolhe o melhor psicólogo, prepara os fins de semana com o pai, ao milímetro. O seu estar só já não tem o amargo da solidão anterior, o silêncio faz-lhe companhia. Passeia pela casa, quando os miúdos não estão, a ler em voz alta um texto de Henning  Mankel,  Clarice Lispector, uma canção de Edith Piaf, ensaia uma cor de lápis de olhos, ao espelho. Aos fins de semana, a mulher vai dançar, ao cinema, ver o rio, visitar uma amiga. Escreve, estuda uma matéria e quando o trabalho a chama é ele que lhe faz companhia, pode juntar a noite com o dia. O frigorífico dá-lhe o que ela vai precisando e se o telefone não tocar, nem dá pela sua existência. A solidão, o falar uns longos silêncios, saborear um copo de vinho pode ser, por um momento, a felicidade suprema. Às vezes, um rapaz mais atrevido senta-se no seu sofá, adormece a seu lado, sussurra-lhe uma brejeirice ao ouvido, ocupa-lhe a tranquilidade, ameaça-lhe o silêncio, trata-a por minha querida, as borboletas, tímidas, saltam-lhe dentro estômago, vem o convite para o almoço na esplanada, e a mulher pensa que acredita, mas não se convence, oferece-se o direito de sonhar com o mar mais azul, a conversa sem rumo, os pés na areia. Por momentos, breves momentos, uma história a desenhar-se no horizonte, mas depois lembra-se da cama ocupada, a tampa da sanita levantada, as ressonadelas, as esperas pelo telefonema que não chega, lembra-se de outras histórias a tolherem-lhe os movimentos, de outros rapazes atrevidos, dos olhos encarnados de tanto chorar, das promessas em que acreditou, do coração sufocado pela dor e deixa-se ficar. Esquece o telefonema, pensa na adolescente em que se tornou, sms torrenciais, declarações no chat, nas palavras está tudo a ir depressa demais. Pensa que não se enganou e que para tudo há uma  justificação. Sim. O rapaz é atrevido: alguma justificação haverá. A mulher achou o rapaz educado e a sua intuição tem-lhe mostrado que há pessoas de bem. A ansiedade abranda, dois jogos de futebol importantes no mesmo dia, um dia mais quente uma lista interminável de assuntos para tratar, não podia telefonar, estava aflito queria ver o jogo de futebol, sabes como adoro futebol, estou muito cansado, tenho de chegar a casa antes do jogo começar, desculpa querida. A mulher é gira, independente, mas também está cansada. Sentiu a sua paz e o seu silêncio comprometidos. A mulher gira não gostou da ansiedade, da espera, das borboletas a queimarem as asas dentro de si. A mulher não desiste: não é mulher de desistir, nem de cruzar os braços. O filho mais velho está ver o jogo. A mulher não tem paciência. Agarra num livro, olhará um momento ou outro para o écran da televisão. Às nove horas, estará sozinha em casa e não pensará mais no assunto. Colômbia e Brasil, também poderão ocupar o seu écran.( Queres  ver o jogo cá em casa?)

Uma mulher temporariamente acompanhada: poderia ter tropeçado no rapaz atrevido, durante os Jogos Olímpicos. Nada a declarar, estará temporariamente acompanhada. Estar só  será uma boa companhia. (A Alemanha marcou um golo). É assim. Não me perturbou. Desculpa, rapaz atrevido.

Dizem que  gostamos daquilo que conhecemos e entendemos, será por isso que eu não gosto de futebol. Quiçá?

1 comentário:

  1. Como sempre, gosto!
    A única diferença é que neste identifico-me no leque das mulheres temporariamente sós - mas mais descrente. A alegoria 'as asas a queimarem-se...' transmitiu-me 'ardor'.
    Gosto

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