Uma mulher
temporariamente acompanhada.
A mulher é
muito gira, tem graça, dizem que tem estilo. Gosta de dançar e de sair à noite.
Conquistou a pulso, com os dois pulsos, o seu lugar no mundo, cumpriu as
obrigações todas com as Finanças, sai sem medo, vai aos concertos que ela própria
escolhe, compra os sapatos, os perfumes,
as saias e os livros sozinha, construiu a sua liberdade, reconciliou-se com a
sua pele. Organiza com o tempo da pontualidade de um relógio, os trabalhos de
casa, as consultas de oftalmologia, escolhe o melhor psicólogo, prepara os fins
de semana com o pai, ao milímetro. O seu estar só já não tem o amargo da solidão
anterior, o silêncio faz-lhe companhia. Passeia pela casa, quando os miúdos não
estão, a ler em voz alta um texto de Henning Mankel, Clarice Lispector, uma canção de Edith Piaf, ensaia
uma cor de lápis de olhos, ao espelho. Aos fins de semana, a mulher vai dançar,
ao cinema, ver o rio, visitar uma amiga. Escreve, estuda uma matéria e quando
o trabalho a chama é ele que lhe faz companhia, pode juntar a noite com o dia. O frigorífico dá-lhe o que ela vai precisando e se o telefone não
tocar, nem dá pela sua existência. A solidão, o falar uns longos silêncios, saborear um copo de vinho pode ser, por um momento, a felicidade suprema. Às
vezes, um rapaz mais atrevido senta-se no seu sofá, adormece a seu lado,
sussurra-lhe uma brejeirice ao ouvido, ocupa-lhe a tranquilidade, ameaça-lhe o
silêncio, trata-a por minha querida,
as borboletas, tímidas, saltam-lhe dentro estômago, vem o convite para o almoço
na esplanada, e a mulher pensa que acredita,
mas não se convence, oferece-se o direito de sonhar com o mar mais azul, a
conversa sem rumo, os pés na areia. Por momentos, breves momentos, uma história
a desenhar-se no horizonte, mas depois lembra-se da cama ocupada, a tampa da
sanita levantada, as ressonadelas, as esperas pelo telefonema que não chega, lembra-se
de outras histórias a tolherem-lhe os movimentos, de outros rapazes atrevidos,
dos olhos encarnados de tanto chorar, das promessas em que acreditou, do
coração sufocado pela dor e deixa-se ficar. Esquece o telefonema, pensa na
adolescente em que se tornou, sms torrenciais, declarações no chat, nas
palavras está tudo a ir depressa demais. Pensa que não se
enganou e que para tudo há uma justificação. Sim. O rapaz é atrevido: alguma justificação haverá. A mulher achou
o rapaz educado e a sua intuição tem-lhe mostrado que há pessoas de bem. A ansiedade abranda, dois jogos de futebol
importantes no mesmo dia, um dia mais quente uma lista interminável de assuntos para tratar, não podia telefonar,
estava aflito queria ver o jogo de futebol, sabes como adoro futebol, estou
muito cansado, tenho de chegar a casa antes do jogo começar, desculpa querida. A
mulher é gira, independente, mas também está cansada. Sentiu a sua paz e o seu
silêncio comprometidos. A mulher gira não gostou da ansiedade, da espera, das
borboletas a queimarem as asas dentro de si. A mulher não desiste: não é mulher
de desistir, nem de cruzar os braços. O filho mais velho está ver o jogo. A
mulher não tem paciência. Agarra num livro, olhará um momento ou outro para o
écran da televisão. Às nove horas, estará sozinha em casa e não pensará mais no
assunto. Colômbia e Brasil, também poderão ocupar o seu écran.( Queres ver o jogo cá em casa?)
Uma mulher
temporariamente acompanhada: poderia ter tropeçado no rapaz atrevido, durante
os Jogos Olímpicos. Nada a declarar, estará temporariamente acompanhada. Estar
só será uma boa companhia. (A Alemanha
marcou um golo). É assim. Não me perturbou.
Desculpa, rapaz atrevido.
Dizem
que gostamos daquilo que conhecemos e
entendemos, será por isso que eu não gosto de futebol. Quiçá?
Como sempre, gosto!
ResponderEliminarA única diferença é que neste identifico-me no leque das mulheres temporariamente sós - mas mais descrente. A alegoria 'as asas a queimarem-se...' transmitiu-me 'ardor'.
Gosto