sábado, 16 de agosto de 2014

Resgresso à casa - o corredor (continuação)

Andrew Wieth




O corredor.

Regresso à casa. Entro pela porta principal de madeira, ferro e postigo de vidro rugoso. Os pés saltam o degrau de pedra e, um atrás do outro, desenham triângulos, quadrados e retângulos nos mosaicos pretos, brancos, cinzentos. A mancha regular desenhada com mestria era o longo corredor. Teria sete ou oito metros de comprimento, mais ou menos dois de largura e era por ele que a vida passava, entrava e se instalava. Eu e os meus pés pequeninos inventávamos mil histórias, viagens, partidas para destinos desenhados ao milímetro, impostos pelas dimensões de cada um dos mosaicos. De joelhos, contava as esquinas, as vezes que a cor preta se repetia, em que quadrado surgia a cor branca, abria as mãos e media os palmos que separavam a porta da rua, da porta do escritório, imaginava o que mais tarde percebi serem linhas diagonais, e corria  os indicadores pelo  rodapé, moldura  suave, lisa e fria fita cinzenta, que  separava a mancha escura do chão, do tecido claro esbranquiçado da escaiola da parede, rematado com os laços encarniçados, iguais, em todas as outras paredes da casa. Aquele longo corredor mudava de cor ao longo do dia. Ao longo do ano. Quem entrava na casa, nos dias frios e chuvosos, de inverno, sentia o conforto de um horizonte seco, quente e confortável de luz filtrada pelos vidros coloridos do postigo, que desenhava formas no preto mais sombrio e no branco mais frágil, dos mosaicos do chão. À direita, um bengaleiro com um espelho oval e ganchos de metal permitia pendurar, sem pressas, os casacos e os guarda-chuvas. Nos dias menos luminosos, aquela armação de madeira, espelho e ferro era a personagem principal das minhas histórias de fantasmas e lobisomens. Encostava-me à porta de madeira-mel  do escritório e via criaturas enormes, braços a agarrar seres sem forma, gotas de água do tamanho de lagos. Ficava quieta, calada e muda a admirar aquela gente extraordinária. Eu era a menina, única criança da casa, não apreciava bonecas, nem tachinhos, nem panelinhas entretinha-me a falar com tudo que em meu redor pudesse transformar em histórias com fadas, gigantes, e outras pessoas que só eu tinha o privilégio de ver e ouvir. O corredor não era o meu lugar da casa, mas era o sítio, que pelas suas dimensões, mais voltas ao mundo me permitia dar. Nos dias mais quentes de verão, aquele corredor era fresco, arejado e brilhante. As sombras eram substituídas por manchas coloridas que desfaziam o calor e o bafo quente do Suão. Nesses dias, sentava-me num banquinho a ver o chão mudar de cor, abrigada do calor, sem tempo e no silêncio, apenas, interrompido pelo ritmo das tarefas domésticas. Mas esta criança não se cansa de estar e falar sozinha? De facto, eu não estava só e não percebia a estranheza de falar sozinha. Se, mais tarde, os livros do escritório me salvaram e mantinham comigo conversas intermináveis, neste tempo, o corredor que mudava de cor e luz foi uma das minhas melhores companhias. A porta guarda-vento de vidros coloridos em semicírculo, as portas dos quartos, do escritório e da sala de jantar, de madeira mel, os vasos de ferro que escondiam o barro e as raízes dos fetos, das sempre-vivas e dos cartuchos, as floreiras de pé alto e uma cadeira de braços estofada compunham o corredor. Quem entrasse na casa não ficava indiferente às simetrias desenhadas no chão e nas paredes, ao viço das plantas, nem às cores dos vidros, que nos empurravam para a sala de estar, grande e solar  a completar a harmonia que se adivinhava, quando a porta número sessenta e seis, na rua Conselheiro Frederico Ramirez, se fechava.





 

2 comentários:

  1. A tua imaginação era bem mais fértil que a minha. Eu só pensava em fazer tropelias.

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  2. Os textos sobre a casa do n.º 66 da Rua Conselheiro Frederico Ramirez são fabulosos. Quando é que sai o romance inteiro?

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