terça-feira, 21 de outubro de 2014

Para a Lita, com Amor.



Deixava os passos arrastarem-se, pequenos e lassos. Adiava o movimento do pé esquerdo a acompanhar o pé direito. O pé direito a deslizar. Devagar. Surdos e mudos, os movimentos. Como se o tempo não fosse aquele caminho comprido, aquela rua movimentada. Imaginava outro país, outra rua, outro rosto. Outra vida. Olhava para o relógio. Indiferente ao atraso, indiferente aos cheiros, às pessoas, às casas. Indiferente à rua. Queria chegar tarde, atrasar-se. Não chegar a horas, não cumprir, não fazer, não obedecer. Os passos diminuíam o ritmo. Suava. Sentia o arrepio, lento,  a tomar-lhe conta do corpo. O medo a pesar-lhe nos ombros, a agarrá-la pela cintura. Uma dança a pedir sexo, sem voz, descompassada. A dor, o medo e o sangue. A pele em ferida. Uma vez e outra. A roupa rasgada pelo  prazer que não lhe pertencia. Nítida. A  imagem do medo e das dores. As pernas tremiam-lhe. Parou. Apoiou-se numa montra. Evitou olhar o reflexo. Encolheu-se, quando lhe tocaram, sem querer, naquela pressa de entrar para o autocarro. Apertou os braços, em cruz, à volta do pescoço. Respirou fundo e sentiu os gritos no ventre socado, no peito sem forma. O eco da sua miséria, os insultos num vernáculo ruidoso e mesquinho. Os soluços e os pulsos presos latejavam. Baixava a cabeça a um olhar mais curioso. Os passos queriam parar.  O corpo pedia-lhe silêncio. Olhou para o relógio. O tempo não tinha parado. Chegaria muito tarde. A casa era um buraco onde chegaria com  horas de atraso. Abriria a porta com as mãos húmidas e a pele colada à roupa. Enxovalhada. Sem graça. Um boa noite, em murmúrio, a esquivar-se à mão grande e fechada. Em vão. Sentiria as costas vincadas na parede suja, no chão gasto, na porta da cozinha. Uma vez e outra.

(continua)

 

 
                                                                                     Fotografia retirada de .folhadomate.com/blog


                       






 

 

 

 

4 comentários:

  1. Que aura triste a dessa mulher. Adivinha-se um mau presságio no próximo capítulo. Aguardo

    ResponderEliminar
  2. Gostei de ler este "1º capítulo", onde se adivinha mais uma vida adiada ou anulada. A violência doméstica é um flagelo que, de facto, esfaqueia qualquer um, transformando-o num verdadeiro "walking dead".

    ResponderEliminar