quarta-feira, 26 de novembro de 2014

(Regresso à casa). A porta mais feia da casa


Andrew Wieth

                                 A porta mais feia da casa.

Regresso à casa, à primeira porta, do lado direito da rua, de costas para o rio. A primeira porta sem enfeites, nem postigos de vidro rugoso.  Uma porta e duas tábuas de madeira pintadas de tinta castanha pesada e escura, sem graça e sem brilho. Uma argola em ferro, redonda e imperfeita compunha uma fechadura que respondia com dificuldade a uma chave preta e grande. Era a porta do quintal. Não tinha número, nem moldura. Era a porta mais feia de toda a casa. Cada uma das tábuas estava presa ao chão por um trinco cilíndrico, que encaixava num buraco sem grande mistério que não fosse a força de um homem, ou os braços habituados a esfregar roupa, e a bater, sem pausas, uma dúzia de claras em castelo. Estava sempre fechada e, por ela, depois de um degrau a que eu não ficava indiferente e ensaiando vários passos e saltos  entrava num longo corredor de   teto azul, com ou sem nuvens, sol a brilhar, chuva torrencial, estrelas, frio de inverno húmido, ou o calor mudo que vinha do Norte de África. No tempo em que vivi na casa, a única magia destas lajes de tijolo coladas uma às outras era o céu que as cobria. Uma porta castanha e feia a abrir um longo e estreito caminho de paredes caiadas de branco. No verão, o branco da cal das paredes brilhava e feria os olhos mais sensíveis. Imaculadas no calor não resistiam à humidade da chuva e do Guadiana. Criavam umas bolhas de ar, que uns dedos, pequeninos e atrevidos, insistiam em fazer estalar. E, se o corredor da casa guardava mistérios e contava muitas histórias, este outro, exterior e de paredes caiadas, podia pertencer a uma qualquer história, de junho a setembro, ser ringue de patinagem e a rua estreita  que servia os interesses de quem morava na casa. Pela porta mais feia da casa entravam as garrafas de gás, as sacas de carvão e as caixas de madeira com batatas, abóboras e cenouras. As galinhas vivas e a cacarejar deixavam-se arrastar, pelas asas, com as patas atadas, por esse caminho, até ao momento que um golpe certeiro, no pescoço, as sangrava e transformava em canja. Eu olhava para aquele sangue todo muito encolhida e espantada. Como não gostava de comer, a infeliz criatura, degolada e depenada, naquele ritual de final de semana, já não assombrava os meus pensamentos, quando, tostada e muito arrumada, no tabuleiro aparecia na mesa do almoço de domingo. Ao fundo, crescera um enorme tanque de lavar roupa e um alegrete por onde subia uma trepadeira de folhas a imitar cabelos, com bagas vermelhas. Este caminho aberto ao céu, um tanque de lavar roupa e o alegrete desenhavam o quintal da casa. Nos dias mais chuvosos, quem viesse de galochas teria de entrar por essa primeira porta, percorrer o caminho até ao tanque, sacudir o guarda chuva, abrindo-o e fechando-o, várias vezes e deixá-lo a pingar num ângulo, mais ou menos abrigado, entre o tanque e o alegrete. Só depois e, pela porta da cozinha, podia entrar em casa. A passagem pelo corredor dependia das estações do ano, dos rituais católicos, dos almoços de domingo e dias de festa. Havia, ainda, neste corredor, por onde, se entrava pela porta mais feia, um buraco escuro e fundo tapado com uma grade de ferro, para esse buraco despejava-se o balde de latão com a água suja de lavar o chão, os caldos que azedavam e, claro, o sangue da galinha de domingo e do peru do Natal. Era um buraco muito feio, eu deveria manter distância, mas para onde não resistia  e, lúcida pecadora, jogava,  botões, bichos-de-conta,  alfinetes, lagartixas, baratas,  lápis sem ponta, bocados de pano e de papel, apenas, porque naquele buraco, tão encostado ao tanque, no corredor de céu azul, me parecia estar  a entrada para um qualquer inferno, abismo,  ou caminho secreto. Quando regresso à casa, consigo ver esta primeira porta castanha, áspera e pesada a abrir para um  corredor de lajes  castanho-tijolo, mas é o buraco negro que vejo com maior nitidez e inquietação. O inferno deverá ser assim -  um buraco de água suja, apelativo e sem regresso,  ao fundo de um  longo corredor.    
 
 (continua)

 




1 comentário:

  1. Bela página de descrição, escrita por mestre. Mas muito mais do que isso. Texto sobre o afecto que acolhe (escolhe?) o feio. É tão verdade e tão pouco comum, porém, a assunção. E sim, o inferno e a tentação do abismo são intimidade. Certeira e inteligente dissertação, L. David.

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