terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

"Estava bonita a festa, pá."

http://youtu.be/rWu0N0qPeME


"Estava bonita a festa, pá"



Vou para a casa, a noite perdeu a alegria, os telefonemas, os insultos, a ameaça… tudo perdeu o brilho e a miúda gira... a miúda gira guardou as sabrinas, esticou as meias pretas e subiu para o quarto para guardar, sem mácula, nem  nódoas, o cheiro de uma noite que num estalar de dedos perdera a magia. O vestido era bonito. Ela também: seria perfeito se nos amássemos. Saio com a cara enfiada no bolso das calças, sem vinco, depois do segundo maço de cigarros. Acabaram-se os cigarros. Entro no carro, andei um bocado até o encontrar. O meu amigo e eu. Estávamos cansados. Fiquei triste – eu não sei ficar triste, pelos outros, mas é este egoísmo que me anima -  talvez, tivesse  ficado, por ela, pela miúda gira. Não valorizei o seu desgosto, não valia a pena – não podia fazer nada. Quando pus a chave na ignição o telefone ainda gritava insultos. A insanidade tomava conta de mim. E eu permitia. Por egoísmo. Por nojo. Por impotência. Por náusea. Lido mal com  o ranho e a merda. Lembrámo-nos, eu e o meu amigo, das pernas longas e dos calções de xadrez que nos caíra no copo de gin. Rimo-nos, era uma miúda bonita, muito jovem, toda curvas e rimmel.”Podia ser nossa filha.”A gargalhada saiu sem que o percebêssemos. Na bomba de gasolina, compramos cigarros. Fumo com avidez. Fumo sempre com avidez. O primeiro cigarro da manhã. “A miúda era muito gira”, insiste o meu amigo, a imagem das longas pernas aparece num rolo de fumo que deito fora, a imagem está desfocada, não me apetece pensar em pernas, calções outras ‘preciosidades’, mas vejo com  muita clareza o vestido preto, de corte perfeito, as mãos bem desenhadas, a gargalhada, o passo de dança, a mesa cheia de flores, a comida saborosa, os olhares de juízo dos amigos, o nervosismo inicial. “Se não  gostarmos das pessoas....não nos interessarem, oferecemos as flores e voltamos para a nossa vida de fim de semana, não achas?” Ficara combinado. Mas gostámos. Ficámos, Tudo perfeito, o vinho, os vestidos, o perfume da curva do pescoço, a facilidade com que as palavras rolaram. Muito agradável, elegante, “gente de bem, miúdos educados”, como não fico triste pelo outros, não pensei na força, na alegria da figura pequenina e frágil a controlar olhares, pratos sujos. E  o beijo que lhe roubei sem que o filho percebesse? Gosto desses beijos roubados assim. Costumo usar uma expressão para momentos assim, não ouso repeti-la, porque não pertence a esta casa.  Não  pertence a uma casa como aquela.
 Não posso negar a distância.

Sigo pela estrada, amanheceu e estou a chegar. O telemóvel está em silêncio. Nâo tem bateria.  Cumprirei a minha obrigação, as bolachas, o leite com chocolate, os cigarros. Quando me despeço do meu amigo percebo que amizade estará sempre ali, a meu lado. A vida? Não sei! Por enquanto, evito o cheiro a merda, o ranho, o lixo que é preciso arrastar para se entrar na casa do velho. Os insultos páram, no momento, em que rodo a chave na fechadura e mostro o  saco do supermercado. Sossegam os dois. Eu estou cansado. Com o sol, veio o cansaço da obrigação, a insatisfação. A noite, a vida poderiam ser muito melhores. O melhor, a medida do melhor está dentro de cada um de nós. Neste momento o meu melhor está no que consigo fazer com ou sem cigarros. Quando entro em casa (em casa?) penso que a mancha de humidade aumentou, a mancha escura que limita os meus movimentos, me quebra  a pose e  diz que as manchas negras das nossas paredes são a metáfora daquilo em que a nossas vidas se transformaram. A imagem não é minha. Por que é que  permitimos? A minha vida tem  o tamanho da mancha de humidade da parede. Uma mancha suja e escura que alastra nos dias de chuva.De muita chuva.  A vida deve ser mais do que este borrão cinzento, indefinido, escuro, mais claro num ou noutro ponto. A vida é mais do que tudo isto. Aprendi-o contigo ‘minha santa mãe’, mas, de momento, minha mãe, eu não a sei dizer de outro modo. Não a sei viver de outro modo. Lembraste de quando íamos, os dois, ao parque infantil e tu me dizias, que eu era um bom menino, um dia, seria um homem de bem  e que para tudo há um limite, menos para as cores do nosso arco-íris? Apanhei frio. Estou muito constipado.
Mãe,  não sei  viver sem este frémito de arco-íris, diz-me, minha mãe, que farei a seguir?
A festa estava bonita e todos gostaram de mim. E, a seguir, minha mãe, que farei? Amanhã? Depois de amanhã? No dia seguinte?

 
(Deixo-te um abraço e uma lista de perguntas - não precisas de responder a todas.Chegou o momento de me tornar um homem de verdade, daqueles que tu me disseste que sabem tomar conta de si própios - mesmo que isso nunca venha a contecer: não te preoucupes tenho  amor de  sobra.)

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