quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Vamos falar de Amor





Vamos falar de Amor.

O jantar está ao lume, cozo os legumes que serão uma sopa que tu não provarás. Arrumei os congelados como tu me ensinaste: a carne e o peixe em gavetas separadas, os legumes por ordem de validade e cores, as caixinhas e as respetivas tampas com os restos que trouxemos do almoço de domingo em casa da tua mãe, os cubos de gelo, o pão fatiado. Tudo como tu gostas. Tanto que tenho aprendido contigo, meu amor! O guisado está quase pronto, temperei-o com um cubinho Knorr. Não notarás o gosto e dirás cozinhas quase tão bem como a minha mãe, o tempero está parecido, a tua mão para o sal melhora de dia para dia, devíamos convidá-la mais vezes, sempre aprenderias alguma coisa. Começo a sonhar, férias à beira-mar, sexo numa cabana, o fato de saia e casaco igual ao da Dª Teresinha do andar de cima, o emprego de secretária, os exames do décimo segundo ano que não fiz, porque, entretanto, nasceu o Vasquinho. Provo  a magia do cubinho dourado com a colher de pau a escorrer o molho grosso na palma da minha mão, continuo a sonhar, mexo devagar para que o jantar fique apurado cheira bem, volto para os sonhos,  o óbvio, os miúdos a aprender línguas, o funeral da tua mãe, abafo uma gargalhada e sinto-me corar, a sair pela janela da cozinha, nas avenidas de uma grande cidade, ou numa sala de cinema, a ver uma história com aquela atriz de cabelo loiro, que vimos num filme fingir um orgasmo e tu chamaste-lhe  porca. Nunca mais me deixaste ir ao cinema, nem ao clube de video e contas essa história, quando bebes um copinho a mais. Saio da avenida, abandono o cinema, volto para o fogão, mexo, mais uma vez, o molho e jogo, para dentro do tacho, as batatas partidas aos cubos, todos do mesmo tamanho, como tu me ensinaste, meu amor. Temos de ser impecáveis, até, a cortar as batatas. Tens razão. Vou agora para mais longe, arrumo os peúgos, os teus e os dos miúdos, imagino-te a cantar as canções dos Bee Gees ao ouvido, recordo a tua mão a tirar-me as cuecas no alpendre da vizinha Rosa, a vergonha na rua, a barriga a crescer e, de repente, sai-me uma gargalhada, vejo o caos nas caixas do supermercado, o responsável de olhar louco sem saber o que fazer – um supermercado às escuras, os cartões multibanco encravados, as pessoas a correrem como loucas para as prateleiras dos chocolates, continuo a rir, gargalhadas soltas, à toa, pela cozinha.  Gritas de dentro do sofá florido, forrado a plástico: OH! Mulher, endoideceste? Estás maluca, agora ris sozinha? És parva, ou quê? Chama os putos para a mesa, tenho fome. Onde está a Verinha? Vai chamá-la, anda, tenho fome, porra! Sim, meu amor, está quase tudo pronto. A Verinha hoje chega mais tarde, está no turno da noite. Fico com o coração mais pequeno que o bocadinho de tomate que dança ao som da colher de pau, a minha Verinha, tinha tanta felicidade para lhe ensinar…Tenho de me despachar, pôr a mesa, passar as camisas do meu amor, nem me sento , hoje atrasei-me com os sonhos e as parvoíces do costume que me passam pela cabeça. OH! Vasquinho, vem para a mesa que o jantar está pronto, acabas o jogo depois do jantar. A casa está limpa, hoje é terça-feira, aspirei e lavei a roupa e os vidros, no domingo. Amanhã, entro no turno da tarde, vou deixar-te ir para a cama primeiro que eu, adormecerás de seguida e não te apetecerá foder-me - dois dias seguidos costumam deixar-te exausto. Poderei acender o candeeiro da mesa de cabeceira, tu não acordarás, meu amor e eu posso continuar a ler o livro que trouxe do supermercado, tenho de o colocar no mesmo sítio antes que a Josefa arrume as promoções da semana, insistiram que eu trouxesse as sombras do não sei o quê, eu prefiro a prateleira dos autores portugueses, ninguém os lê, ela não perceberá que trouxe debaixo da bata o livro da Dª Lídia Jorge, gosto dela, é algarvia, de Loulé, acho eu, como o meu avô da figueira grande. Já se sentaram à mesa, cheira bem o comer, esta receita é da televisão? Não respondo, faço de conto que não ouvi. Volto para a janela, agora não vou voar para lado nenhum, posso deixar cair um peúgo dos teus preferidos, meu amor, umas cuecas do miúdo, uma mola, sei lá, qualquer coisa… Os vizinhos da frente também estão a jantar e têm a televisão da cozinha ligada no mesmo canal que nós, estão todos a ver o mesmo e a mim só me apetece saltar, fugir pela janela. Não, meu amor, não farei isso, nem por ti, nem pelos nossos meninos, estarei a teu lado para o que vida nos quiser dar, meu amor.

Amo-te, Jorge e tanto, tanto. Para onde queres que eu vá, se tu nunca sabes onde deixas as chaves do carro? Jorge, meu amor.

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