domingo, 7 de agosto de 2016

Almoços de Agosto com Erik Satie

Regresso à casa.


Domingos de Agosto e vento quente.

Os domingos de Agosto a transpirar de Suão eram pouco agitados: a menina da casa, os crescidos e uma longa sesta, mas, se e o almoço trouxesse muita gente à volta da mesa rectangular, uma toalha branca, muito lisa e sem nódoas ou sombras era estendida, os pratos alinhavam-se com os copos e os talheres respeitavam o lombo assado com puré ou o peixe enrolado em papel de jornal, que tinha sido esquartejado na pia de pedra encarnada da cozinha. Em dias de maior liberdade, ou vozes mais altas eu ficava a ver a faca, o escamador e as mãos agéis arrumarem  aquele bocado de espinhas sangue e escamas  num tabuleiro de barro ou alumínio. Nos dias com muita gente, à volta da mesa, o arroz doce com canela seria aplaudido no fim do interminável almoço e eu ficaria a ver as cores desenhadas pelos copos. O sol atravessava o vidro e na toalha apareceriam círculos coloridos, copos alongados e transformados em cálices de pé alto ou pequenas manchas encarnadas - gotas desajeitadas que escorriam pelo gargalo da garrafa  mexida por uma mão mais trémula. Eu gostava de ver aquelas manchas na toalha branca: inventava uma flor, uma forma geométrica, uma história.  Uma nódoa de vinho da toalha e os meus dedos pequeninos contornavam uma história, um rosto, um desenho que nenhum dos meus lápis conseguiria contar. Os almoços de domingo eram longos de conversa. Eu não gostava de comer e as conversas não “eram contas do meu rosário”. Gostava de ver os movimentos das mãos, ouvir o tinir dos talheres no fundo dos pratos, as manchas de vinho ganharem vida -  “Esta criança não come nada. Para onde estás tu a olhar, menina?». Não saberia responder-lhes queria apenas que o almoço acabasse, queria voltar para o escritório, para dentro de um livro ou do quadro da sala de jantar.  Queria soltar-me da mesa rectangular.
Aqueles almoços eram um martírio, eu queria a praia, as ondas ou uma qualquer história que não cheirasse a carne assada ou canela. Com o calor do Suão de Agosto, a casa era o enorme corredor de ladrilhos e viagens imaginárias. Quando conseguia saltar da cadeira para o chão, corria para um ladrilho, um sitio qualquer onde ninguém conseguisse entrar.
As portadas das janelas estavam fechadas para não deixarem entrar o calor, as portas da sala grande com portas de vidro estavam  sempre abertas e era no poial de pedra dessa porta, sempre aberta, que eu também gostava de me aninhar com um livro, o bocado de um desenho ou o pedaço de céu azul que espreitava a trepadeira de espargos com bagas verdes. Corria um ar mais fresco e eu pensava que a noite demoraria a chegar, sobrar-me-ia ainda muito espaço. Atrás de mim o corredor fresco e luminoso chamava-me e as tardes de domingo com almoço e visitas perdiam importância, calor e sentido.
No entanto, ainda me lembro do cheiro a canela e das manchas do vinho tinto entornado na toalha branca. Figuras de histórias que surgem, aqui e ali, quando penso no silêncio da casa. Um silêncio diferente. Fresco. Mágico e brilhante.

(Mais tarde quando ouvi Erik Satie, pela primeira vez, pensei que talvez ele também não gostasse de almoços de domingo, ruidosos e a cheirar a canela.)


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