segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Rui e eu



 (Tu gostavas muito do Jorge, lembraste? Dizias que tinham estado juntos no "exílio".)


Boas noites e um soninho descansado.


( Meu Anjo da Guarda, minha companhia /guardai a minha alma de noite e de dia.)
Todos temos os nossos mortos.
O Rui e eu.
A última vez que desci contigo as escadas do Plateau, tínhamos passado a noite a dançar, eu era uma miúda e líamos com gosto a Confissão de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro, estou muito tranquila a falar destes nomes porque foi contigo, que mais gostei de os partilhar. Plateau e Mário de Sá Carneiro. – A que mundo pertenceríamos nós? - Esta madrugada, depois de o ter procurado, em vão, na cidade – Quem? Não sei. Percebi que nada há de mais injusto e cruel que afundarmos o nosso olhar distraído num outro olhar qualquer. As palavras valem muito pouco e é quando sentimos a neblina do Tejo, que percebemos, ali, na Vinte e Quatro de Julho, com uns vapores de gin no ar, que só precisamos das pessoas que connosco vivem um desgosto, uma alegria, um piropo. És uma miúda engraçada, dizias-me, tu, meu querido Rui. Eu acreditava. Ríamos e comíamos um cachorro quente. Discutíamos as trivialidades da vida e, se eu te dissesse que eram uns olhos azuis que me tinham deixado a pensar em pecados e afins, dir-me-ias: 
 - Faz-te ao caminho.
Mas o Rui morreu há oito anos. As vidas resistem aos impostos, aos trabalhos escassos e ruins. À doença, às injustiças, aos desamores, à solidão, resistirei a tanta saudade? O que me apetece dizer-te é: a minha avó tinha olhos azuis, e eu gostava muito dela. A cor dos olhos importa, sim. E tu sabes.
Corri a cidade. À noite, fora de horas, e não os encontrei, não vi os tais olhos azuis. Da tal criatura. Nada. A cidade estava deserta. Sem imaginação, nem fantasias Ninguém. Descobre-se um ou outro corpo colado ao ego, odiavas esta palavra, Queres em francês? Aí vai: Un seul être nous manque et  tout est depeuplé. Talvez acredite em ti, Rui. Esta noite, fizeste-me falta, sabes que, agora, não como cachorros, passo mais tempo sozinha, recomecei a escrever e não há um só dia em que não pense em ti. Estou um perigo: tive o azar de me deixar entusiasmar por um par de olhos. Não interessa a cor. Hoje, precisei das tuas certezas, porque quando me dizias que uns olhos azuis valem tanto como os olhos de outra cor qualquer, eu acreditava.
De madrugada, vinha do Tejo a neblina fria de que tu tanto gostavas, podíamos dar as mãos e rir até ao Calvário. 
Creio que a amizade é a memória das mãos de um amigo nas nossas.
 - O sexo foi bom? Eu nunca te respondia, mas tu percebias e deixavas-me em paz o tempo suficiente, para eu organizar os sentimentos, os livros, a tranquilidade, o quotidiano e a ansiedade. 
Fazes-me falta, Rui! Tanta falta!
Estás bem, aí, onde estás? E os olhos azuis que recordarei, com nostalgia, serão os da minha avó. Está prometido. Lembras-te dela? Os miúdos estão a estudar muito e para a semana, recomeçarei uma nova série de exames médicos. A camisa preta que tresanda a tabaco irá para a lavandaria. 
Nunca conheci um fumador que odiasse tanto o cheiro a tabaco... Eu deixei de fumar, como sabes. Mas o cheiro entranha-se, quando vamos aos sítios.
Deixo-te um beijo, Rui. 
Mesmo sabendo que limparás a cara com as costas das mãos.
( O Rui morreu num dia de Setembro, estava doente e eu não consegui dar-lhe um abraço, eu sei que ele não se importou, porque continuamos a conversar e a rir sempre que nos apetece.)




                                                              (quase todos os dias desde Setembro de 2008 )

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