Regresso à casa.
Domingos de Agosto e vento quente.
Os domingos de Agosto a transpirar de Suão
eram pouco agitados: a menina da casa, os crescidos e uma longa sesta, mas, se e
o almoço trouxesse muita gente à volta da mesa rectangular, uma toalha branca,
muito lisa e sem nódoas ou sombras era estendida, os pratos alinhavam-se com os
copos e os talheres respeitavam o lombo assado com puré ou o peixe enrolado em
papel de jornal, que tinha sido esquartejado na pia de pedra encarnada da
cozinha. Em dias de maior liberdade, ou vozes mais altas eu ficava a ver a
faca, o escamador e as mãos agéis arrumarem aquele bocado de espinhas sangue e
escamas num tabuleiro de barro ou
alumínio. Nos dias com muita gente, à volta da mesa, o arroz doce com canela
seria aplaudido no fim do interminável almoço e eu ficaria a ver as cores
desenhadas pelos copos. O sol atravessava o vidro e na toalha apareceriam
círculos coloridos, copos alongados e transformados em cálices de pé alto ou
pequenas manchas encarnadas - gotas desajeitadas que escorriam pelo gargalo da
garrafa mexida por uma mão mais trémula.
Eu gostava de ver aquelas manchas na toalha branca: inventava uma flor, uma
forma geométrica, uma história. Uma
nódoa de vinho da toalha e os meus dedos pequeninos contornavam uma história,
um rosto, um desenho que nenhum dos meus lápis conseguiria contar. Os almoços
de domingo eram longos de conversa. Eu não gostava de comer e as conversas não
“eram contas do meu rosário”. Gostava de ver os movimentos das mãos, ouvir o
tinir dos talheres no fundo dos pratos, as manchas de vinho ganharem vida
- “Esta criança não come nada. Para onde
estás tu a olhar, menina?». Não saberia responder-lhes queria apenas que o almoço
acabasse, queria voltar para o escritório, para dentro de um livro ou do quadro
da sala de jantar. Queria soltar-me da
mesa rectangular.
Aqueles almoços eram um martírio, eu
queria a praia, as ondas ou uma qualquer história que não cheirasse a carne
assada ou canela. Com o calor do Suão de Agosto, a casa era o enorme corredor
de ladrilhos e viagens imaginárias. Quando conseguia saltar da cadeira para o
chão, corria para um ladrilho, um sitio qualquer onde ninguém conseguisse
entrar.
As portadas das janelas estavam fechadas
para não deixarem entrar o calor, as portas da sala grande com portas de vidro
estavam sempre abertas e era no poial de pedra dessa porta, sempre aberta, que eu
também gostava de me aninhar com um livro, o bocado de um desenho ou o pedaço
de céu azul que espreitava a trepadeira de espargos com bagas verdes. Corria um
ar mais fresco e eu pensava que a noite demoraria a chegar, sobrar-me-ia ainda
muito espaço. Atrás de mim o corredor fresco e luminoso chamava-me e as tardes
de domingo com almoço e visitas perdiam importância, calor e sentido.
No entanto, ainda me lembro do cheiro a
canela e das manchas do vinho tinto entornado na toalha branca. Figuras de
histórias que surgem, aqui e ali, quando penso no silêncio da casa. Um silêncio
diferente. Fresco. Mágico e brilhante.
(Mais tarde quando ouvi Erik Satie, pela
primeira vez, pensei que talvez ele também não gostasse de almoços de domingo,
ruidosos e a cheirar a canela.)
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