sábado, 16 de novembro de 2013

Compor o coração.



 Compor o coração.
Suspirou. Chegou mais para si a roupa e deixou-se ficar. Tinha frio. Não gostava da espera. Não percebia o diálogo, a conversa sem resposta, durante horas, durante o jantar. Quando o jantar. Não percebia. Ou talvez sim, talvez soubesse. Tinha muito frio e as noites eram muito longas. A solidão crescia na roupa, no cheiro da casa, no pó dos livros. Recolhia os bocados e o super-homem espalhados pela casa, esticava a toalha da mesa com a palma das mãos, compunha o prato. Continuava com frio. Todas as noites, a espera. Desfiava o rosário dos remorsos, dentro de si. Instalara-se, a seu lado, uma sombra. Não conhecia o corpo. Pelo silêncio, ainda, ouvia a chave na porta, a pasta atirada para o chão. Sentia o cheiro. Chegavam os passos. Correu tudo bem?, arriscava. Dorme, são assuntos do escritório, trabalho, não te interessam, amanhã também chegarei tarde, dorme. Ouvia os passos afastarem-se. A almofada colada ao coração triste. Aconchegava-se. Ouvia no quarto ao lado o suave respirar. Serenava um momento, continuava com frio. Às vezes, ouvia as gotas da chuva, transparentes, debaixo da janela. Embalavam-na. A chave rodava na fechadura. Fechava os olhos. Uma e outra vez. Uma e outra noite a chuva a cair debaixo da sua janela. Uma e outra noite a olhar através da televisão. O olhar atravessava de um lado ao outro, qualquer coisa que, por momentos, fosse diante dos seus olhos. E, maior, o silêncio. A espera. Acordaria com a mesma certeza dentro de si. E o frio. Ajeitava a figura e fazia-se à estrada. Outro dia a seguir os mesmos caminhos. A mesma noite que demorava a trazer o dia, arrastando a espera. Igual, que se repetia. Queria pensar, um dia, o que sempre fora, talvez.

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