Mariana.
Uma das pessoas mais bonitas que conheci faria hoje
cem anos, tinha os olhos azuis , as mãos brancas e os dedos muitos
compridos, chamava-se Mariana e era minha avó materna. Com ela aprendi a ser
vaidosa, o ponto pé de flor, a arrumar gavetas e a ser independente.
"Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao
marido para ir ao cabeleireiro. Não trabalho, porque não sei fazer nada, não
aprendi uma profissão. Sou doméstica, mas não sou um animal." Não gostava
da palavra doméstica, preferia dona de casa .
" É o que eu sou. Sou dona desta casa". Era dona e senhora. Levantava-se
muito cedo. Destinava a semana,
ao domingo à noite. Rigorosa e disciplinada, cumpria as tarefas com
método e a horas certas. Almoçava-se à uma em ponto. Lanchava-se às cinco.
Jantava-se às oito. Segunda-feira era dia de ir à mercearia, separar a
roupa suja, arrumar o que o domingo e o almoço de família tirara do lugar.
Os jornais arrumavam-se, não se deitavam fora. “Podem fazer falta.” Tudo se aproveitava
até ao fim. Os sapatos eram engraxados e voltavam para as respetivas caixas. A
roupa de domingo que não se podia lavar à mão ficava dobrada à espera da limpeza
a seco, invenção que ela muito admirava, ou da escova molhada em água e vinagre
para tirar o pó e o cheiro a usado. Terça era dia de comprar peixe, a
carne comprava-se à quarta. Quinta-feira passava-se a ferro e engomava-se.
Sexta era dia de pão-de-ló, de uma limpeza a fundo e
de barrela - panela ao lume, água e sabão azul e branco. Procurava as
nódoas, se não desaparecessem, punha-as a corar ao sol. Entretanto era
preciso fazer o que as estações do ano a e as festas mandavam: marmelada no fim
do verão, britar azeitonas em outubro, encher figos para o dia
de finados, salgar a carne quando a lua de novembro permitisse matar o
porco, fritos em dezembro… Assim, as horas passavam, organizadas, sem
preguiça nem desperdícios. A avó Mariana estava sempre ocupada. Vigilante. E um
coração grande de mãe e depois avó. Chorou quando o filho foi para Angola. Organizou
com primor o enxoval que a filha levou para Moçambique. Bordou o vestido de batizado
da primeira neta. “ O meu António não gosta de padres, nem de batizados, mas a
minha neta está muito longe e esta é a única forma de estar perto dela”. A neta
era eu e o episódio do vestido bordado foi-me contado mais tarde por uma prima,
quase tia. Viu com os olhos muito abertos o homem chegar à lua. Aceitou de bom
grado os detergentes, o ferro elétrico, a panela de pressão, o caldo Knorr, o
terylene e os collants. “ Que boa coisa é a curiosidade dos homens, preguiça é
que não!”. Gostava de ler, apesar de escrever muito mal. “Só tenho a terceira
classe, mas faço coisas que ninguém sabe fazer”, dizia a rir. Gostava muito de
rir. Os meus avós riam muito e amavam-se ainda mais. Tratavam-se por menino e menina e nunca os vi zangados. Quando numa noite quente de agosto o
fogo devorou o sonho e o trabalho de uma vida, os meus avós choraram, agarrados
um ao outro, horas a fio. A avó Mariana e o avô António perderam a alegria. Vi
a minha avó, muitas vezes esconder as lágrimas e agarrar as mãos do meu avô,
mas nunca a vi cruzar os braços. “Preguiça, nem pensar!” E os dias continuaram disciplinados,
com o ritmo que ela lhes impunha. Era uma mulher extraordinária a minha avó
Mariana, nasceu a dois de novembro de mil novecentos e treze, num dia muito
frio e depois de a mãe ter tido uma noite inteira com dores tortas. “ A minha mãe sofreu muito, quando eu nasci.
Coitadinha. Não gosto de festejos no dia de finados, que dia tão triste para se
nascer!” Não, não foi um dia triste e tu eras uma mulher muito bonita e muito
sábia, Avó Mariana.
Obrigada pelo teu testemunho, e por esse teu tom de que pensa que "Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao marido para ir ao cabeleireiro"
ResponderEliminarde quem pensa, perdoa.
ResponderEliminarQueridas avós. Aprendemos tanto com elas.
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