sábado, 2 de novembro de 2013

Mariana

 
 
Mariana.
 
Uma das pessoas mais bonitas que conheci faria hoje cem anos, tinha os olhos azuis , as mãos brancas e os dedos muitos compridos, chamava-se Mariana e era minha avó materna. Com ela aprendi a ser vaidosa, o ponto pé de flor, a arrumar gavetas e a ser independente. "Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao marido para ir ao cabeleireiro. Não trabalho, porque não sei fazer nada, não aprendi uma profissão. Sou doméstica, mas não sou um animal." Não gostava da palavra doméstica, preferia  dona de casa . " É o que eu sou. Sou dona desta casa". Era dona e senhora. Levantava-se muito cedo.  Destinava a semana, ao domingo à noite. Rigorosa e disciplinada,  cumpria as tarefas com método e a horas certas. Almoçava-se à uma em ponto. Lanchava-se às cinco. Jantava-se às oito.  Segunda-feira era dia de ir à mercearia, separar a roupa suja, arrumar o que o domingo e o almoço de família tirara do lugar. Os jornais arrumavam-se, não se deitavam fora. “Podem fazer falta.” Tudo se aproveitava até ao fim. Os sapatos eram engraxados e voltavam para as respetivas caixas. A roupa de domingo que não se podia lavar à mão ficava dobrada à espera da limpeza a seco, invenção que ela muito admirava, ou da escova molhada em água e vinagre para tirar o pó e o cheiro a usado. Terça era dia de comprar peixe, a carne comprava-se à quarta. Quinta-feira passava-se a ferro e engomava-se. Sexta era dia  de pão-de-ló, de uma limpeza a fundo e de  barrela - panela ao lume, água e sabão azul e branco. Procurava as nódoas, se não desaparecessem, punha-as a corar ao sol. Entretanto era preciso fazer o que as estações do ano a e as festas mandavam: marmelada no fim do verão, britar azeitonas em outubro,  encher figos  para o dia de finados, salgar a carne  quando a lua de novembro permitisse matar o porco, fritos em dezembro… Assim, as horas passavam, organizadas, sem preguiça nem desperdícios. A avó Mariana estava sempre ocupada. Vigilante. E um coração grande de mãe e depois avó. Chorou quando o filho foi para Angola. Organizou com primor o enxoval que a filha levou para Moçambique. Bordou o vestido de batizado da primeira neta. “ O meu António não gosta de padres, nem de batizados, mas a minha neta está muito longe e esta é a única forma de estar perto dela”. A neta era eu e o episódio do vestido bordado foi-me contado mais tarde por uma prima, quase tia. Viu com os olhos muito abertos o homem chegar à lua. Aceitou de bom grado os detergentes, o ferro elétrico, a panela de pressão, o caldo Knorr, o terylene e os collants. “ Que boa coisa é a curiosidade dos homens, preguiça é que não!”. Gostava de ler, apesar de escrever muito mal. “Só tenho a terceira classe, mas faço coisas que ninguém sabe fazer”, dizia a rir. Gostava muito de rir. Os meus avós riam muito e amavam-se ainda mais. Tratavam-se por menino e menina e nunca os vi zangados. Quando numa noite quente de agosto o fogo devorou o sonho e o trabalho de uma vida, os meus avós choraram, agarrados um ao outro, horas a fio. A avó Mariana e o avô António perderam a alegria. Vi a minha avó, muitas vezes esconder as lágrimas e agarrar as mãos do meu avô, mas nunca a vi cruzar os braços. “Preguiça, nem pensar!” E os dias continuaram disciplinados, com o ritmo que ela lhes impunha. Era uma mulher extraordinária a minha avó Mariana, nasceu a dois de novembro de mil novecentos e treze, num dia muito frio e depois de a mãe ter tido uma noite inteira com dores tortas. “ A minha mãe sofreu muito, quando eu nasci. Coitadinha. Não gosto de festejos no dia de finados, que dia tão triste para se nascer!” Não, não foi um dia triste e tu eras uma mulher muito bonita e muito sábia, Avó Mariana.
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Obrigada pelo teu testemunho, e por esse teu tom de que pensa que "Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao marido para ir ao cabeleireiro"

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  2. Queridas avós. Aprendemos tanto com elas.

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