(Um homem e uma mulher, Claude Lélouche, 1966) |
(“Não contem a vidinha”, dizia o O’Neill. “Não
contem a vidinha”.)
Não
contarei a vidinha.
Saiu de casa
com um casaco sobre os ombros. O dia não estava frio e, mesmo, se a
temperatura baixasse, ela teria sempre o carro para se abrigar. Compôs a gola da
camisa, mirou o brilho das botas, respirou fundo e seguiu. Nada a
deteria, nem mesmo o cheiro a roupa lavada das suas mãos. Atropelavam-se as
ideias, os sonhos estremeciam dentro de
si, à medida que o tempo passava.
Acelerou o passo, esticou os gestos, lembrou-se do dinheiro que guardara na
carteira, dos cigarros e do isqueiro, das chaves, do risco a eye-liner, que nesse dia
ficara direito. Subiu a rua. Compôs a saia, as meias tinham sido bem esticadas,
o lenço, usava sempre lenços, como
adorava lenços, estava a condizer com a cor do casaco, apenas, sobre os
ombros. Se se visse, naquele momento, ao espelho, encontraria algum defeito,
alguma mancha, um botão descosido. Não, não olharia para o espelho. Ela sabia
que poderia estar melhor, mas também sabia que ele não perceberia os defeitos,
afinal, há vinte anos que não se encontravam. Continuou a andar, evitava as
manchas de gasolina, os buracos da calçada, os caminhos mais estreitos - “Estarei à tua espera, vem depressa!” – dissera-lhe para vir
depressa. Há tanto tempo que ninguém lhe exigia pressas. Há tanto tempo que
ninguém lhe exigia ser qualquer coisa. Bem, exigir? Exigiam! “Ajuda-me a fazer o trabalho de casa”; “ Vai ao correio pagar esta conta.”; “Preciso do
fato azul, para hoje à noite, tenho uma reunião muito importante.”; “ O que é o
almoço?” Aquelas exigências eram a sua própria vida. Agora, exigiam-lhe uma
pressa diferente, carregada de cheiro,
de promessas e de segredos. Ia. Estava a ir sem medo . Apressou-se. Porquê todo aquele estremecimento? Pensou que
precisava de arrumar as gavetas da secretária. Era como fazer cópias, na escola primária. Não servia para nada, mas
mantinham-na ocupada. As mãos cheias e o pensamento entretido.
Longe. Em qualquer sítio. Às vezes, ainda lhe apetecia fazer cópias, por isso,
mantinha as gavetas em ordem . Olhou em frente, procurou o número da
porta: 52, 54, 56, ele dissera-lhe. “Uma
porta azul, número 74”. Ou seria 78? E, se tivesse apontado mal o número?
Olhou para a agenda. Não apontara o número da porta, mas lembrava-se da
cor azul da porta. Do nome da rua. Do nome do bairro.” Há lugar para estacionar, não te demores! ” Uma chuva miudinha começou a confundir-se com a sua
respiração. Ora chuva. Ora respiração. “Não
te demores”, as palavras do homem ajudavam-na a procurar a porta azul. Olhou para si, o brilho das botas. Sentiu o
cheiro que espalhara no corpo. Lembrou-se da moeda que deixara numa mão suja.
Porta azul. Porta azul, número 78. Seria aquela? Era azul, a porta. “ Tens de subir umas escadas! Entra devagar.
Não te farão perguntas. Sobe até ao 1º andar, estarei à tua espera. A porta estará
aberta.” De repente, apeteceu-lhe fugir, descer, a correr, as escadas,
voltar para as suas arrumações. Pedir a moeda de volta. Esquecer o brilho das
botas. Deixar cair o lenço. Mentir uma razão qualquer. “ Perdi-me no caminho.” “ Fiquei
com frio.” “ Perdi as chaves de
casa”. Qualquer coisa. Qualquer coisa que a levasse de volta. Que a impedisse de continuar. Tarde demais. A olhar para ela um sorriso, de mãos abertas, o homem
puxou-a para si: “ Entra. Abraça-me. Não,
deixa-me olhar para ti. Sempre te imaginei assim. Segura e com as mãos muito frias”. Entraram, abraçados, na
penumbra do quarto. Pairava no ar o cheiro e a sombra de encontros anteriores.
A chuva, agora, acertava nos carros que passavam. Nos vidros das
janelas. Na cidade que os ignorava. Cinzenta e molhada. Quase fria. Conversavam. A mulher e o homem. As palavras saltavam de uma frase
para outra. Recitaram cumplicidades e ajeitaram os passados. Desculparam-se de nada. Estavam sentados
ao lado um do outro. Deram as mãos. Ele compôs-lhe o rosto. Ela pediu-lhe água. Deixaram que a noite entrasse. Num quarto ao lado, uma mulher
gemia. Numa cama igual. Ignoraram a mulher e sorriram.
Belíssimo. O ritmo a cadência e a esperança!
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