domingo, 10 de novembro de 2013

O Escritório (continuação)



Andrew Wyeth, Open and Closed


O Escritório (continuação)

 Era eu a menina da casa. Nas tardes mais longas, escondia-me no escritório que ficara resguardado do sol, durante a manhã, e sentava-me na cadeira da secretária. As pernas penduradas, a rodar um círculo perfeito, desenhado pelo balanço da minha força naquele engenho de madeira e mola de ferro rangente e gasto. Ao lado da secretária, a janela e uns cortinados transparentes que deixavam entrar a luz do sol, ou da sombra ocupavam metade da parede cor-de-rosa, adivinhava-se o laço encarnado na esquadria, por trás da estante dos livros. Um móvel de madeira brilhante e sedosa, com riscas de vários castanhos, igual à secretária e às cadeiras de braços, duas portas, prateleiras ao meio e três gavetas na parte de baixo. Uns pés pesados e dourados rematavam as linhas direitas e suportavam o peso. Nunca lhe faltou o brilho, nem a limpeza. Não são contas do teu rosário e eu, antes de saber ler, olhava-o de longe, encolhida de medo e timidez, via  os livros de lombadas largas azuis, verdes e castanhas, amparados por umas cabeças assustadoras esculpidas em pau-preto, os bonecos de porcelana, os rostos de crianças dentro de molduras prateadas e as caixas de várias cores, que não me pertenciam. Mas no silêncio que me acompanhava e, sob o olhar atento do menino Jesus, eu atrevia-me, aproximava-me da estante e mexia nas prateleiras que conseguia alcançar, pegava nos livros, sentia o papel rugoso que os forrava, cheirava-os, abria as gavetas sem chave, espalhava as caixas no chão encerado a alfazema. As mãos eram pequeninas, os livros escorregavam, caiam e abriam-se, as caixas perdiam a compostura. Um dia, com um gesto mais rápido e medroso, desfiz uma pastorinha, um patinho branco de bico dourado e o vidro que protegia do pó a cara de uma criança sorridente. Um avô complacente salvou-me de uns açoites e o escritório, depois de varridos os cacos, continuou a pertencer-me, desde que a porta permanecesse aberta. Nos dias seguintes, não saí da cadeira que girava e chiava, observava as paisagens penduradas na parede, do outro lado da secretária, o cinzeiro que combinava com o isqueiro, muito alinhados, em cima da mesa de latão, os dois sofás estofados a brocado grosso de cor indefinida, cor de sujo, e partia para as minhas histórias, sempre a imaginar conversas e pessoas. Os brinquedos da secretária também me acompanhavam. No entanto, a estante, imperturbável, com os seus tesouros, era o meu território proibido. A curiosidade era um tormento, entre uma história inventada e uma piscadela de olho para as prateleiras cheias de livros, eu pensava na maçã envenenada da Branca de Neve e na abóbora da Gata Borralheira. A estante crescia, ocupava o espaço todo, os Reis Magos já não se  mexiam e a tapeçaria deixou de me amedrontar, o mundo  estava, agora, naqueles livros inteiros e quietos, que eu mal podia tocar. Não passaram muitas tardes até eu saltar da cadeira que rodava, para A Guerra e Paz e O Crime do Padre Amaro. Quando aprendi a ler, enrolava-me num daqueles sofás pardos, de orelhas salientes e decifrava os mistérios há tanto tempo, ali, arrumados. Esquecia-me das outras histórias e brinquedos, o tempo passava e sem perceber o escritório ia escurecendo. Ficava suspensa  parágrafos, capítulos inteiros.  Às vezes, da rua por raros e descompassados momentos, ouvia o barulho mais rouco de um carro, a campainha de uma bicicleta, o pregão do amolador, vozes, uma gargalhada, um grito, o ladrar de um cão vadio, o rolar de uma carroça. A casa ficava numa rua sossegada. O escritório era meu, o papel pardo que escondia alguns títulos era o meu único desafio. A maçã e a abóbora. 

(continua) 

1 comentário:

  1. Escritório-omphalos na infância, uma alfaia que fez abrir caminhos da vida. Excelente viagem arqueológica às entranhas cénicas do crescimento. É tão forte que dói. (Também me lembro da tontura infantil na cadeira rotativa, num escritório paterno rente ao Tejo.)

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