segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Esta noite vou eu passear o cão.





Esta noite vou eu passear o cão.

Esfregar as mãos de unhas roídas, a ajeitar a saia, a compor a sombra que avistava na linha do empedrado do passeio, calçada portuguesa. Pensou. Não passaria nem mais um minuto, nem mais um suspiro, será hoje, tem de ser hoje, tenho as contas para pagar, a escola do miúdo, a lista do supermercado, as aulas de natação, a explicação do mais velho, as vacinas do cão, o seguro do carro, o aparelho dos dentes, tudo, o dia a dia de uma vidinha. Perdida e com a cabeça a estalar chegou a casa. Abriu a porta, acendeu a luz da cozinha e as lâmpadas abriram-se devagar É quase poético, a luz a abrir devagar, sempre poupei na conta da eletricidade. Riu. A luz era agora de toda a cozinha branca. Ela tinha uma vida de meias rotas, trabalhos de matemática, um homem deitado todas as noites, ali ao seu lado, um silêncio que se ouvia quando o lençol deslizava e tapava as costas doridas. A colher da sopa que tocava no fundo do prato e se ouvia a raspar na porcelana. Os miúdos a queixarem-se para fazer conversa. Passavam a cesta do pão. Com os mesmos gestos arrumavam a loiça, cortavam as batatas, desligavam o forno. Mandavam lavar os dentes, apagar a luz. Amanhã é dia de escola. Igual. Como no dia anterior. E no prédio da frente apagavam-se as  janelas. Não se ouviam carros. Os caixotes do lixo estavam no sítio. Os cães tinham desaparecido. No andar de cima percebeu o prazer dos vizinhos, as gargalhadas soltas, um casal muito jovem, muito loiros os dois, enxoval por estrear, lençóis novos todas as semanas, amigos a falar mais alto no elevador. Não tenho nem uma pontinha de inveja, não quero aquelas gargalhadas de volta. Queria que as minhas se tivessem transformado noutra coisa qualquer que não fosse a indiferença ao cheiro do Francisco. Não, não passará de hoje. As pessoas daquelas janelas devem sentir o mesmo, também devem ter dores iguais. Já não gostavam. Seria apenas o sexo que…não. Era o desejo, já não desejava aquela voz, aquele peito. Acabou-se, até um grande amor pode morrer. Pois, não seria um grande amor. E um dia a mais da mesma vidinha. Falaria com poucas palavras. Dir-lhe-ia a sua alma triste, o coração sem sentir, o frio no estômago, as pernas sem desejo. A vida baça. Sempre o medo, aquele desconforto, sem arrepio na pele. Devagar. Pesaria as palavras, as pausas. Escrevo um rascunho para não esquecer as razões. Uma lista? Não. Sem lista. A vida não é uma lista. Pensava em tudo. Teria de explicar que já não se sentia livre na sua presença, que não ouvia as suas conversas, que preferia que ele não viesse jantar, dir-lhe-ia que se encolhia, cada vez mais na cama, que não gostava dos seus beijos, os seus livros não lhe interessavam. Teria de lhe dizer quando tudo começara. Tudo o quê? A indiferença, a repulsa, o cansaço. Sem sonhos. A solidão, a insegurança, os medos. Sim, este é um bom começo a perda da confiança, da lealdade, mas também não é isto? Não é só isto. Seriam as suas piadas já sem graça? As discussões constantes? A loiça que ficava mal arrumada? A cor desbotada do sofá, que desaparecia sob as suas calças de corte impecável? As peúgas fora dos sapatos? As toneladas de loiça que lavava? O sexo que faziam entre um ‘vem-te!’ e ‘fechaste a porta à chave?’ O que faço com tudo isto? Como lhe explico o olhar sem brilho, depois de termos passado a manhã de mãos dadas, apertadas até doer como sempre gostara, ele lhe gritava, ao lado da prateleira das massas: ‘Não compres nem mais um pacote desta merda! ‘?

Como explico que não me esqueço destas palavras? Porque é que é que eu não me esqueço destas palavras? Destes gritos?

 
Como se diz tudo isto?

 

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