Esta noite vou eu passear o cão.
Esfregar as
mãos de unhas roídas, a ajeitar a saia, a compor a sombra que avistava na linha
do empedrado do passeio, calçada
portuguesa. Pensou. Não passaria nem mais um minuto, nem mais um suspiro,
será hoje, tem de ser hoje, tenho as
contas para pagar, a escola do miúdo, a lista do supermercado, as aulas de
natação, a explicação do mais velho, as vacinas do cão, o seguro do carro, o
aparelho dos dentes, tudo, o dia a dia de uma vidinha. Perdida e com a
cabeça a estalar chegou a casa. Abriu a porta, acendeu a luz da cozinha e as
lâmpadas abriram-se devagar É quase
poético, a luz a abrir devagar, sempre poupei na conta da eletricidade. Riu.
A luz era agora de toda a cozinha branca. Ela tinha uma vida de meias rotas,
trabalhos de matemática, um homem deitado todas as noites, ali ao seu lado, um
silêncio que se ouvia quando o lençol deslizava e tapava as costas doridas. A colher
da sopa que tocava no fundo do prato e se ouvia a raspar na porcelana. Os
miúdos a queixarem-se para fazer conversa. Passavam a cesta do pão. Com os
mesmos gestos arrumavam a loiça, cortavam as batatas, desligavam o forno. Mandavam
lavar os dentes, apagar a luz. Amanhã é
dia de escola. Igual. Como no dia anterior. E no prédio da frente
apagavam-se as janelas. Não se ouviam carros. Os caixotes do lixo
estavam no sítio. Os cães tinham desaparecido. No andar de cima percebeu o
prazer dos vizinhos, as gargalhadas soltas, um casal muito jovem, muito loiros
os dois, enxoval por estrear, lençóis novos todas as semanas, amigos a falar
mais alto no elevador. Não tenho nem uma
pontinha de inveja, não quero aquelas gargalhadas de volta. Queria que as
minhas se tivessem transformado noutra coisa qualquer que não fosse a
indiferença ao cheiro do Francisco. Não, não passará de hoje. As pessoas daquelas
janelas devem sentir o mesmo, também devem ter dores iguais. Já não gostavam. Seria
apenas o sexo que…não. Era o desejo, já não desejava aquela voz, aquele peito.
Acabou-se, até um grande amor pode morrer. Pois, não seria um grande amor. E
um dia a mais da mesma vidinha. Falaria com poucas palavras. Dir-lhe-ia a sua alma
triste, o coração sem sentir, o frio no estômago, as pernas sem desejo. A vida baça.
Sempre o medo, aquele desconforto, sem arrepio na pele. Devagar. Pesaria as
palavras, as pausas. Escrevo um rascunho
para não esquecer as razões. Uma lista?
Não. Sem lista. A vida não é uma lista. Pensava em tudo. Teria de explicar
que já não se sentia livre na sua presença, que não ouvia as suas conversas,
que preferia que ele não viesse jantar, dir-lhe-ia que se encolhia, cada vez
mais na cama, que não gostava dos seus beijos, os seus livros não lhe
interessavam. Teria de lhe dizer quando tudo começara. Tudo o quê? A
indiferença, a repulsa, o cansaço. Sem sonhos. A solidão, a insegurança, os medos. Sim, este é um bom começo a perda da confiança, da lealdade, mas também
não é isto? Não é só isto. Seriam as suas piadas já sem graça? As discussões
constantes? A loiça que ficava mal arrumada? A cor desbotada do sofá, que
desaparecia sob as suas calças de corte impecável? As peúgas fora dos sapatos? As
toneladas de loiça que lavava? O sexo que faziam entre um ‘vem-te!’ e ‘fechaste
a porta à chave?’ O que faço com tudo isto? Como lhe explico o olhar sem brilho,
depois de termos passado a manhã de mãos dadas, apertadas até doer como sempre
gostara, ele lhe gritava, ao lado da prateleira das massas: ‘Não compres nem mais um pacote desta merda!
‘?
Como explico que não me esqueço destas
palavras? Porque é que é que eu não me esqueço destas palavras? Destes gritos?
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